Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Impossibilitados de viajar por causa da pandemia de coronavírus, muitos turistas por vocação podem se refugiar na literatura. No conforto e na proteção de seu lar, há uma série de livros que trazem relatos de jornadas pelo mundo afora – seja o do presente, seja o do passado.
Seis colunistas de GaúchaZH dão dicas de obras capazes de saciar, mesmo que apenas um pouco, a sede de conhecer novos lugares ou rever paisagens marcantes. Confira as indicações de David Coimbra, Marta Sfredo, Rodrigo Lopes, Rosane de Oliveira, Rosane Tremea e Tulio Milman.
Marta Sfredo
"Um Certo Verão na Sicília"
Nunca passei um verão na Sicília, e o livro de Marlena de Blasi (editora Objetiva, 272 páginas, R$ 52) é quase rocambolesco em sua história de amor recheada de clichês italianos – da nobreza decadente à Máfia. Mas o que importa aqui, literalmente, é o cenário. Viaja-se por muitos motivos. Para mim, trata-se de descobrir, conhecer e aprender, inclusive em realidades não instagramáveis. Minha passagem pela Sicília foi como o livro de Marlena: curiosidade e deslumbramento, incompreensão e rejeição. Meus (poucos) dias de inverno na Sicília foram ensolarados como um certo verão, mas houve um chuvoso, em Agrigento, que provocou sensações semelhantes às da autora diante da realidade no centro da ilha. Percorrer as escadarias intermináveis da zona central da cidade, longe da imponência do Vale dos Templos, evidenciou o contraste entre a história preservada e as pessoas e o patrimônio abandonados. Era feio, mas uma informação importante. A Sicília é conhecida como a terra do silêncio, como relata a autora, pelas regiões desabitadas e pelo comportamento que virou chavão. Durante a pandemia, todas as conexões da ilha, por avião e navio, foram cortadas. A Sicília ficou isolada. Imaginem o silêncio.
Tulio Milman
"Israel em Abril"
É um dos livros menos conhecidos de Erico Verissimo, mas tem seus encantos. Publicado em 1969 (a mais recente edição, da Companhia das Letras, tem 296 páginas e custa R$ 54), a obra traz reflexões que vão além da paisagem e dos tradicionais pontos turísticos da Terra Santa. Identidade, fé, paz e nacionalismo são tópicos que vão se intercalando em meio a uma narrativa suave e, por isso, poderosa. O mundo – e Israel – mudaram muito desde que, em 1948, o país foi fundado sob inspiração socialista. Até por isso, vale a pena a visita ao passado e às origens da transformação que levou um pequeno e árido país agrícola a se transformar, meio século depois, em uma das maiores potências tecnológicas do planeta.
Rodrigo Lopes
"Até o Fim do Mundo"
Falar de livro de viagem e recomendar Paul Theroux é meio chover no molhado. Mas em tempos de confinamento, entrar em um trem, postar-se à janela de um vagão e simplesmente se deixar levar – nem que seja por meio da imaginação – por uma narrativa gostosa como a do escritor americano serve de bálsamo psicológico. Em Até o Fim do Mundo (editora Objetiva, 424 páginas, R$ 74), o escritor nos leva a roteiros ferroviários incríveis, como o trecho entre o norte e o sul do continente americano, com direito a paradas no sul do Texas (EUA), em El Salvador e na gélida Patagônia. Prefere algo mais exótico? Embarque em uma alucinante aventura pelo Expresso Transiberiano. Algo mais clássico? Não perca o trecho sobre o mítico Expresso do Oriente. O livro de Theroux evoca tudo aquilo que os bons tours literários de viagem devem conter: gastronomia, aventura e cultura.
Rosane de Oliveira
"Um Ano na Provence"
Campos de lavanda, lavouras de girassóis, papoulas à beira da estrada. Pequenos restaurantes atendidos pelos proprietários. Agricultores que fazem seu próprio vinho. Prazer em doses homeopáticas. Passeios de bicicleta. E o temido vento mistral. Isso e um pouco mais pode ser encontrado no livro Um Ano na Provence, de Peter Mayler (editora Sextante, 240 páginas, fora de catálogo). Vencedor do prêmio Melhor Livro de Viagem do British Book Awards (2013), conta a divertida história real de um publicitário workaholic que decide largar a loucura da City londrina para viver um ano sabático no sul da França com a mulher. Mês a mês, Peter Mayle registra as pequenas maravilhas (e as agruras) de viver em um dos lugares mais charmosos do planeta, com hábitos peculiares e paisagens sem igual. Esse ano pode durar algumas horas, sem levantar do sofá. Viagem de primeira classe, com vinhos, azeites, patês, pastis. Para entrar naquela lista infindável do que fazer "quando tudo isso passar", minha frase preferida nesta quarentena.
David Coimbra
"Ilíada" e "Odisseia"
A grande literatura sempre é uma história de viagem, mesmo que o viajante não saia do lugar, como Raskolnikov, em Crime e Castigo. Neste caso, quem viaja é o leitor, pela alma em mutação do protagonista. Mas o principal de todos os romances viajores é o primeiro deles, o fundador de toda a literatura ocidental, que na verdade são dois: a Ilíada e a Odisseia, de Homero. É impossível conhecer de fato a cultura do Ocidente sem conhecer essa história monumental. Pedaços da fala e do pensamento de cada um de nós estão nessas duas histórias, assim como estão na Bíblia. Ler a Ilíada e a Odisseia, de preferência em uma edição comentada, é como viajar por dentro de nós mesmos, como, aliás, faz Raskolnikov.
Rosane Tremea
"Paris Fait Son Cinéma"
Em 2012, um querido colega foi a Paris pela primeira vez. Era também sua estreia no Exterior. Ao retornar, me trouxe de presente um livro/guia: Paris Fait Son Cinéma (Paris Faz seu Cinema, em tradução livre, editora Chêne, 224 páginas). O exemplar que tenho é em francês, idioma que não domino, e confesso que só o encontrei em livrarias digitais nessa mesma versão. Não importa. Nem precisa entender a língua. Você se deleitará do mesmo jeito com os lugares da capital francesa que serviram de cenário para muitas produções que nos deslumbraram nas últimas décadas. Eu mesma fui atrás do Polidor de Meia-Noite em Paris, da Shakeaspeare em Company, de Antes do Pôr do Sol, da Biblioteca Sainte-Geneviève, de Hugo Cabret, da Boulangerie du Moulin de la Galette de Julie & Julia. Todos esses lugares, como Paris, estão inalcançáveis agora, mas podemos viajar até eles por meio desse guia que também dá preciosas dicas de filmes para ver ou rever neste momento de isolamento.