O agricultor e estudante Guilherme Velho Vieira, 20 anos, orgulha-se do vizinho ilustre — distante cerca de 1 quilômetro da casa onde ele vive desde o nascimento. Sempre que pode, o jovem costuma visitá-lo para se deslumbrar com o cenário único visto do quintal ao lado. Guilherme é o morador mais próximo do ponto mais alto do Estado, o Pico Monte Negro, a 1.403 metros de altitude, em São José dos Ausentes, nos Campos de Cima da Serra.
No entorno do monte, de 80 metros de altura, está localizado o cânion de mesmo nome, cuja vista — se o céu estiver limpo — alcança o mar, em Araranguá (SC). Pertencente à família arrendatária dos hectares que incluem a borda do precipício, Guilherme conta jamais ter se importado com a falta de uma vizinhança movimentada — os moradores mais próximos estão a cerca de 2 quilômetros da Pousada Fazenda Aparados da Serra, criada há 14 anos pelos pais do jovem e hoje administrada por ele.
— Muitas pessoas pensam que aqui é o fim do mundo. Penso diferente delas: a gente está no começo do mundo porque estamos em cima — argumenta o rapaz, aos risos.
Quando criança, Guilherme precisava acordar ainda mais cedo para estudar na escola na localidade de Silveira, distante 20 quilômetros por estrada de terra. Era o momento de aproveitar para brincar com mais crianças. Em casa, quando não estava na companhia da irmã, três anos mais nova e hoje casada, dividia as brincadeiras com um primo, que mora a 3 quilômetros.
Nas horas vagas, costumava percorrer a pé e a cavalo os 60 hectares dos Velhos Vieira e outros cerca de 500 arrendados pela família. Conforme a estação do ano, as brincadeiras precisavam ser adaptadas. No verão, quando a temperatura média na região fica entre 25°C e 28°C, ele gostava de dar um mergulho numa cachoeira próxima. No inverno, época em que os termômetros despencam no lugar considerado o mais gelado do Estado, a circulação era na volta de casa porque a geada demorava a derreter nos campos. Guilherme garante já ter pego até -15ºC. E é o frio, acredita, o principal limitador para o lugar atrair novos habitantes.
— Nem todas as pessoas conseguem sobreviver aqui porque não se adaptam ao clima. Mas me passa várias vezes pela cabeça que vivo no topo do Estado, e isso não é para qualquer um — gaba-se.
Há três anos, a família decidiu cercar mais de três quilômetros da borda do cânion. Inicialmente, não foi pensando nos turistas, mas nas 150 cabeças de gado que gostam do pasto mais verde próximo ao abismo. No ano passado, mesmo com o local cercado, duas vacas ultrapassaram a cerca de arame farpado e despencaram no fundo — cuja profundidade é de 700 metros.
— Já conseguimos salvar algumas que caíram e ficaram penduradas nas paredes do cânion. A gente subiu com cordas. Mas teve caso de a vaca ficar num cantinho muito pequeno e não conseguirmos salvar. A carne acabou consumida pelos nossos vizinhos corvos, que têm ninho para todos os lados — revela Guilherme.
Distantes dos problemas
Responsável pela administração da pousada, o jovem ainda dedica-se à lavoura com plantações de hortaliças, grãos e frutas. Parte dos produtos são consumidos na propriedade, que tem 50 leitos. O restante é revendido no comércio local.
Entre as vantagens de viver quase ao lado de um cânion, Guilherme aponta o silêncio e, ao mesmo tempo, a chance de conhecer pessoas de diferentes partes do Brasil e do mundo — que visitam o local repleto de matas, montanhas, cascatas, arroios e aves de diferentes espécies.
— A tranquilidade deste lugar é a melhor coisa que existe. Ficamos distantes dos problemas e ainda tenho a oportunidade de fazer novos clientes e amigos. Eles acabam se tornando da família. E a amizade sempre conta — resume Guilherme.
Solteiro, Guilherme não é um jovem baladeiro. O lugar mais distante fora do Estado que já visitou foi Florianópolis, em Santa Catarina, distante de casa 280 quilômetros e mais próxima do que Porto Alegre, a 330. Guilherme só faz questão de deixar a localidade se for para ir a algum rodeio na região. Neste semestre, as saídas passarão a ser mais frequentes. Ele começou a cursar a faculdade de Agronomia em outra cidade.
— Vou estudar aqui! — revelou, durante a entrevista a GaúchaZH.
Como não há universidades em São José dos Ausentes, a repórter perguntou o que significava "aqui". O jovem, prontamente, respondeu:
— Em Vacaria.
A cidade citada por ele fica a 140 quilômetros de Ausentes. Porém, para Guilherme, um acostumado a longas e incomuns marcas e distâncias, Vacaria é um lugar muito próximo.
Saiba mais
- O pico Monte Negro fica distante 45 quilômetros do Centro de São José dos Ausentes.
- O caminho principal é a estrada municipal Silveira, que é de chão batido.
- As placas ao longo do caminho indicam restaurantes e pousadas, além de outros atrativos turísticos.
- Para ter acesso ao cânion é preciso caminhar cerca de 500 metros por uma trilha formada por terra, pedra e trechos com gramado.
- O carro deve ser deixado antes de uma cancela que proíbe a circulação de veículos na área mais próxima ao precipício.