Empurrando nossas bicicletas em uma tarde ensolarada, quatro amigos e eu chegamos a um bar perto da cidadezinha de Zitomislici, às margens do Rio Neretva, de água verde-esmeralda, no interior da Bósnia. Paramos no Neretvansky Gusar, como o estabelecimento é chamado, para reabastecer nosso suprimento de água. Havia apenas um pequeno problema:
– Só tenho cerveja gelada – desculpou-se Nikola Bevanda, o proprietário cabeludo que preferia o apelido de Svabo, gíria para “o alemão”.
Olhamos uns para os outros e, na mesma hora, largamos as magrelas. Minutos depois, com latas da bebida gelada à nossa frente sobre a mesa de piquenique externa, Svabo apareceu com meia garrafa de uísque canadense na mão, abrindo a festa improvisada.
– É tudo rock’n’roll. Esse é meu lema – brincou.
Mal sabíamos, na hora, que seria nosso lema também, só que bem mais literalmente, para o tal passeio. Era o início de uma viagem de três dias sob duas rodas pela Bósnia. Meus amigos e eu estávamos fazendo a Trilha Ciro, ciclovia inaugurada há dois anos que acompanha uma antiga linha ferroviária de Mostar, na Bósnia-Herzegóvina, a Dubrovnik, na Croácia. Quando ouvi falar que o caminho de 160 quilômetros era ladeado por campos ainda coalhados de minas terrestres, passava por vilarejos abandonados desde a guerra dos Bálcãs, no início dos anos 1990, e estações férreas antigas convertidas em hotéis e restaurantes, soube que tinha de percorrê-lo.
A combinação da história recente com a estonteante beleza natural da região era irresistível. E, conforme fui contando às pessoas meus planos, alguns amigos ficaram tão intrigados que se convidaram para me acompanhar: Kim Barker, repórter do The New York Times, Caroline Trefler, editora de guias de viagem, e os irmãos Vedran e Darko Perojevic, donos e chefs do Azur, em Dubrovnik.
Kim e Caroline chegaram totalmente preparadas para a aventura, com equipamento próprio. Os Perojevic, munidos com bicicletas elétricas dobráveis, nem tanto. Eu, o organizador da viagem, poderia ter levado mais coisa do que só umas camisetas, um boné e calção de banho. Um aspecto que ajudou, porém, foi que Kim, Caroline e eu alugamos bicicletas da operadora de turismo Epic Croatia, em Dubrovnik, que oferece aluguéis bem razoáveis de mountain bikes e transfer (com as bikes) para Mostar, de modo que poderíamos percorrer a trilha só no caminho de ida.
Então ali estávamos, com uma hora só de viagem e já desmontando das bikes para saborear a cerveja de Svabo e nos alternando nos mergulhos na água gelada do Neretva.
Depois de inspecionarmos o interior do estabelecimento – as paredes forradas com imagens de todo mundo, de Jimi Hendrix a Marilyn Monroe, passando por Nossa Senhora e o crooner croata bigodudo Miso Kovac –, estávamos prontos para recomeçar o passeio. E, quando já nos afastávamos, Svabo gritou:
– É tudo rock’n’roll!
Passávamos por Surmanci quando resolvemos parar em uma feirinha. Estávamos a uns 6,5 quilômetros de Medjugorje, onde, em 1981, seis crianças disseram ter tido uma visão de Nossa Senhora, o que transformou o vilarejo em ponto de peregrinação.
A distância era curta o bastante para permitir que a aldeia também embarcasse na venda de lembrancinhas aos viajantes de fé. Várias mulheres nos convidaram a gastar nosso rico dinheirinho em pulseiras de contas, imagens da Virgem e crucifixos de madeira.
– Senhora! – gritavam repetidamente para nossas companheiras de viagem.
Depois de dormirmos aquela noite no Motel Jelcic, em Capljina – confortável, mas despojado –, começamos o segundo dia pedalando por vilinhas sonolentas e cruzando pontes férreas enferrujadas. Quase sempre a trilha acompanhava a curva de uma montanha qualquer, revelando a versão antiga da ferrovia.
O primeiro trem, aliás, saiu de Dubrovnik, a caminho de Mostar, em 15 de julho de 1901, com figurões acomodados nos vagões enquanto a multidão festejava sua aproximação da estação. Em 1976, a linha foi considerada impraticável do ponto de vista financeiro e desativada. Hoje há mais bicicletas desfilando por ali do que qualquer coisa, graças à iniciativa de clubes de ciclismo de ambos os lados da fronteira de fazer algo com o trecho em desuso e ajudar a levar turistas para uma parte da Europa onde pouca gente se aventura.
Depois que já tínhamos percorrido uns oito quilômetros, chegamos a uma bifurcação. As placas indicavam que poderíamos optar pelo caminho mais fácil, pavimentado, ou ralar subindo um trecho íngreme de cascalho que ia lado a lado com o trilho do trem. Escolhemos o segundo, e fomos brindados com uma vista espetacular da Hutovo Blato, reserva natural basicamente formada de manguezais e montanhas altas, escuras e em formato de pirâmide, parte dos Alpes Dináricos. Pedalar morro acima sobre pedaços de calcário do tamanho de bolas de tênis foi a parte “rock” (pedreira) que fez contraponto ao “roll” (pedalagem suave) do dia anterior. Não foi fácil, mas paramos várias vezes para admirar as cercanias.
Centenas de morcegos voando sobre nossas cabeças
A certa altura, encontramos muros de pedra de mais de seis metros em que alguém tinha pichado “Cuidado com os vampiros sanguinolentos” em bósnio. Vedran traduziu, nós rimos e demos de ombros – até que, alguns quilômetros depois, entendemos a “piada”. Ao fazermos uma curva, nos deparamos com uma passagem escura à nossa espera.
Mais ou menos no meio do caminho do trecho de 120 metros de extensão, ainda totalmente escuro, exceto pela luzinha da lanterna de Caroline, começamos a ouvir uma cacofonia de chiados e guinchados altos – e não eram as bicicletas. Paramos todos. Senti o coração disparar. Que tipo de criatura nos aguardava ali?
Caroline apontou o facho de luz para o teto e abrimos a boca com a cena: centenas de morcegos circulando sobre nossas cabeças. Nós os tínhamos acordado, e eles não pareciam nem um pouco satisfeitos. Vedran tentava mostrar que não ligava, enquanto empurrávamos as bicicletas com mais vontade. Meu pneu, sem querer, encostou na batata da perna dele, que deu um grito alto e cheio de pavor, gerando risadas gerais, o que aliviou um pouco o clima tenso.
Já do outro lado, todos respiramos fundo, aliviados por não termos nos transformado em vampiros. De volta sobre as bicicletas, atravessamos a ponte metálica Stangerova Cuprija.
Havia outros nove túneis cheios de morcegos pelo caminho, mas pelo menos eles ofereciam algum alívio para o calor infernal. Toda vez que as nuvens encobriam o sol, era uma festa. Cruzamos com um ciclista alemão vestido a caráter, como se fosse participar da Volta da França, que ia na direção oposta, e nosso grupo, meio molambento, crivou-o de perguntas:
– Quantos túneis mais há pela frente?
– Quando a trilha volta a ser pavimentada?
E de Vedran:
– Onde é a próxima parada que vende cerveja?
O sujeito olhou para a gente, desconfiado, e só disse:
– A uns 40 quilômetros, acho.
Duas horas depois, chegamos a Ravno e demos entrada no Stanica Ravno, uma antiga estação de trem que foi transformada em hotel no ano passado – e a primeira coisa que fizemos, obviamente, foi sentar na parte externa e pedir uma rodada de cervejas.
Naquela noite, a última que passaríamos na Bósnia antes de cruzar a fronteira, nos refestelamos com a carne grelhada e o vinho local no restaurante do hotel, comemorando o fim de nossa aventura vampiresca.
Cereja, hibisco, groselha, orégano. E cerveja!
Começamos o dia seguinte com o café da manhã no Gostinica Zavala, outra estação que foi transformada em restaurante. Lá dentro, uma foto do dia em que o Trem Ciro chegou ao vilarejo de Zavala, em 1901. Comemoramos o fato de a maior parte do caminho à nossa frente ser asfaltado e relativamente plano.
De vez em quando, Darko parava para pegar algo das árvores ou das plantas no acostamento – cereja ácida, hibisco, groselha, orégano – e oferecia para a gente. Aí está uma das vantagens de viajar ao lado de um chef. Seguimos a curva longa e suave pelo Popova Polje, um dos maiores vales da Bósnia, onde as placas começaram a surgir no alfabeto cirílico. Estávamos entrando na Republika Srpska, uma faixa de terra sérvio-bósnia semiautônoma, resultado do compromisso que acabou com a Guerra da Bósnia: o Acordo de Dayton, de 1995.
Depois de passarmos pelo vilarejo de Hum, uma confusão meio lúgubre de vacas ruminantes e construções do século 19 abandonadas, muitas em estado de abandono, começamos a ver placas meio assustadoras à beira da trilha, com um crânio e dois ossos cruzados, e a palavra “mina” em cirílico. A seguir, demos de cara com um grupo de sujeitos usando o que pareciam ser coletes à prova de bala, parados, fumando e papeando. Eram membros de uma equipe bósnia da Norwegian People’s Aid, uma ONG que localiza e desativa minas terrestres. O líder do grupo, Nerven Stonic, disse:
– Estamos tentando livrar essa área das minas com a esperança de abri-la ao turismo, melhorando-a para que pessoas como vocês possam passar sem problemas.
Foi quando Vedran perguntou se eles tinham água. Stonic respondeu:
– Se tivéssemos, certamente já teríamos oferecido.
Vedran retrucou, convidando:
– Que tal uma cerveja geladinha?
Stonic riu e disse:
– Seria ótimo, mas com esse tipo de trabalho que fazemos seria altamente questionável beber durante o expediente.
Pegamos nossas magrelas para os últimos oito quilômetros antes da fronteira bósnio-croata. Em Uskopje, hoje abandonada, passamos pela estação ferroviária, cheia de vacas. Então, na cidadezinha de Ivanica, chegamos à divisa, com aquela sensação estranha de estarmos espremidos entre os automóveis velozes.
Depois de uma rápida verificação nos passaportes, descemos um caminho asfaltado, mas íngreme, que nos levou direto para o Cais Gruz, em Dubrovnik. Passamos pela antiga estação de onde saiu Ciro para sua viagem inaugural e fomos direto para a cervejaria Dubrovnik Beer Company, onde brindamos com a última cerveja geladíssima.
– É tudo rock’n’roll – brindamos.