A identidade do gaúcho é um patrimônio imaterial do Estado, produto de um modo de vida ainda praticamente intacto em algumas regiões. É o caso da campanha gaúcha, cuja vocação para o turismo rural aflorou de vez com a consolidação das produções de uvas e olivas – e, principalmente, seus derivados: o vinho e o azeite.
A geografia da região é coberta pelo bioma pampa, o mesmo que reveste o Uruguai e a Argentina. Historicamente, o Rio Grande do Sul e os dois países vizinhos compartilham a agricultura e a pecuária, mas recentemente os gaúchos abriram os olhos para outras culturas, propícias para o clima e o solo daqui. O terroir se mostrou um dos melhores do mundo para o cultivo de determinados tipos de uva e também da azeitona. As condições são semelhantes às de lugares como a Califórnia, nos Estados Unidos, e a África do Sul, cujos vinhos também fazem sucesso.
Os municípios da região estão entre os maiores do Estado, por isso, as distâncias são consideráveis. Para ter uma experiência completa, é preciso ir com tempo para fazer os deslocamentos sem pressa. O cenário compensa, já que a imensidão das coxilhas se apresenta em ondas verdes a perder de vista.
— As vinícolas estão espalhadas. O enoturismo feito aqui tem que ser muito bem planejado, e é um pouco mais relax, de afastamento, desligamento do dia a dia — explica o presidente da Associação Vinhos da Campanha, Pedro Candelária.
A relação espaço-tempo parece se alterar quando se viaja pelo Pampa. É possível ver de perto a rotina do campo, do manejo do gado, das lavouras. Até mesmo nas cidades, é comum de se ver as pessoas usando a indumentária gauchesca, na comparação com outras regiões.
— É uma região com muito potencial turístico. Tem aspectos únicos no Rio Grande do Sul e no Brasil, como a questão da identidade cultural muito forte, do imaginário do gaúcho, da tradição que está viva nas cidades, no povo da região — observa a coordenadora de Turismo do Sebrae RS, Amanda Bonotto Paim.
Ela está à frente de um trabalho de mobilização dos diferentes setores da região para receber os turistas de forma estruturada. Assim como a oferta de visitas guiadas e experiências gastronômicas, a rede hoteleira ainda é incipiente, mas já atende tranquilamente quem se planeja para conhecer a Campanha.
A gastronomia, aliás, é um dos pilares listados por Amanda como estruturais para o desenvolvimento do turismo na região. Inspirado no conceito que compreende do campo até a mesa, trabalha com carne, vinho, azeite, frutas e outros produtos locais de reconhecida qualidade. O segundo eixo é a identidade do gaúcho, já que a região guarda a história, a arquitetura, as músicas e as lendas que norteiam o imaginário popular. Por fim, cita o que está mais avançado, que é o enoturismo.
Segundo Pedro Candelária, o verão é a época menos indicada porque o calor é intenso. Mas ressalta que a estrutura está preparada para receber visitantes também nos meses mais quentes.
— É muito prazeroso no inverno. Tem lareira, o frio convida mais a tomar um bom vinho tinto, comer carne. Também gostamos muito das meias-estações porque permitem fazer eventos no lado de fora das vinícolas. Mas as propriedades estão preparadas para receber os visitantes o ano todo. Algumas, inclusive, têm momentos especiais da colheita, no verão — recomenda.
Experiências diferenciadas ao visitante
Lugares turísticos com filas, lista de espera ou grandes grupos dividindo a atenção dos anfitriões não têm vez na região da campanha gaúcha — pelo menos por enquanto. Em pleno processo de consolidação, o turismo ainda é feito no estilo boutique: quase tudo precisa ser agendado e a hospedagem pode ser reservada até mesmo na casa dos proprietários.
A tranquilidade de se estar em um lugar pacato não significa que a produção seja pequena. Segundo a Associação Vinhos da Campanha, a produção anual das associadas está em torno dos 5,6 milhões de litros, sendo 4 milhões com o selo de indicação de procedência da campanha gaúcha.
São duas rotas: uma inclui os municípios de Itaqui, Uruguaiana e Santana do Livramento, enquanto a outra compreende Dom Pedrito, Candiota e Bagé. Em função dessas distâncias, a recomendação é estar com tudo planejado.
— Precisa de uma semana e meia, pelo menos, além de ter o carro e saber onde visitar e dormir. Não pode dirigir depois de beber, por exemplo — recomenda Pedro Candelária, presidente da associação.
Turismo espontâneo
— Nunca imaginei que receberia visitantes. Quando eu vi, tinha 15 pessoas dentro da minha casa — diverte-se a agrônoma e fisioterapeuta Eveline Previtali, de Bagé.
De forma despretensiosa, ela e o marido começaram a cultivar uvas para comercializar a fruta in natura, mas logo surgiu o interesse em fazer vinho. Em seguida, veio também a vontade de cultivar oliveiras e, como consequência natural, o azeite.
Hoje, são diversos rótulos de vinho com a marca Cerros de Gaya, feitos na propriedade que fica no limite entre Bagé e Dom Pedrito. São cerca de 20 quilômetros, tanto para uma cidade quanto para a outra.
A visitação cresceu a ponto de chegarem ônibus com turistas, levando a empresa a construir uma cave e um restaurante panorâmico, com loja — os locais devem ficar prontos ainda este ano. Após a conclusão, a propriedade estará aberta diariamente. Até lá, é preciso agendar: são recebidos grupos entre quatro e 40 pessoas, que têm a oportunidade de caminhar pelas oliveiras e pelo parreiral, acompanhando e tirando dúvidas sobre o trabalho do dia a dia. A experiência custa R$ 200 por pessoa e dá direito a uma tábua de frios e uma garrafa de vinho ou espumante.
— Recebemos muitos enófilos, fazem bastante perguntas. É gratificante saber que a região está despertando esse interesse nas pessoas. No verão, eles ficam até depois da meia-noite e, no inverno, assam marshmallow em lareiras ao ar livre — conta.
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Informações e reservas pelo site cerrosdegaya.com.br ou pelo telefone (53) 99946-6608, com WhatsApp. O perfil no Instagram é o @cerrosdegaya
Variação de cultura
Tradicional na produção de gado e arroz, a região da Fronteira Oeste também vem se destacando pela qualidade dos vinhos. Em Itaqui, quem chega à cidade vê, logo no acesso, a sede da vinícola Campos de Cima, que nasceu da ideia de diversificar a produção da Fazenda São Jorge.
— Meus pais começaram a implantação dos vinhedos em 2002, com mudas importadas da França e da Itália. A primeira colheita foi em 2006, mas a bebida era elaborada em parceria com outras vinícolas, até que inauguramos a nossa em 2014 — conta Manuela Candelária, sócia da Campos de Cima.
Por ser arquiteta, ela se encarregou do projeto — pensado para reproduzir a identidade da região por meio do uso de arenito, ladrilhos, madeira e couro, entre outros itens típicos. Além disso, tudo foi desenhado para receber visitantes, pois desde o início já nascia o interesse do público.
Como a fazenda fica a 100 km da loja, as incursões são esporádicas. Mas é possível conhecer a loja, a vinícola e um pequeno vinhedo em um tour que mostra todo o processo de elaboração dos vinhos. A visita dura cerca de 1h30min e os valores variam de acordo com a quantidade de vinhos degustados: por R$ 40 são dois rótulos, R$ 60 para experimentar três garrafas e R$ 80 para quatro vinhos. Já a visita especial sai por R$ 130 e dá direito a uma tábua de queijos, frios e pães produzidos com matéria-prima da região.
Programe-se
Informações e reservas pelo site camposdecima.com.br ou pelo telefone (55) 99708-7500, com WhatsApp. O perfil no Instagram é o @camposdecima
Espumante de hidromel em vinícola off-road
Situada a 40 km da cidade de Santana do Livramento, a vinícola Pueblo Pampeiro divide espaço com outras culturas. Para chegar à propriedade é preciso percorrer um caminho tão sinuoso que o local se tornou destino de dois grupos de “jipeiros”, que marcam presença pelo menos duas vezes ao ano.
As visitas ocorrem nos fins de semana e permitem o contato com a produção do vinho e de um inusitado espumante de hidromel (bebida fermentada à base de mel). Além disso, a apicultura, a criação de gado e a de cavalos gigantes das raças percheron e belga também chamam a atenção dos visitantes.
— Nosso propósito é oferecer experiências diferentes com produtos que a gente mesmo prepara. Somos uma mistura de uruguaios e brasileiros e traduzimos no produto essa mistura de línguas, a identidade do portunhol, dessa região tão rica na parte cultural — explica uma das sócias, Cintia Lee.
Em função da quantidade de atividades desenvolvidas na propriedade, a equipe não consegue receber visitantes todos os dias. Mensalmente, uma van parte do centro da cidade com os interessados em ver de perto o trabalho da vinícola. O valor do passeio é de R$ 190 para adultos e R$ 75 para crianças.
Programe-se
Informações e reservas pelo site pueblopampeiro.com ou pelo telefone (55) 99634-5550, com WhatsApp. O perfil no Instagram é o @pueblopampeiro