Grandes esferas escuras aparecem, de tempos em tempos, na praia de Jardim do Éden, balneário do sul de Tramandaí, no Litoral Norte. Ali e também a 110 quilômetros de distância, em Torres, formações estranhas surgem nas dunas, como se um gigante tivesse arrancado, à unha, parte da areia nas proximidades dos molhes do Rio Mampituba. No sul do Estado, faróis de navegação e guaritas de guarda-vidas mudaram de lugar.
Parecem fenômenos sobrenaturais, mas não é nada disso. O fato é que longos trechos de areia no litoral do Rio Grande do Sul estão encolhendo.
Mesmo quem pega a freeway apenas no verão já deve ter enfrentado dificuldades para plantar seu guarda-sol à beira-mar. O trecho de areia branca e fofa, normalmente perto dos calçadões, está menor, o que obriga muitos banhistas a disputar outras áreas na orla. Em uma delas, a professora aposentada Mara Cardoso, 57 anos, de São Leopoldo, tomava chimarrão com a amiga, Cleuza Callai, 62, na terça-feira, dia 12, em Tramandaí. Ela e outros cerca de 20 veranistas concentravam-se em uma área de 30 metros quadrados próxima ao acesso à praia pela Avenida da Igreja.
– A gente observa que não é mais como antigamente. Parece que diminuiu – comenta Mara.
Entre um mate e outro, alguém grita:
– Vem a onda!
É a senha para o habitual corre-corre: uns erguem a canga do chão, outros seguram o guarda-sol, pegam chinelos, boné, livros, revistas. Faltam dedos para agarrar tantas coisas quando a maré sobe. Passada a onda, com o mar delimitando sua nova área, os veranistas voltam a se acomodar, agora ainda mais perto do calçadão. Até a próxima subida. E repete-se o ritual.
– Tem dias piores – diz Mara.
A redução da faixa de areia nas praias ficou mais visível desde a grande ressaca de outubro de 2016, que alterou a morfologia litorânea e retirou toneladas de sedimentos da orla, deixando dunas mais estreitas e favorecendo o avanço do mar em pontos localizados. Há trechos nos quais a água teria ocupado pelo menos 10 metros da antiga faixa de areia, segundo pesquisadores.
Em 2017, não houve ressacas tão fortes quanto aquela. Mesmo assim, a ação do mar provocou erosão, em novembro, de áreas da Praia Grande, em Torres, onde o mar esculpiu um paredão nas dunas. Sentada próxima à guarita número 1 do litoral gaúcho, a empresária Evanir Maria Scheffer, de Caxias do Sul, surpreendeu-se ao ver a formação. Ela não tinha dúvida de que a praia havia diminuído.
A surpresa se deveu à proximidade entre o mar e os cômoros.
– Em dias de ressaca, preciso colocar a cadeira sobre as dunas.
Fico olhando aqui de cima. Parece um rio. Estou com 42 anos e nunca havia visto isso – conta.
A aparência é semelhante à das falésias, observadas em outras regiões, especialmente no Nordeste, e que consistem na rocha esculpida pelo mar, pela chuva e pelo vento, ao longo de milhares de anos. Mas os especialistas salientam que o fenômeno gaúcho é outro. A cicatriz observada na Praia Grande, em Torres, e que deve seguir durante todo o verão, é fruto da ação da ressaca, que removeu milhares de toneladas de areia da praia.
Conforme o geólogo Elírio Toldo, do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica (Ceco) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o volume retirado até pode retornar naturalmente. Mas o processo demora vários anos:
– E nem sempre isso ocorre.
Pode acontecer de a praia perder total ou parcialmente o volume erodido, de modo que, ao longo do tempo, teremos um recuo (diminuição) da praia.
Não é apenas devido à maré alta ou às tempestades e aos outros dos chamados eventos extremos que a praia está encolhendo. Há anos, pesquisadores da UFRGS observam o processo de erosão natural. O fenômeno é mais visível em balneários do Litoral Médio (entre São José do Norte e Dunas Altas, em Palmares do Sul), zona que vem perdendo sedimentos nos últimos 5 mil anos, tempo geológico considerado recente por pesquisadores acostumados a trabalhar com observações em escalas milenares.
Toldo compara fotos do Farol da Conceição, em São José do Norte:
– Essa região não tem mais fonte de areia. Cerca de 80% do Litoral Médio está perdendo areia.
Examinando as imagens da praia de 1987, as de 1997 e as de 2013, e as do farol que foi construído em 1922 e caiu nos anos 1990, é possível perceber o avanço erosivo sobre a casa do faroleiro. Atualmente, o novo farol se encontra dentro do mar.
– E em breve deverá tombar também – sentencia Toldo.
Outro estudo, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), coordenado pelo oceanólogo Lauro Calliari, do Laboratório de Oceanografia Geológica, concluiu que 50% das praias do litoral gaúcho estão diminuindo. Hermenegildo, no Sul, é o ponto mais crítico, porque as casas estão muito próximas do mar. O trabalho, de 2011, apontava que a carência de areia chegava a 1 milhão de metros cúbicos, o suficiente para encher 170 mil caminhões.
Os especialistas usam a imagem de uma autoestrada para explicar a movimentação de areia entre uma praia e outra. É que a faixa que vai de La Coronilla (Uruguai) ao Farol de Santa Marta (Santa Catarina) tem formação geológica semelhante, sem acidentes geográficos – o que explica o famoso "retão" formado por praias em mar aberto. A energia das águas e a quebra das ondas retiram e reposicionam a areia dessas praias, em um vaivém de sedimentos. Ou seja, é o mar que controla o trânsito da "autoestrada". O que vem acontecendo é que o Litoral Médio está perdendo areia – que está migrando para o Litoral Norte.
– Quando a onda quebra, ela movimenta toda a areia que está na faixa de arrebentação. Essa areia se espalha, indo para o Sul ou o Norte, dependendo de como a onda se aproxima da praia. Nesse tráfego, como as ondas do Sul têm mais força, o Litoral Norte acaba sendo beneficiado com o recebimento de areia – explica Toldo.
Para alguns pesquisadores, a erosão natural pode estar sendo agravada por eventos como as tempestades, que aumentam as ressacas.
– Há uma presença maior e mais frequente de ciclones próximos da costa. Então, há setores nos quais a morfodinâmica está acentuando a erosão. Estamos tendo mais ressacas – analisa o geógrafo Nelson Gruber, vice-diretor do Instituto de Geociências da UFRGS.
Esse aumento das ressacas faz aflorar, com frequência, em Jardim do Éden, as tais esferas que parecem pedaços de carvão e que foram citadas no início deste texto. Trata-se de um barro preto que vem do fundo de uma laguna que existia ali havia 6.250 anos e que estava encoberta por um fio de areia "retirado" pelo mar.
– O piso da laguna começa a aparecer, como se fosse o piso da lagoa de Tramandaí, por exemplo – explica Gruber.
No último dia 12, quando ZH esteve em Jardim do Éden, era possível observar o barro preto próximo à guarita 172. São estruturas conhecidas de frequentadores do balneário.
– Tem dias em que há verdadeiras crateras de barro preto – conta Adi Correia, 55 anos, 18 deles trabalhando como quiosqueiro no local.
Outra evidência da erosão aparece nas próprias estruturas dos guarda-vidas, cujas bases de concreto estão encravadas, hoje, em grande parte do tempo, dentro do mar. Correia precisou mudar de lugar seu quiosque algumas vezes. Na última, deslocou a estrutura cerca de 10 metros em direção às dunas.
Santa Catarina também apresenta trechos de erosão e escassez progressiva de areia. Estima-se que, em 50 anos, a Praia da Armação, em Florianópolis, ficou cerca de 40 metros menor, com grande aproximação do mar às construções. A faixa de areia da Praia da Caldeira, no sul da Ilha de Santa Catarina, desapareceu. Há meses o mar tem avançado sobre a orla.
– Podem dizer que Santa Catarina vai se recompor, mas a que custo? Em quanto tempo? E será mesmo que vai se recompor, se estamos tendo anos sucessivamente mais quentes? Quem garante alguma coisa hoje em dia? – questiona Gruber.
Outro agravante são os chamados "sumidouros de areia". Há vários no litoral gaúcho, como os campos de dunas de Cidreira e Itapeva. São construídos naturalmente, pela ação do vento, com a areia "removida" da praia pela atividade do mar.
– Se há duna na praia significa que ali há um sumidouro de areia. A duna protege a praia, mas, por outro lado, vive da areia da praia – diz Toldo.
Menos visíveis são os sumidouros que arrastam areia para o fundo do mar. No caso, correntes marinhas carregam toneladas oceano adentro.
– Nesses sumidouros, o balanço é sempre negativo para a praia. Parte da areia volta, mas há outra parte que fica no mar. Por isso, chamamos de sumidouro. É um lugar de perdas irreversíveis – afirma o especialista.
Lembro-me de Cidreira, quando lançava pandorga na infância. Hoje, boa parte da praia foi embora.
NELSON GRUBER
Geógrafo, professor da UFRGS
O monitoramento é a principal alternativa para evitar que algumas praias brasileiras desapareçam.
De acordo com especialistas, a situação no Brasil ainda não é crítica, mas pode se agravar nas próximas décadas com as mudanças climáticas e o aumento do nível do mar, que deve chegar a 50 centímetros apenas neste século. O aumento da faixa de areia é considerado um dos procedimentos para conter o avanço do mar. A "engorda", como é chamada a medida, consiste na alimentação das praias com material retirado do oceano que apresenta características semelhantes aos grãos da areia da praia. Esse processo de recomposição é utilizado na Flórida (EUA), nas praias que sofrem com o constante avanço do mar. Em Santa Catarina, um trabalho semelhante foi realizado em Piçarras, em 2008. A obra custou R$ 2,1 milhões. Há outros projetos mais baratos, segundo Toldo, como fixação de dunas frontais, como as de Imbé e Atlântida Sul.
Embora, na maioria das vezes, seja um processo natural, pesquisadores e veranistas lembram-se com saudade das grandes extensões de areia, em praias como Cidreira e Balneário Pinhal. Ou dos cômoros gigantescos, entre a Avenida Paraguassu e a Lagoa dos Barros, que faziam a diversão dos guris que hoje já estão crescidos.
– Lembro-me de Cidreira, quando lançava pandorga na infância. Se fores lá hoje, vais ver que boa parte da praia foi embora. A olhos vistos – lamenta Gruber.