Foi durante uma trilha no interior de Goiás que a professora Gerlane de Oliveira Ataídes, 43 anos, e o bancário Cesar Ricardo de Oliveira, 42, moradores do Distrito Federal, ouviram um colega falar sobre a travessia Cassino-Barra do Chuí, no extremo-sul do Rio Grande do Sul. Mesmo sem saberem exatamente a localização, se interessaram em percorrer os 223 quilômetros que separam a maior praia do mundo, em Rio Grande, da mais meridional do Brasil, em Santa Vitória do Palmar. Nos dois anos seguintes, planejaram os detalhes daquela que seria a maior aventura do casal de trilheiros.
Em 2 de janeiro deste ano, Gerlane e Cesar partiram rumo ao destino tão esperado. A rota pela faixa litorânea gaúcha é considerada uma das mais desafiadoras no Brasil para os trilheiros e pode levar entre seis e nove dias para ser concluída, se feita a pé.
Caminhar pelas areias que ligam os dois pontos é ingressar num cenário selvagem, onde não se encontra civilização ao longo de vários quilômetros e as únicas companhias são as aves, o vento, em geral o Nordestão, e o som do mar. Um lugar que já serviu para a produção de filmes, guarda histórias de piratas e dá a oportunidade ao caminhante de vislumbrar, se tiver sorte, as ondas brilhosas de coloração azul néon, causadas por organismos marinhos, chamadas de bioluminescência, além de um trecho de quilômetros de areia clara que fica, por vezes, coberto de conchas, o chamado concheiro.
Como passará a noite ao relento, sem energia elétrica ao redor, o aventureiro tem a possibilidade de observar um céu mais estrelado. O percurso também guarda as ruínas de um hotel famoso em décadas passadas, resquícios de navios naufragados e vestígios de fósseis de animais que ali morreram. Quando menos esperar, o trilheiro pode ser surpreendido por uma capivara se banhando sossegadamente nas marolas da praia, cena registrada pela equipe da reportagem de GZH durante a travessia feita de carro, que levou 12 horas. Nesse caso, o melhor é não tentar se aproximar, ficar em silêncio e seguir o caminho.
Desde setembro do ano passado, a trilha Cassino-Barra do Chuí integra a Trilha Nacional do Oiapoque à Barra do Chuí, criada pela Rede Brasileira de Trilhas. A entidade civil formada por voluntários dedicados a implementar, manter e apoiar o governo federal na gestão das trilhas brasileiras foi criada um ano depois de os ministérios do Meio Ambiente e do Turismo e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) assinarem uma portaria conjunta criando a Rede Nacional de Trilhas de Longo Curso e Conectividade, cujo objetivo é catalogar os caminhos no Brasil, projetar o turismo e, principalmente, funcionar como ferramenta de conservação dessas áreas.
Mas, muito antes de fazer parte de um conjunto maior, o longo caminho que conecta as praias do extremo-sul do Estado já era praticado por quem gosta de uma aventura. O diferencial é que, a partir da titulação oficial, a trilha ganhou identificação visual por meio de placas interpretativas distribuídas ao longo do trajeto e destacando os pontos mais importantes do caminho, a quilometragem percorrida e a quantidade de quilômetros restantes. Segundo o supervisor de Turismo de Santa Vitória do Palmar, Giovani Leão, o projeto vinha sendo discutido por um grupo multidisciplinar envolvendo representantes da Estação Ecológica do Taim, do ICMBio, da ONG Litoral Sul, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), das prefeituras de Santa Vitória do Palmar e de Rio Grande e de empresas privadas de turismo.
– Em 2020, criamos o plano de desenvolvimento do turismo, e uma das ações era a implantação dessa trilha. Santa Vitória pagou a confecção das placas, o grupo conseguiu patrocínio para os mourões de fixação e a prefeitura de Rio Grande fez a instalação delas – conta o supervisor.
Quando GZH fez o trajeto, a equipe teve dificuldades de localizar a placa inicial. Ela estava caída, próxima às vagonetas, nos molhes da Barra de Rio Grande, na praia do Cassino. É naquela região que o aventureiro, provavelmente, verá a última aglomeração de banhistas ao longo de mais de cem quilômetros na direção Sul. Pouco depois da parte habitada da praia, um resto de embarcação chama a atenção na orla. É uma das partes do navio catarinense Caetano, que encalhou e pegou fogo em dezembro do ano passado, causando a morte de dois tripulantes.
A menos de dois quilômetros dali estão os vestígios do navio Altair, que afundou em 1976, naquele que é considerado até hoje o mais famoso naufrágio na região. Na sequência, mais três quilômetros adiante, estão as ruínas de um afamado hotel da região no final dos anos de 1940. El Aduar atendia os viajantes que faziam Rio Grande-Chuí pela costa – única rota existente na época. Por depender das condições do mar, a viagem poderia durar muitos dias. O hotel perdeu força com a construção da BR-471, nos anos 1950. Hoje, restam em pé algumas paredes. O local se tornou ponto de parada dos caminhantes.
A trilha pode ser feita tanto do Sul para o Norte como ao contrário. No entanto, aconselha-se iniciar nos Molhes da Barra de Rio Grande. Assim, caminha-se a favor do Nordestão. Sem se dar conta disso, Gerlane e o marido começaram o percurso na Barra do Chuí. Os 16 quilos da mochila dela e os 26 da dele dificultaram o trajeto. Nos primeiros cinco quilômetros, Gerlane já sentia dores.
– Já fizemos trilhas pesadas de nível, mas sempre é rápido: acabou, terminou o sofrimento. No Cassino-Barra do Chuí é diferente. Foi a nossa trilha mais difícil – ressalta a professora, acostumada a fazer longos trajetos há mais de 15 anos.
Eles seguiram, e o apoio em meio à caminhada, desde a oferta de água gelada e cerveja a espaços para repouso à noite, em fazendas da região, foi fundamental. Entre os locais por que passaram estão os faróis Verga, Sarita, Albardão e da Barra do Chuí. No Albardão, inclusive, o casal passou a noite acampado, próximo ao portão de entrada da área da Marinha do Brasil. O local oferta pouso aos que agendam com antecedência, algo que eles não fizeram por desconhecerem essa possibilidade.
Um trecho da trilha passa pela faixa litorânea da Estação Ecológica do Taim e próximo à Lagoa Mangueira, dois ambientes com cenários que impressionaram o casal de trilheiros de Brasília. Outro é o concheiro, cerca de 40 quilômetros entre o Albardão e a praia do Hermenegildo, em Santa Vitória do Palmar. O geógrafo Renato Lopes e doutor em Geologia Marinha, explica que se trata de um depósito de conchas, na maior parte fossilizadas e jogadas na praia durante tempestades, especialmente no outono e no inverno, quando as ressacas são mais intensas.
– As pessoas que transitavam pela praia antigamente dizem que não existiam esses depósitos. Eles começaram a aparecer no final da década de 1960, e em 1975 foi feito um estudo demonstrando que a espessura de camadas de conchas não passava de cinco centímetros. Vinte anos depois, um estudo da Furg mostrou que a espessura já tinha mais de dois metros. Os depósitos aparecem e desaparecem, dependendo da quantidade de areia que chega à praia – ressalta Lopes.
No Guia Interpretativo Trilha Cassino-Barra do Chuí, criado pela Rede de Trilhas, um dos principais alertas é: uma vez iniciado o trajeto, não há saídas alternativas no caminho. Se houver desistência, será preciso ter contratado antes um resgate, ou contar com a sorte de encontrar alguém que esteja de passagem pela costa.
Foi o que acabou ocorrendo com Gerlane e o marido. Ao completar 160 quilômetros e seis dias de caminhada, o casal desistiu próximo ao farol Verga e ficou aguardando a possibilidade de uma carona até algum local perto do Cassino. Horas depois, um morador de Farroupilha, na Serra, ofereceu espaço no jipe conduzido por ele até o balneário.
– Foi um alívio tão grande, porque ele nos encontrou deitados na areia da praia, com muitas dores pelo corpo e tomando analgésico. Ela tentando me consolar dizendo que aprenderíamos com os erros, como no caso de carregar muito peso. Precisei dizer: “O erro foi vir” – comenta, aos risos, Cesar.
Antes de se despedirem do Rio Grande do Sul, o casal pretendia passar por Camaquã e Farroupilha, na Serra, para um churrasco na casa de amigos que conheceram no percurso.
– Para as pessoas que amam trilha, este lugar é incrível, único e extremamente diferente. Mas é preciso se preparar – afirma Gerlane.
O plano do casal é voltar à trilha em janeiro de 2024, mas na direção contrária: iniciando o percurso no Cassino, para aí sim finalizá-lo, na Barra do Chuí.
As recomendações do casal de trilheiros
- A dica principal é fazer a trilha na direção Cassino-Barra do Chuí, para andar a favor do vento: “Tomamos a decisão de andar contra o vento, para não ter o cabelo atrapalhando o rosto, por exemplo, e foi a escolha errada. O vento contrário atrapalha o caminhar, principalmente na areia e carregando peso. Por isso, é melhor seguir o orientado pela própria trilha”.
- Leve alimentos que não precisam de cozimento: “Abuse de patês, salames, castanhas e frutas desidratadas para diminuir peso na caminhada. Evite levar arroz e macarrão, que exigem preparo”.
- Planeje bem os pontos de parada: “Mapear arroios, lugares para passar a noite, saber os pontos que oferecem apoios, como fazendas locais, ajuda muito para caminhada”.
- Antes de consumir, trate a água doce encontrada pelo caminho: “Carregamos filtro e cloro para tratarmos a água que encontraríamos pelo caminho. Pode consumir de forma mais tranquila. Não é nada de peso e faz total diferença. Apesar de encontrarmos doadores de água, há horas em que não encontramos ninguém. E a sede não espera”.
As dicas do Guia Interpretativo Trilha Cassino-Barra do Chuí
- Uma mochila muito pesada pode ser um transtorno durante o percurso e exigir mais fisicamente do caminhante. Estude sobre a regulagem de mochilas, uso de bastões de caminhadas, noções básicas de primeiros socorros, tratamento de bolhas e demais itens que possam ser importantes.
- Opte por tênis ou botas, mas leve também uma sandália do tipo papete.
- Leve pelo menos três specks mais longos para fixar a barraca do lado atingido pelo vento e deixá-la mais protegida. Os acampamentos à beira-mar e na areia, como os da trilha Cassino-Barra do Chuí, têm possibilidade de enfrentar ventos fortes.
- Verifique e salve, em seu celular, a previsão da meteorologia. Será importante para escolher as melhores datas para a trilha e na melhor posição para montar sua barraca.
- Aos que fazem o trajeto de bicicleta, a direção e a intensidade do vento devem ser especialmente consideradas.
- Entre os meses de maio e agosto, a temperatura costuma ser mais baixa, com frio mais severo e os ventos ainda mais constantes, além da presença de ressacas do mar, que dificultam e até impossibilitam qualquer resgate devido à diminuição da faixa de areia.
- Caso encontre animais na areia da praia, como leões-marinhos, lobos-marinhos, pinguins, tartarugas ou outros, mantenha distância e não os incomode. É possível que estejam apenas descansando ou tomando sol.
- Não estar preparado pode causar uma hipotermia decorrente do clima frio, acentuado pelo vento. Independentemente da época do ano, é necessário usar roupas térmicas apropriadas e protetor solar durante a caminhada.