Conteúdo verificado: vídeo no Instagram em que a médica Raissa Soares afirma não ser o momento para vacina, mas sim de evitar a transmissão do coronavírus com o uso profilático da hidroxicloroquina e da ivermectina.
São falsas as afirmações sobre o fim da circulação do coronavírus feitas por uma médica em um vídeo no Instagram. Na gravação, ela cita as vacinas, mas diz que ainda não é o momento das imunizações, e diz, erroneamente, que, se a população tomar hidroxicloroquina e ivermectina, estará protegida contra a covid-19 e, assim, a circulação do vírus vai acabar antes da chegada do inverno. Não é verdade.
Até agora, não há nenhum medicamento que evite o contágio da doença, segundo autoridades de saúde. Sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina (que é um derivado da primeira), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirma que “os estudos conduzidos até o momento têm um número de pacientes muito reduzido e ainda é arriscado afirmar que vai funcionar no tratamento da covid-19” e que, o órgão, “da mesma forma que o FDA (Food and Drug Administration, autoridade sanitária dos Estados Unidos), não recomenda o uso indiscriminado desses medicamentos sem a confirmação de que realmente funcionam”.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), tem posicionamento similar em relação às drogas. Em seu site, a entidade destaca que “a maioria das pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento”.
Associações como a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e a Sociedade Brasileira de Infectologia já publicaram em comunicados que nenhum desses medicamentos, nem a ivermectina, tem eficácia comprovada contra a doença. Especificamente sobre a ivermectina, a Anvisa afirma, em nota, que “as indicações aprovadas são aquelas constantes da bula do medicamento” — nenhuma é para a covid-19 e, como a própria autora diz no vídeo, uma das indicações é para o tratamento de piolho.
A médica complementa ser importante que cada indivíduo esteja com níveis altos de vitamina D e que “vitamina C, fruta, legume e exercício físico” são fundamentais para evitar a transmissão. Também não é verdade. Novamente, de acordo com a Anvisa, entre as medidas preventivas recomendadas estão o uso de máscara e a lavagem frequente das mãos — o órgão não cita as ações indicadas pela profissional.
A autora do vídeo que viralizou no Instagram é a médica Raissa Soares. O Comprova tentou contatá-la, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.
Como verificamos?
Para compormos esta verificação, fomos em busca de reportagens sobre uma possível eficácia das drogas cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina como medida preventiva para evitar o contágio pelo Sars-Cov-2 (vírus causador da atual pandemia). Também nos apoiamos em sites de órgãos da área da saúde e checagens anteriores do Comprova que mostram não haver comprovação científica da funcionalidade dessas substâncias no tratamento do coronavírus.
Pesquisamos, ainda, o posicionamento de alguns políticos em relação a estudos científicos.
Para complementar a apuração, acionamos especialistas da área da saúde com questionamentos sobre medidas profiláticas contra a covid-19 e o atual estágio de contaminação no país. Quem nos auxiliou foram o infectologista, professor de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atual chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Eduardo Sprinz, e o epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Ricardo Kuchembecker.
Tentamos contato com a autora do vídeo e com o Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), onde a médica está inscrita profissionalmente, para verificar possível existência de processos. Até o fechamento desta reportagem, Raissa não deu retorno.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 6 de novembro de 2020.
Verificação
Cloroquina e ivermectina
Nenhuma das drogas mencionadas por Raissa Soares tem eficácia comprovada. De acordo com o infectologista Eduardo Sprinz, professor de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atual chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, no momento “não existe qualquer medicação que tenha indicação na profilaxia”.
— Estudos conduzidos com alguma seriedade não mostram diferença entre usar qualquer um desses medicamentos e não usar como agentes profiláticos — pontua o médico.
Para ele, a insistência em tentar tornar esses fármacos como alternativa de tratamento pode ter ligação com “negacionismo, fake news, mídias sociais e razões políticas”:
— Não é questão de ser contra ou a favor, e sim de haver indicação. Neste momento, não há indicação.
O epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ricardo Kuchembecker, corrobora com o posicionamento de Sprinz.
— Não há evidências científicas de que hidroxicloroquina ou ivermectina, utilizadas individualmente ou em associação, sejam capazes de evitar, bloquear ou reduzir a circulação do Sars-Cov-2, seja no organismo, seja entre as pessoas. Estudos clínicos controlados demonstraram ausência de efeito preventivo e terapêutico na covid-19. A ivermectina não foi testada em humanos em relação à covid-19. Ela só foi avaliada em estudos em laboratório (in vitro) — destaca Kuchembecker.
O governo federal chegou a recomendar a administração da cloroquina e da hidroxicloroquina como terapia para pacientes com coronavírus — mesmo sem comprovação científica de resultados. Conforme reportagem da BBC publicada em julho: “O Ministério da Saúde, a pedido do presidente Jair Bolsonaro, recomenda o tratamento precoce contra a covid-19. Um protocolo da pasta defende o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina para todos os casos, dos mais leves aos mais graves, mesmo sem comprovação científica. Semanas atrás, Bolsonaro também se mostrou favorável ao uso da ivermectina em tratamento precoce contra o coronavírus”.
A mesma matéria traz a reação de entidades de saúde sobre a recomendação, esclarecendo que, em 30 de junho, a da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgou uma nota (atualizada em julho) para alertar sobre os riscos de tratamentos precoces. “Nos últimos dias, muito tem se divulgado nas redes sociais a respeito do uso de medicamentos para a covid-19. Várias destas divulgações que circulam nas mídias sociais são inadequadas, sem evidência científica e desinformam o público”, diz o comunicado.
De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde, “as evidências disponíveis sobre benefícios do uso de cloroquina ou hidroxicloroquina são insuficientes, a maioria das pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento. Por isso, enquanto não haja evidências científicas de melhor qualidade sobre a eficácia e segurança desses medicamentos, a OPAS recomenda que eles sejam usados apenas no contexto de estudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceitáveis”.
No Brasil, a Anvisa não recomenda tais medicamento: “Os estudos conduzidos até o momento têm um número de pacientes muito reduzido e ainda é arriscado afirmar que vai funcionar no tratamento da covid-19. Mais dados precisam ser coletados, de maneira adequada, para haver certeza de que vai funcionar”.
A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia publicou, em junho, um posicionamento sobre a profilaxia e tratamento da covid-19, afirmando que “não existem evidências científicas de que quaisquer das medicações disponíveis no Brasil, tais como ivermectina, cloroquina ou hidroxicloroquina, isoladas ou associadamente, sejam capazes de evitar a instalação da doença em indivíduos não infectados. Isso também é verdade para vitaminas, como a C e a D, e suplementos alimentares contendo zinco ou outros nutrientes.” As informações constam em verificação feita pelo Comprova sobre o uso da ivermectina como forma de evitar mortes por covid-19.
Fim da circulação?
A médica diz, em determinado trecho, que “nós vamos parar a doença porque eu não tenho mais a circulação viral.” Não fica claro se Raissa refere-se à disseminação do Sars-CoV-2 entre a população ou no corpo de um indivíduo. Porém, nenhuma delas teria sentido.
Segundo o painel do Ministério da Saúde que monitora o coronavírus em território nacional, desde 28 de outubro — data em que ela publicou o vídeo — até 4 de novembro (data mais atualizada até a publicação desta reportagem), o país teve mais de 150 mil novos casos confirmados.
O epidemiologista Ricardo Kuchembecker explica que o vírus deve continuar circulando por um bom tempo.
— A ivermectina, em estudos de laboratório, não em seres humanos, diminui a quantidade de vírus. Mas daí a dizer que ela diminui a circulação de vírus entre pessoas ou mesmo em uma pessoa, é informação absolutamente desprovida de evidência científica. Vai continuar havendo a circulação de vírus durante muito tempo até que consiga ou a imunidade coletiva com vacina ou imunidade coletiva depois que o vírus circulou em quase todos os suscetíveis — avalia Kuchembecker.
Politização da vacina
Raissa Soares diz em seu vídeo que “político que está querendo vacina é porque é contrário à política do presidente”. Contudo, nota-se um movimento na política mundial de incentivo aos estudos científicos que buscam alcançar uma vacina segura e eficaz contra a covid-19, independente de partidos e vertentes políticas.
A nível nacional, Luiz Henrique Mandetta (DEM), ex-ministro da Saúde, disse ao Roda Viva em outubro que a própria gestão da pandemia de Jair Bolsonaro é bastante ideológica.
— Joga cloroquina, começa a chamar de vírus chinês, fala que a culpa é da China. Então, não dá para falar da China, fala que é da OMS. Passou o Ministério da Saúde a ser o elemento de raiva, esse é o cara que traz a notícia ruim, fala o que não quero ouvir. Tanto que eles trocam o ministro e uma das primeiras coisas que o ministro militar chega e fala é que não vai mais dar números — disse.
Em entrevista à Agência Senado, o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, comenta ainda sobre o impacto da politização da vacina em tempos de cortes em investimentos na ciência brasileira aprovados durante o governo Bolsonaro.
— Os governantes, de forma geral, só atuam pensando na próxima eleição, e não nas próximas gerações. Preferem investir em programas que tragam resultados imediatos e tenham bastante visibilidade, garantindo votos. A ciência não é assim. Os resultados científicos que vemos hoje costumam ser fruto de anos de investimento e nem sempre podem ser mostrados na propaganda eleitoral. Isso ajuda a explicar o descaso com a ciência — afirmou.
Na comunidade internacional, Angela Merkel, chanceler alemã e ex-líder do partido de centro-direita União Democrata Cristã (CDU), afirmou que a vacina é crucial para a volta à normalidade.
— Este é um assunto sério, tão sério quanto sempre foi, e é preciso continuar levando-o a sério — disse em coletiva de imprensa realizada em Berlim.
Quem é a médica
Raissa Oliveira Azevedo de Melo Soares é médica. Em seu perfil pessoal no Instagram, ela afirma ser formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi no estado que ela fez seu primeiro registro no Conselho Regional de Medicina, em setembro de 1994. Desde março do ano passado, o registro ativo de Raissa é do Conselho Regional de Medicina da Bahia, com especialidade em Clínica Médica.
Em junho deste ano, Raissa foi citada em uma verificação do Comprova, classificada como enganosa. Em um vídeo, compartilhado em uma publicação no Facebook, a médica defendia o uso da cloroquina para tratamento do coronavírus, com base em experiências pessoais.
Na ocasião, Raissa trabalhava no Hospital Regional Deputado Luis Eduardo Magalhães (HRDLEM), em Porto Seguro, era contratada da prefeitura do município e também atuava no Hospital Navegantes. Ela chegou a pedir, por vídeo, ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que enviasse caixas de hidroxicloroquina para a cidade de Porto Seguro.
O pedido foi atendido e 40 mil caixas do medicamento foram enviadas pelo Ministério da Saúde para a cidade baiana. A Secretaria Municipal de Saúde de Porto Seguro disse, na época, que o medicamento seria destinado às unidades de saúde da cidade. Já a médica, para quem as caixas foram enviadas diretamente, disse que enviaria a hidroxicloroquina também para cidades vizinhas.
Quando as caixas chegaram, Raissa não não trabalhava mais no Hospital Regional Deputado Luis Eduardo Magalhães, administrado pelo governo do estado. Nas redes sociais, circulou a informação de que a demissão tinha motivação política — por conta do pedido de hidroxicloroquina feito ao presidente —, mas a informação foi desmentida pela própria médica e pelo hospital, como mostrou esta verificação da Agência Lupa. Ambos informaram que a saída ocorreu porque Raissa não estava conseguindo cumprir a carga horária da instituição em decorrência de outros compromissos durante a pandemia.
Em sua conta no Instagram, Raissa tem feito postagens que defendem o uso de medicamentos para o que chama de “tratamento precoce” contra a covid-19. Entre os dias 2 e 4 de outubro, a médica organizou em Porto Seguro o encontro “Força Médica Nacional contra a covid-19”, para discutir justamente o tratamento precoce da doença. Por meio da assessoria de comunicação, a Prefeitura de Porto Seguro confirmou ao Comprova, nesta quarta-feira (4), que o município adota o “protocolo de tratamento precoce na fase inicial da covid-19”.
A prefeitura confirmou que Raissa permanece contratada pelo município e trabalha na Unidade de Saúde do bairro de Campinho. A médica também compõe a equipe do Hospital Navegantes. Segundo a prefeitura, o hospital é privado, embora conste no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), do Ministério da Saúde, que ele é gerido pelo município. Na página do hospital no Facebook também há um vídeo da médica falando sobre o tratamento precoce, com a legenda de que a unidade apoia a causa.
Como já explicado por especialistas ouvidos pelo Comprova nesta verificação, não há comprovação científica da eficácia de um tratamento precoce, profilático, contra a covid-19, como defende Raissa. O Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), onde ela possui inscrição ativa desde março de 2019, condena a prática adotada por médicos de fazer prescrições públicas e em massa — exatamente o que Raissa faz no vídeo verificado, ao indicar o uso de hidroxicloroquina (um derivado da cloroquina) e da ivermectina.
Em julho, o conselho publicou em seu site um alerta aos médicos para a “inadequação de prescrição pública ou em massa” – em redes sociais, por exemplo. O texto, publicado no site do conselho, chama a atenção para a o problema da prática não só do ponto de vista ético e legal, mas também pelo risco a que está exposto o paciente medicado por indicação coletiva. Para o Cremeb, esta prática “foge aos limites éticos da medicina”.
“Prescrever indiscriminadamente, em uma rede social, por exemplo, não contempla preceitos básicos da prescrição médica, tais como a individualidade biológica de cada paciente, a possibilidade de monitorar os efeitos adversos e de emitir as advertências de acordo com a situação específica de cada indivíduo. Realizar a orientação em massa ignora também a realização da anamnese, procedimento imprescindível para decisão do caminho terapêutico a ser adotado”, informa o Cremeb.
O Comprova não encontrou processos disciplinares envolvendo Raissa Soares no site do Cremeb e o conselho informou, por meio da assessoria, que não se pronuncia sobre casos específicos, embora a recomendação se aplique ao vídeo da médica.
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos ligados às políticas públicas do governo federal e à pandemia. Como estamos em ano eleitoral, em que as disputas políticas estão acirradas, a covid-19 tornou-se tema de debates em todos os campos e a desinformação que circula nas redes sociais pode custar vidas.
Não obstante, informações sem embasamento científico podem contribuir para que a população acredite em medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento do coronavírus, abrindo mão de cuidados com higiene e distanciamento social — ações recomendadas por especialistas e autoridades para conter a doença.
O vídeo divulgado pela médica Raissa no Instagram pregando, erroneamente, o uso profilático de cloroquina e ivermectina teve cerca de 61 mil visualizações até 6 de novembro.
O Comprova já verificou outros conteúdos envolvendo cloroquina e ivermectina. Entre as checagens sobre esses temas, estão a que mostra ser falsa afirmação do presidente de que cloroquina poderia salvar 100 mil vidas, a que prova que China e FDA não aprovaram o uso do fármaco como 100% eficiente na cura do Covid e a de um enfermeiro que distorce dados para dizer que ivermectina evita mortes pela covid-19.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras.
Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance.
Este conteúdo foi investigado por Folha, GZH, Jornal Correio e Poder360 verificado por Agência Mural de Jornalismo das Periferias, Coletivo Bereia, Estadão, Jornal do Commércio, Rádio Band News FM e UOL.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).