Foto: Rebecca Marshall/NYTNS
Como acontece com o pequeno comércio em toda a França, Manu é altamente respeitada - nesse caso, por seu conhecimento no preparo do fondue. Secando as mãos no avental xadrez, ela me passa a receita com entusiasmo e cuidado, quase como se fosse uma médica falando de uma receita. Foto: Rebecca Marshall/NYTNS
E com razão, afinal aquele era um destino tão famoso pelas pistas quanto pelos queijos; assim, na manhã seguinte, relutante, aluguei um par de esquis. Guy tinha me dito que o restaurante da estação, o Le Criou, fazia um tartiflette sensacional (outra especialidade das montanhas que leva, entre outras coisas, Reblochon derretido, um queijo suave, cremoso, com um toque leve de nozes). Ainda bem, pensei eu enquanto descia as encostas íngremes mais parecendo um limpa-neve, que aquela não era uma estação de exibicionistas. Infelizmente, quando cheguei ao restaurante, o tartiflette já tinha acabado. Meu consolo era que estávamos pensando em ir para o vilarejo de Le Grand-Bornand que, segundo fiquei sabendo, era o melhor lugar para saborear a iguaria.
Entretanto, eu não poderia ir embora de Bonneval sem conhecer Lucien Blanc, conhecido por Lulu, que faz o melhor queijo de cabra do vale, pelo menos segundo Guy. Eu o encontrei na cave de seu chalé antigo, no centro do vilarejo, com uma das quatro filhas. Foto: Rebecca Marshall/NYTNS
- No verão, as montanhas ficam cobertas de flores - conta ele.
O rosto enrugado aberto num sorriso enquanto cortava um de seus queijos, do tamanho de um disco de hóquei.
- O leite tem cheiro de flor, o queijo tem gosto de flor. É o sabor da liberdade - completa.
Foto: Rebecca Marshall/NYTNS
No jantar daquela noite, no restaurante de vinte lugares num vale chamado La Ferme de Lormay, meu marido e meus filhos contaram suas peripécias durante a tarde de esqui entre aldeias alpinas e uma capela de pedra do século XVII, todas desertas durante o inverno.
Enquanto eles esquiavam, descobri que a vida do lugar gira em torno não só do queijo como das vacas também, começando pela padaria onde Bruno Betemps, o dono, faz baguetes cobertas de Reblochon, até o museu local, que exibe os equipamentos antigos de fabricação de queijo, passando por uma estação de rádio na Internet chamada Radio Meuh (Rádio Mu, como o som de um mugido), criada por um radialista de La Clusaz, a estação de esqui chiquérrima que fica no vale vizinho. Foto: Rebecca Marshall/NYTNS
Depois disso ficamos em silêncio para apreciar a panela cheia de batatas, bacon e creme de leite mergulhados no Reblochon derretido. O chef e dono da casa, Albert Bonamy, veio à nossa mesa, na frente da lareira de pedra original do século XVIII onde ele grelhava filés grossos como o meu punho e perguntou, modestamente:
Já vou avisando logo de cara que não sou esquiadora, mas quando minha cunhada e seu marido sarado, que é de Grenoble (e praticamente cresceu sobre esquis), sugeriram que a reunião familiar do ano passado fosse nas montanhas francesas, fiquei tão animada quanto meu marido e meus filhos.
Por quê? Enquanto eles vão atrás da neve mais fofa e dos desafios das pistas mais complicadas de Bonneval-sur-Arc, a uma hora de Genebra, na região de Savoie, sudeste da França, eu pretendo ir atrás de Beaufort, chèvre e reblochon. Vou ao paraíso do esqui para comer queijo.
Foto: Rebecca Marshall/NYTNS
O vilarejo tem apenas 255 moradores distribuídos num punhado de casas de pedra que sobrevivem ao inverno alpino como barcos numa tempestade. Passeando por suas ruazinhas e vielas, senti o cheiro de feno quente e ouvi o barulho das cabras anunciando o après-ski mais movimentado do local: a fromagerie do vale.
O queijo, assim como o esqui, é uma força poderosa que movimenta a economia local - por isso não foi surpresa ver a fila saindo da queijaria e passando pelo Museu do Patrimônio Histórico da Montanha ali ao lado. Tive bastante tempo para ler a respeito da cooperativa, cuja sede fica na cidade vizinha, em Lanslebourg, e produz 381 toneladas métricas de Beaufort por ano (o equivalente a dez mil peças) a partir do leite fresco de 45 rebanhos espalhados pela área.
O Beaufort, primo raro do Gruyère que, por lei, só pode ser produzido nesta região, é muito apreciado pelos "queijófilos" franceses e eu estava ali, direto na fonte. Quando finalmente cheguei ao balcão, no qual havia expostos vários tipos de queijo, a dona, Manu Courtet, me ofereceu uma fatia da peça recém-aberta. Macio, saboroso e cheiroso, o gosto permaneceu na minha língua muito depois de eu ter comido tudo.
- Esfregue um dente de alho na panela de fondue - instrui ela.
- Derreta alguns pedaços de Beaufort, Comte e tomme de Savoie, acrescente um copo de vinho branco seco e um tiquinho de kirsch. Mexa - acrescentou.
Bom saber, mas eu queria a versão de um especialista; assim, naquela noite nossa família foi ao Auberge d'Oul, que, apesar de ser escondido num porão, me foi altamente recomendado por Guy Ginet, o simpático ex-vereador que conheci de manhã no café da vila. Aposentado e fanático por tudo o que se refere ao esqui, ele se tornou meu guia oficial de tudo o que era relacionado a queijo na cidade.
O restaurante é tão minúsculo que não demora nada para você começar a tratar os outros clientes pelo primeiro nome, como velhos conhecidos, o mesmo valendo para os donos: Maryse, que comanda o salão para doze pessoas e seu marido, Christophe, o chef. Meu cunhado (aquele de Grenoble), ainda animado com o dia passado "nas pistas mais fofas do mundo", não demorou a perceber os centenários sapatos especiais para andar na neve no beiral da janela
- Iguaizinhos aos que meus pais tinham em casa - comentou.
Todo mundo ficou quieto quando Maryse acendeu o fogareiro sob a panela de fondue da nossa mesa. Experimentamos as versões com Savoyard (tradicional e delicado, com o vinho branco quebrando o gosto forte do queijo) e cogumelo porcini (mais salgada), mas a campeã, de longe, foi a sopa de Beaufort que, segundo a explicação de Maryse, consistia apenas no queijo derretido, creme de leite, gema de ovo e alho. Ainda bem que eu estava mais preocupada com a minha habilidade (limitadíssima) com os esquis do que com o nível do meu colesterol.
Lulu tem um brilho bem-humorado nos olhos verdes e uma cabeleira desgrenhada (ainda toda preta, apesar dos 52 anos de idade). Ele me contou que, continuando a tradição secular da família, ele e as filhas levam as cem cabeças de gado que possuem para os pastos acima de Bonneval todo mês de junho, onde ficam até o fim de agosto.
No dia seguinte deixamos o vilarejo para trás rumo a Le Grand-Bornand, terra do tartiflette.
Logo depois que chegamos, conhecemos Regine Missillier, da terceira geração de uma família de queijeiros.
- Conhecemos todas as nossas vacas pelo nome - disse ela, orgulhosa, mostrando o local onde o queijo era produzido, imaculadamente limpo (a maioria dos donos mostra as instalações, é só ligar antes pedindo).
De fato, não demorou para nos apaixonarmos por um bezerrinho recém-nascido chamado Genepy. Missillier e a irmã ordenhavam "as meninas" duas vezes por dia, às cinco da manhã e às 17h45 - e como os outros 54 estabelecimentos do vilarejo, elas também produzem Reblochon.
- Vendemos o nosso queijo aqui na fazenda e na feira que tem em Le Grand-Bornand toda quarta de manhã - explicou.
Le Grand-Bornand é outra comunidade alpina que se protege do desenvolvimento desenfreado preservando seus chalés de mais de 400 anos. Como Bonneval, Le Grand-Bo', como é chamado, é um vilarejo tradicional com boa estrutura tanto para esqui cross-country como para o de descida livre (dali já saíram vários campeões). As encostas se espalham desde o pico do Tête des Annes, de 1.859 m de altitude, perto de onde nasceu o Reblochon, até a floresta e as clareiras onde, no verão, "as meninas" passam a maior parte do tempo pastando.
- C'est bon? - e recebeu nossos sorrisões como resposta. Mais tarde, passando por um Peugeot velhinho que estava no estacionamento, vimos um adesivo que resumia tudo: "No tartiflette nós confiamos".
Guia do queijo
:: Para maiores informações, visite os sites de Bonneval-sur-Arc (bonneval-sur-arc.com) e de Le Grand-Bornand ou pelo site.
:: A Cooperativa Leiteira Haute-Maurienne Vanoise (36, rue de l'Arc, Lanslebourg; 33-4-79-05-92-79; coophautemaurienne.fr) oferece passeios diários pelas instalações de produção de queijo.
:: Auberge d'Oul, Vieux Village, Bonneval-sur-Arc; (33-4) 79-05-87-99 ou pelo site.
:: Chalet-Hotel Les Fermes de Pierre & Anna, Les Plans, Le Grand-Bornand; (33-4) 50-51-54-99 ou pelo site.
:: La Ferme de Lormay, Le Grand-Bornand; (33-4) 50-02-24-29 ou pelo site.