As imagens ao longo desta reportagem comprovam: a vida voltou à área atingida pelo maior incêndio já ocorrido na Estação Ecológica (Esec) do Taim, entre Rio Grande e Santa Vitória do Palmar, no sul do Estado. A reportagem de GZH retornou à área atingida e ouviu três dos quatro funcionários que iniciaram o combate às chamas e foram os últimos a sair da área afetada.
A linha de fogo de cerca de 11 quilômetros de extensão e com labaredas que cresciam até cerca de cinco metros de altura, conforme a direção do vento, lambia sem piedade os campos secos sobre o banhado da Estação Ecológica. Era a segunda semana de dezembro de 2022 e, sem qualquer gota de chuva, o fogo se alastrava rapidamente na área da reserva.
No céu, helicópteros da Polícia Civil e da Brigada Militar jogavam água para tentar conter as chamas. Por terra, funcionários e voluntários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), apoiados por bombeiros, combatiam de frente o sinistro. Em determinado momento, para se aproximarem do foco mais importante, restou caminhar por uma água barrenta, com pontos onde só se passava nadando.
Ao longo dos quatro quilômetros que os separavam do fogo a ser contido, a maior parte dos combatentes foi ficando pelo caminho. Alguns não sabiam nadar. Outros tiveram câimbras. Até que restaram somente dois agentes temporários ambientais do ICMBio, um voluntário e o gerente de fogo do instituto.
Exaustos depois de cinco dias de queimada, os quatro trabalharam até a última chama ser extinta. Foram os primeiros a entrar em campo e os últimos a deixar os 11.928,84 hectares de área queimada, no maior incêndio da história do Taim, que completou um mês no último dia 12.
Ao percorrerem com a reportagem de Zero Hora, nesta semana, alguns dos pontos mais atingidos, o agente temporário ambiental José Paulo Lopes Lemos, 37 anos, e o voluntário Fábio Lacau Moreira, 59 anos, ambos há dois anos nas suas atuais funções e que já conhecem a área há mais tempo, recordaram momentos de tensão e também de alegria, quando finalizaram o serviço.
— Ficávamos até o limite do corpo. A vontade era tão grande da equipe de tentar barrar aquela cabeça de fogo, que a gente ficava duas, três, quatro, cinco horas combatendo o fogo até trocarmos as equipes — diz Fábio Lacau Moreira, voluntário do local.
Ficávamos até o limite do corpo. A vontade era tão grande da equipe de tentar barrar aquela cabeça de fogo, que a gente ficava duas, três, quatro, cinco horas combatendo o fogo até trocarmos as equipes.
FÁBIO LACAU MOREIRA
Voluntário do ICMBio
— A gente só dizia “vamos conseguir, vamos conseguir”. Foi o fogo mais difícil que vivi no Taim, dos três em que trabalhei — concorda Alexandre.
Pelo caminho, sinais de que a vida está voltando aos pontos mais atingidos. O verde já começa a cobrir novamente o banhado, uma das principais áreas do Taim, responsável por abrigar, principalmente, as aves aquáticas, assim como jacarés-do-papo-amarelo, tachãs e capivaras. Onde ainda não há verde, o amarelo das folhas secas indica que o fogo passou por ali, mas foi contido.
Antes do fogo, raio caiu na região
No início da tarde de 12 de dezembro de 2022, José Paulo, que também já foi brigadista no local, viu pela janela da recepção da sede da Estação um raio caindo a alguns quilômetros, durante uma tormenta localizada na direção ao Sul. Na mesma hora, pensou "tomara que não tenha sido no banhado". Prevendo o pior, saiu do prédio, andou por alguns metros e, da estrada, viu a coluna de fumaça. Com outros colegas, foram de caminhonete até mais próximo do local da queda do raio. Ainda da rodovia, visualizaram a coluna de fogo se formando.
— Não chovia fazia muito tempo, tudo estava seco. Tentamos nos organizar para ver o melhor ponto para entrarmos, mas como começou no meio do banhado, não tínhamos um bom acesso. Ficamos monitorando o vento porque a nossa preocupação era não deixar ir para o lado Sul, onde tem mais área seca. Mas o vento Nordeste chegou e não teve jeito — recorda José.
Fábio estava de folga em casa, em Pelotas, quando o incêndio iniciou. Ao saber da situação, na mesma hora retornou ao Taim para ajudar no combate. Técnico em enfermagem intensivista, técnico de controle ambiental e tecnólogo em segurança pública, com formação como bombeiro civil e brigada florestal, Fábio é voluntário do ICMBio no Taim. Três anos antes de se aposentar, tomou a decisão de atuar na área motivado pelo desejo de contribuir de forma mais incisiva na defesa do meio ambiente.
Junto a eles, reuniram-se também dois experientes funcionários da Estação, o gerente de fogo do ICMBio, Amauri de Sena Motta, e o também agente temporário ambiental Alexandre Santos Lopes, 38 anos, há 16 anos atuando no Taim. Como o fogo iniciou no meio do banhado, uma área alagadiça, a cerca de quatro quilômetros da BR-471, que corta parte da reserva, e a outros cerca de 4km de uma floresta de eucaliptos sob os cuidados da CMPC. Naquele ponto, brigadistas da empresa ficaram preparados para o combate.
— Tentamos entrar pela rodovia, mas não tivemos sucesso. Então, fomos acompanhando o fogo para não deixar ele andar na direção da floresta e onde conseguíamos combater, entrávamos. De início, salvamos 600 hectares, mas o vento estava muito forte e o fogo ganhou velocidade – recorda José.
Sabendo que a situação iria piorar se não chovesse, o grupo voltou à sede e descansou por cinco horas entre a noite de segunda-feira e a madrugada de terça-feira (13 de dezembro). Eles só voltariam a dormir por mais cinco horas entre a noite de quinta-feira (14) e a madrugada de sexta-feira (15).
Nos primeiros dias, a equipe do ICMBio, formada por oito pessoas contou com a ajuda de aeronaves de duas empresas da região, dos bombeiros da região, cinco outros colegas da brigada de incêndio do ICMBio e também com alguns voluntários. Aos poucos, porém, o fogo ganhou força e o número de combatentes acabou se reduzindo.
— Em determinados momentos, o vento nos ajudou. Mas em muitos, nos atrapalhou. Nenhum incêndio florestal é igual ao outro. Tentávamos abafar o fogo para não se propagar e o vento mudava. Então, tínhamos que começar tudo de novo no local. Incêndios de causas naturais, geralmente, são apagados por causas naturais, mas não tivemos a chuva para ser nossa aliada – comenta Fábio.
Presentes nos dois incêndios anteriores, em 2008, quando 4,6 mil hectares queimaram, e em 2013, quando outros 5,6 mil hectares foram consumidos pelo fogo, Alexandre garante que o sinistro do final da primavera de 2022 foi o mais intenso visto até então.
—Este foi muito mais complicado porque não conseguimos acessar com lancha, pois a água está baixa em todo o Taim. Foi tudo feito por terra, caminhamos muitos quilômetros. Nos incêndios anteriores, os helicópteros nos largavam nos pontos de incêndio. Desta vez, não foi possível porque corríamos o risco de afundar até a cabeça na lama quando nos jogássemos da aeronave. O mais difícil foi a chuva não ter vindo quando precisávamos — afirma o agente.
Reforço foi fundamental
Depois de três dias de contenção, mas prevendo que o incêndio seria o maior já registrado e em pouco tempo, os funcionários do ICMBio receberam o reforço que seria fundamental para a extinção das chamas.
A gente só dizia “vamos conseguir, vamos conseguir”. Foi o fogo mais difícil que vivi no Taim, dos três em que trabalhei.
ALEXANDRE SANTOS LOPES
Agente temporário ambiental do ICMBio
—Realmente, só conseguimos combater quando houve a integração, esta logística entre município, Estado, voluntários e toda da unidade de conservação — reconhece Fabio.
A chegada de 40 servidores da Academia de Bombeiros Militar e duas equipes, compostas por oito militares da Força de Resposta Rápida (FR2) e do Corpo de Bombeiros Militar, enviados pela Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP), somados ao efetivo do 3º Batalhão de Bombeiros Militar de Rio Grande, totalizando 60 profissionais, e ainda o auxílio de aeronaves da Brigada Militar e da Polícia Civil, trouxe novo ânimo aos funcionários do ICMBio.
Na noite de 15 de dezembro de 2022, a equipe do ICMBio reuniu-se com os bombeiros para explicar a situação.
—Por ser uma área de difícil acesso, alagadiça, um pântano barrento, a gente se atola e custa a chegar ao local. Tem que ter técnica para se arrastar, ter abafador e uma bomba-costal, e estar bem hidratado — esclarece Fabio.
Coube à Alexandre, o mais experiente dos agentes, guiar a equipe por terra para chegar ao ponto extremo no final da madrugada de 16 de dezembro. Os quatro colegas entraram ao lado dos bombeiros no ponto mais lamacento, onde atolavam até a cintura. Uns levavam os abafadores com três metros de comprimento, outros, seguiam com as bombas nas costas, carregando 20 litros de água. Como havia um banhado profundo, alguns ficaram pelo caminho por não saberem nadar.
Outros, por conta do longo trajeto e trecho de extrema dificuldade, cansaram e ficaram para trás. Restaram, então, os quatro que haviam iniciado a incursão mais problemática. Alexandre, inclusive, perdeu a máscara e os óculos em meio a uma palha com mais de três metros de altura. As dificuldades só foram aumentando. Quando um atolava, os outros se davam as mãos e resgatavam o colega.
A vontade de preservar o meio ambiente me levou a trabalhar no Taim. Eu amo a natureza. Da estrada é uma coisa. Mas quando a gente entra na reserva, vê a vida de verdade.
JOSÉ PAULO LOPES LEMOS
Agente temporário ambiental do ICMBio
— Teve situações em que o helicóptero da Polícia Civil pensou até em nos resgatar porque o fogo nos cercou e a nossa saída foi entrar na lagoa. Esperamos o fogo chegar na beira da lagoa e conseguimos sair – conta Fabio.
A última chama do fogo foi extinta pelos quatro no início da tarde de 16 de dezembro. Houve comemoração, emoção e fotos ainda no local. Nas imagens, rostos cobertos de fuligem e os corpos, de barro. A alegria foi tanta, que José se atirou em meio ao capinzal para celebrar. O momento ficou guardado no celular.
— A vontade de preservar o meio ambiente me levou a trabalhar no Taim. Eu amo a natureza. Da estrada é uma coisa. Mas quando a gente entra na reserva, vê a vida de verdade. Uma alegria saber que conseguimos salvar o Taim — emociona-se José.
De acordo com a chefe da Estação, Ana Carolina Canary, cerca de 20% da ESEC, que tem 32,7 mil hectares, foi consumida pelas chamas, sendo praticamente todo o banhado. Mas ela também destaca que diferentes espécies de animais começaram a voltar à área já nos dias seguintes ao fim do fogo.