Gulmarg, na Caxemira (região da Índia): com a neve caindo suavemente e cobrindo tudo à sua volta, Nihad Ashraf Khan, universitária presa em casa havia meses por causa da pandemia, correu ao sótão para pegar às pressas os esquis, as varetas, as botas e os óculos de proteção — e saiu quase imediatamente rumo ao Himalaia.
Depois de um percurso de quase 50 quilômetros a partir de Srinagar, maior cidade da Caxemira, onde mora, Khan chegou a uma cidadezinha escondida em meio à cadeia de montanhas mais alta do mundo. Mas não foi a única a ter a ideia: já engrossava o número de carros de esquiadores embalados pela música alta, apressados para chegar às encostas e pegar a neve ainda fresca.
— Parecia a entrada de um parque de diversões no meio da floresta. Eu já estava com vontade de arrancar a máscara e calçar os esquis, e só conseguia pensar em um lugar: Gulmarg — conta a fanática esquiadora.
Todo ano, a estação de esqui, uma das maiores e mais altas da Ásia, atrai milhares de adeptos, empolgados com as condições perfeitas da neve, a acomodação barata, as paisagens de tirar o fôlego e a sensação de paz em um território de clima quase sempre tenso.
Os mais experientes são atraídos pelas encostas mais desafiadoras, pois podem percorrer quilômetros e quilômetros sob os cedros iluminados pelo sol. Já os mais sortudos — ou não, dependendo de como se encara a vida silvestre —, podem dar de cara com um leopardo-das-neves ou um urso marrom na descida.
Enquanto os resorts de esqui de outras partes do planeta sofrem por causa da pandemia, Gulmarg está tendo uma das temporadas mais movimentadas de sua história: até meados de março, já tinha recebido 160 mil pessoas, quase 10 vezes mais do que no ano anterior e muito mais do que em qualquer temporada das últimas três décadas.
"Fazíamos fila para ver os 'angrez' em ação"
Nasci alguns quilômetros ao norte dali e durante minha infância, no início dos anos 1990, eu percorria muitos quilômetros com os amigos, com botas pretas de cano alto para proteção contra a neve que chegavam até os joelhos para ver os estrangeiros — até então a grande maioria de visitantes — descendo as encostas e disputando corrida entre as árvores.
Na época, Gulmarg era um playground de inverno cheio de brilho e também janela para um mundo muito mais amplo. Os turistas eram conhecidos como "angrez" — palavra urdu geralmente usada para se referir aos estrangeiros —, e fazíamos fila, enrolados em pesadas mantas de lã, ou pherans, para vê-los em ação. Não entendíamos nada do que falavam, mas gostávamos de ver seus movimentos. Com o tempo, conquistamos nossos esquis e passamos a perseguir uns aos outros na mesma paisagem branquíssima.
Atualmente, com a Índia ainda fechada ao turismo e enfrentando recordes negativos ligados à covid-19, a maioria dos esquiadores é local — e inclui os mais abastados, cujas escapadas invernais para a Tailândia ou Dubai também foram proibidas pelas restrições às viagens internacionais.
Mas talvez o detalhe mais surpreendente do fascínio atual de Gulmarg é o fato de se encontrar bem no meio da Caxemira, território disputado pela Índia e pelo Paquistão e atormentada por um longo histórico de conflitos.
Há tempos os militantes lutam pela separação, seja para se unir ao Paquistão ou se tornar um Estado independente, coisa que a Índia não está disposta a aceitar. Além de manter ali milhares de soldados, em 2019 o governo federal retirou a autonomia do território, atitude que deixou até os nacionalistas se sentindo traídos, decepcionados e abandonados.
Por toda a região, as ruas estão cheias de militares, lembrando muito a situação nos anos 1990, quando um movimento de insurgência foi reprimido violentamente. Não faz muito tempo, em pleno centro de Srinagar, os moradores foram forçados a formar longas filas, mãos para o alto, esperando para serem revistados, parte de uma rotina de segurança que muitos descrevem como humilhante.
Por ter crescido aqui, sei que a turbulência era sempre tão ruim que não podíamos nem sair de casa; de fato, faz pouco tempo que voltei a Gulmarg.
"Parece um sonho. Não quero nem piscar"
Situada a poucos quilômetros da linha de controle que divide a Índia do Paquistão na Caxemira, a estação é cercada por todos os lados pelas forças indianas, que mantêm um controle rígido da região. Ao chegar, os visitantes são recepcionados por policiais, que revistam não só os passageiros como os veículos também.
Apesar de tudo isso, foi lá que esquiei durante minha juventude. Poucas coisas mudaram: a loja estatal de aluguel de equipamento, que antes só tinha uma dúzia de esquis de baixa qualidade, agora oferece uma seleção de peças de classe internacional. E é possível subir de bondinho acompanhando as Montanhas Apharwat, o que faz dele um dos mais altos do mundo, a mais de 4.200 metros.
O resort ajuda a manter 20 mil moradores e 40 hotéis. Este ano, por causa do aumento na demanda, os preços das diárias dispararam: um quarto duplo que antes saía por US$ 50 hoje chega a US$ 200. Muitos ainda alugam, mas se espremem até com outras quatro pessoas. E ainda se veem alguns "angrez", geralmente aqueles que permanecem na cidade durante toda a temporada, que pode durar até abril.
Brian Newman, norte-americano do Colorado, é o chefe da patrulha de esqui de Gulmarg, e uma de suas tarefas é ensinar às equipes onde colocar as bananas de dinamite e causar uma avalanche artificial para impedir que ocorra a versão natural.
— Não é um resort de classe internacional, mas é especial por causa da amplidão e das paisagens incríveis — justifica ele.
Diariamente, esquiadores de todos os níveis lotam ônibus e jipes caindo aos pedaços, que os deixam na estação. Ali se ajeitam, à espera do teleférico que os levará para o alto das montanhas que dão vista para o Vale da Caxemira.
Há quatro pistas para iniciantes e uma encosta que se estende por vários quilômetros, à qual só se chega de teleférico. Tem quem prefira o trenó, e toda manhã verdadeiras legiões de jovens caxemirenses são vistos montanha acima, levando a versão longa, em madeira, do equipamento. Os chai-wallahs se reúnem em grupos, servindo xícaras de chá fumegante para os que querem uma pausa ou precisam dela.
Há algumas semanas, em uma manhã clara de sol, Fanny Godara, francesa que cuida do restaurante que abriu com o marido indiano em Pondicherry, no sul do país, estava de olho nos filhos que aprendiam manobras na encosta para principiantes.
Ela explica que, como todo pai/mãe, também ficou preocupada com o bem-estar dos dois filhos durante o confinamento. Em meio ao cancelamento das férias e às vésperas da mudança de volta para a França, os jovens nem piscaram para aceitar as aulas de esqui.
— Há algo mágico neste lugar que faz com que a gente queira voltar sempre — comenta.
Khan, a esquiadora que correu para Gulmarg ao primeiro sinal de neve, já andava inquieta fazia meses por ter de ficar fechada em casa, recebendo notícias de que familiares e amigos tinham se infectado:
— Chegou a um ponto em que ficar em casa era impossível. Quando vi a neve caindo, não resisti.
Em Gulmarg, o distanciamento social só vale na intenção. Apesar disso, Khan, estudante de ciências biológicas de 23 anos, se diz segura. Ao sair do teleférico na montanha Merry Shoulder, de 3.500 metros, ela comenta que nunca viu tanta gente nas encostas.
Antes de descer, ela olha por sobre o ombro para a amiga Ishani Jamwal, com quem estuda, e grita: "Como estão as coisas aí?".
Ao que a outra responde:
— Parece um sonho lindo. Não quero nem piscar.