O GPS nos mandou ir para o interior e atravessar as montanhas da Martinica se quiséssemos chegar às praias de areia preta de Saint-Pierre, situada na costa norte, até o meio-dia – e lá fomos nós, saindo da casa alugada em que estávamos hospedados, com cadeiras e uma geladeirinha no porta-malas e as crianças devidamente protegidas pelo cinto no banco de trás.
Cerca de uma hora depois, a estrada ficou mais estreita, as copas das árvores, supercerradas. Tivemos de desacelerar o utilitário três vezes para atravessar os riachos que desciam precariamente pela encosta da montanha, até que finalmente tivemos de parar de vez – onde uma placa nos dizia que tínhamos chegado à Forêt de Rabuchon. A estrada se transformara em trilha.
À nossa frente, uma verdadeira revolução natural: mognos centenários, samambaias quilométricas, torres de bambu e flores de todo tipo, incluindo ixoras, helicônias e o bastão-do-imperador. Deixamos então as cadeiras para trás, rumo a uma caminhada não planejada, primeiro atravessando um córrego sobre uma ponte suspensa de corda e fios de aço rumo aos cinco picos vulcânicos conhecidos como Pitons du Carbet.
Aquela não era a praia de areia escura que nossa família esperava, mas me vi ensinando uma palavra nova às nossas filhas pequenas. "Serendipidade", disse, repetindo a palavra várias vezes, devagar. "Significa uma surpresa, um acaso com final feliz."
Martinica, a ilha francesa rústica no extremo sul do Caribe, é exatamente esse tipo de lugar; o tempo todo, durante a semana que passamos lá, em fevereiro, tivemos pequenas surpresas agradáveis como essa.
Entre elas, a Península Caravelle, na porção oriental da ilha – intocada, estendendo-se por mais de onze quilômetros no Oceano Atlântico –, que oferece não só uma série de praias maravilhosas com quiosques de comidinhas excelentes, mas também uma paisagem de quilômetros e mais quilômetros de canaviais e pradarias de mato alto, além de um lugar chamado Château Dubuc, fazenda de cultivo de café e cana do século XVIII, antes de alcançar uma escola de surfe, a Bliss.
Há também Les Trois-Îlets, do outro lado da ilha, uma coleção de cidadezinhas chiques, mais movimentadas, onde as águas são mais calmas, com wine bars, restaurantes exclusivos e boulangeries para fazer a alegria de qualquer francófilo.
Ficamos impressionados com a capital, Fort-de-France, que tem o Grand Marché, mercado coberto movimentadíssimo que data de 1885, onde é possível comprar uma infinidade de frutas, legumes, verduras, especiarias crioulas, rum de produção local e artigos de outras ilhas, bem como locais onde é possível ver e ser visto; além dele, há o bar do Hotel L'Imperatrice, de frente para o parque central da cidade, onde é comemorado o carnaval – que, dependendo do ano, cai em fevereiro ou março.
A Martinica, assim como Guadalupe, ali ao lado, é um departamento ultramarino insular francês, ou seja, é parte formal do país, situação que ajuda a criar um padrão mais alto de vida do que em outras regiões do arquipélago. Além disso, tem uma população grande o bastante para, às vezes, fazer a gente achar que está realmente na França, espremida entre os supermercados Carrefour, as concessionárias Renault e Citroen e com direito até a uma versão das Galleries Lafayette.
Fort-de-France é um lugar insólito para o Caribe: ali, por exemplo, fica a Bibliothèque Schoelcher, obra estupenda em ferro batido, madeira e vidro, originalmente construída em Paris para a Feira Mundial de 1889 que foi desmontada, enviada para a ilha e instalada de frente para o parque principal da cidade, La Savane.
As ruas são bem movimentadas durante o dia (ao contrário da tranquilidade da noite), com uma mistura de ilhéus e turistas recém-desembarcados dos navios de cruzeiro. Com uma população de cem mil habitantes, é grande o bastante para ter uma classe profissional que suporta, com a ajuda do governo francês, um lugar como o Tropiques Atrium, centro de artes visuais, música e dança.
A ilha, com 80 quilômetros de comprimento e 35 no ponto mais amplo, tem quase 40 por cento de seu território coberto por florestas; só tem um resort all-inclusive, o Club Med Buccaneer's Creek, o que significa que, se você quiser conhecê-la, vai ter de sair para explorá-la.
E, embora seja parte intrínseca da França – a maioria dos visitantes é francesa, ou seja, muitas vezes você fica dias sem cruzar com um norte-americano –, ela também tem história e cultura bem ricas. Na verdade, essas tradições estão se tornando mais proeminentes de uns anos para cá, graças aos jovens que querem resgatar suas raízes, como Renaud Bonard, que já foi topógrafo e, depois de um acidente de moto, resolveu abrir um pequeno centro de dança, o Lakou A, em Gros Morne, no interior.
Fomos até lá num dia em que Bonard estava recebendo um grupo de estudantes do estado de Nova York e ofereceu uma demonstração de bèlè – dança e show de percussão afro-crioula que nasceu no século XVIII, quando o solo ainda era arado por escravos, e que continua popular ainda hoje, em certos clubes sociais locais.
"É essa ligação forte com a terra que me define como pessoa. É a herança da Martinica", Bonard explicou, caminhando no terreno onde cultiva laranjas e maracujás.
Chegar à Martinica, entretanto, tem lá algumas complicações. No fim de março, a aérea de baixo custo Norwegian Air suspendeu os voos diretos superacessíveis com saída de Nova York, Montreal e Forte Lauderdale, na Flórida, para estabilizar as finanças, depois de contrair muitas dívidas e de quatro anos de operação dos EUA. Com isso, o único jeito de chegar à ilha sem escalas é a partir de Miami, pela American Airlines.
A ilha também não está cem por cento preparada para o volume de visitantes que recebe no inverno, e que vem aumentando a cada ano: em 2018 havia pelo menos 540 mil viajantes em estada, sendo apenas três por cento desse número de norte-americanos. Os engarrafamentos diários na região de Fort-de-France são comuns, como também outras inconveniências pequenas, mas não menos irritantes, como a longa espera no minúsculo escritório da agência de aluguel de carros do aeroporto.
Por essas e outras é que é preciso pensar bem e decidir com cuidado o local de hospedagem, para facilitar a locomoção. Les Trois-Îlets, que fica exatamente do outro lado da baía em relação ao porto de Fort-de-France, talvez seja a opção mais conveniente, já que dali, com uma rápida viagem de balsa, você chega à capital, onde a maioria das atrações está a curta distância de caminhada. Há também vários imóveis para alugar nessa área.
E abriga algumas das praias de que mais gostamos: Anse d'Arlet, minúsculo vilarejo pesqueiro, que tem um passadiço ao longo da Grand Anse d'Arlet, onde ficam também várias lojinhas e restaurantes de frutos do mar; no L'Amandier des Îles, comemos um mahi-mahi fabuloso com alcaparras, limão e cebola. Provamos o Fricassée de Lambis, uma especialidade crioula preparada com o molusco, suco de limão, sal, alho, pasta de pimenta e tomate, e alguns daiquiris com rum local. O Mar do Caribe fica a poucos metros da casa, e por isso dá para ficar à vontade à mesa, mesmo com as meninas brincando entre a areia e as marolas, ao lado de outras famílias que frequentam a praia nos fins de semana.
À noite, vale visitar cafés como La Pause, que funciona em um pátio enorme sob um guarda-chuva gigante. No Le Bistrot d'en Face, graças à música em volume baixo, é possível ouvir dezenas de diálogos do público, praticamente só em francês, enquanto os garçons correm para lá e para cá levando pratos como lulas e mexilhões gratinados. A comida do Le Pause não é grande coisa, talvez porque nossa preferência sejam os restaurantes crioulos locais e não os bistrôs franceses – mas impressionante mesmo na noite em que estivemos lá foi a nítida sensação de estarmos na própria França.
"É realmente como se fosse um pedaço transplantado daquele país. É claro que, se se aprofundar, vai encontrar um lugar único, que tem tudo para conquistar você", afirma Alain Vallaud, da Normandia, que estava viajando pela ilha com a namorada, Isabelle Patry.
Do lado oposto fica a península de La Caravelle, que é uma reserva natural. Antes de chegar a ela, entretanto, você passará por alguns quilômetros de canaviais e campos verdejantes até onde a vista alcança, até se deparar com o Atlântico. Ela talvez seja mais bem definida pelos surfistas que adotaram a área como seu ponto de encontro mais distante, já que as ondas ali são mais violentas, há menos hotéis e menos gente, mas, ainda assim, belíssimos lugares onde se hospedar durante alguns dias. E há pelo menos duas trilhas para caminhada, com visões do mar e da ilha de tirar o fôlego.
É Caribe com um toque europeu.
FABIAN ENGEL
surfista
Foi onde conhecemos Fabian Engel, surfista português em visita com a mulher, cuja única reclamação era o vento, que soprava de tal maneira que derrubava as ondas. Como muitos outros, uma única frase sua resume a ilha: "É Caribe com um toque europeu."
Nesse dia paramos para visitar o Château Dubuc, que já abrigou plantações enormes de cana e café. As ruínas da sede da fazenda, a área de ordenha e de beneficiamento da cana, a antiga senzala e outras estruturas foram reformadas com verbas da União Europeia. Dali você pode seguir até o mangue e, de lá, alcançar as encostas praticamente desertas que oferecem vistas deslumbrantes da paisagem e do Atlântico.
Acabamos em uma praia tranquila na península de Caravelle chamada L'Anse L'Etang, onde há algumas mesas para piquenique, alguns quiosques e casas de veraneio que podem ser alugadas. Há também um hotel butique requintado recém-inaugurado, o French Coco, que me lembrou das opções de hospedagem mais exclusivas de St. Barts.
La Suite Villa, outro hotel butique de Les Trois-Îlets, conta com um chef francês, Florent Boucher – e foi graças a ele que fizemos uma refeição extraordinária, com atum bluefin grelhado, caviar de berinjela, cebolas carameladas e maracujá.
Mas foram os pratos mais simples, como o peixe frito, o frango assado e outras especialidades crioulas que realmente se destacaram. Não há nada pretensioso na Martinica e foi por isso que gostei tanto de lá.
Terminamos a viagem em Saint-Pierre, uma cidadezinha modorrenta à beira-mar que foi destruída, em 1902, por uma erupção do Monte Pelée. As praias de areia negra de hoje são um lembrete inegável daquela ocasião violenta, em que se calcula que trinta mil pessoas perderam a vida.
Para voltar, simplesmente ignoramos o GPS, seguindo pela estrada costeira.
Por Eric Lipton