Um desencontro naquela manhã da terça-feira de Carnaval representou, a um só tempo, salvação e desespero para Silvia Gomes Saraiva. Ao entrar no condomínio de veraneio para pegar a filha, Adriana, de três anos, ela soube que o marido, Gilberto, acabara de sair com a menina em direção à praia. Quando tomava o rumo de volta à beira-mar de Tramandaí, a dona de casa deparou com pessoas correndo, transtornadas, no sentido contrário:
– Caiu um avião! Caiu um avião!
Silvia disparou para a faixa de areia, oito quadras à frente, temendo o pior. Chegou sem fôlego, tentando localizar os dois em meio à multidão convulsa. Gritaria, adultos tirando as crianças da água e recolhendo seus pertences, curiosos se amontoando ao redor do Piper Cherokee de prefixo PT-CLO destruído. Os detalhes do cenário de caos instalado após o acidente que deixou pelo menos 10 mortos e sete feridos, ocorrido às 10h30min de
7 de fevereiro de 1967, ainda são vívidos na memória da aposentada de 74 anos.
– Já faz 50 anos? – surpreendeu-
se Silvia ao atender ao telefonema da reportagem e ser informada sobre o motivo do contato. – Sabe o que é um choque, quando você não sabe o que pensar? Você perde a razão. Fica cega, surda, não sabe o que fazer. Vai perdendo as forças – recordou.
Naquele dia fatídico, Silvia logo descobriria que Gilberto e Adriana haviam escapado – em vez de irem direto à orla, eles passaram primeiro em um mercado. Mas a tragédia chegou muito perto da dona de casa: a aeronave bateu no local onde ela estava minutos antes de sair para buscar Adriana. Dois conhecidos seus morreram.
– Foi horrível. O veraneio terminou. Fomos embora – completou.
Episódio indelével da história tramandaiense, a queda ocorreu em uma manhã parcialmente nublada, de praia cheia e mar limpo. A paisagem era bem outra: não havia ainda tantas construções pontuando a orla, e grandes dunas se elevavam diante do mar. O Piper, pertencente a um industrial de São Paulo que estava a bordo com outros dois passageiros, além do piloto, seguia do sul para o norte, em direção a Imbé. Brincando na água, Claudio Bittencourth, então com 11 anos, ergueu a cabeça e acompanhou a trajetória da aeronave cruzando o céu. Impressionou-se com a baixa altitude.
– Esse avião ainda vai cair – previu.
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Pouco depois de o PT-CLO manobrar para voltar ao sul, ficou evidente que havia algo errado: avançava torto, com a asa esquerda pendente. Na sacada de seu apartamento no Edifício Jardim Tramandaí, o professor Roberto Monte da Rocha se apavorou: teve certeza de que o aparelho se chocaria contra o prédio, o que não chegou a acontecer. Segundo seu relato em reportagem publicada na edição de Zero Hora de 10 de fevereiro daquele ano, ele então desceu até a rua, às pressas, para descobrir o que estava acontecendo. Aproximando-se perigosamente dos banhistas, o Piper quase tocava a água, enquanto o piloto se esforçava para tentar estabilizá-lo. O avião, contou Rocha, conseguiu poupar uma área que concentrava cerca de 5 ou 6 mil pessoas – tivesse caído ali, poderia ter provocado uma matança com saldo de dezenas ou até centenas de mortos. A aeronave continuou perdendo altura e, voando muito baixo, fez as primeiras vítimas: a asa esquerda decapitou Maria Lúcia Albino, e, em seguida, Guilhermina Goettsch Schorn e Raquel Goettsch da Silva também foram fatalmente atingidas.
Depois de colidir contra o solo e capotar mais de uma vez, o Piper Cherokee parou na porção de areia em frente ao Edifício Paulo Hoffmeister, entre a Avenida Engenheiro Ubatuba de Faria e a Rua 12 de Abril. Uma massa de veranistas foi atraída como que por um ímã ao avião caído. Claudio, o menino que palpitara sobre o funesto desfecho, saiu correndo com o pai para procurar a irmã e um tio, que poderiam ter se ferido. Paulo Roberto Fleck Selle, 12 anos, deixou o mar com sua prancha de isopor, atendendo aos apelos da mãe, que o chamava – "Beto! Beto!" – para junto dela.
– Vai explodir! Vai explodir! – desesperavam-se os presentes, muitos jogando água e areia sobre a fuselagem.
Chamas tomaram conta da aeronave
Entre as lembranças mais fortes de Selle, agora com 62 anos, estão o estrondo das capotagens e o ruído provocado, provavelmente, pelo contato da estrutura quente com a água fria do Atlântico.
– Sabe o barulho de uma frigideira com óleo? – explica o engenheiro.
Sentados no banco traseiro, os passageiros José Dario Martins e Jorge Gusmão Duarte sobreviveram à queda, mas não às chamas que tomaram o interior da cabine – com o vazamento de combustível, as labaredas se alastraram para o mar. Ergueram-se nuvens de fumaça negra. Os comandos do painel perfuraram o tórax do piloto, Francisco Pereira Filho, muito machucado também no rosto. Proprietário do Piper, Rubens Rodrigues da Cunha conseguiu se arrastar para fora dos destroços, mas não resistiu. Todo o horror estava à vista do público.
Policiais isolaram a área, afastando os curiosos. Na ausência de ambulâncias, os feridos foram acomodados na carroceria de picapes, mesma solução encontrada para a remoção dos cadáveres. A cena traumatizou o garoto Claudio.
– Os mortos foram empilhados uns sobre os outros – relembra o corretor de imóveis, hoje com 61 anos.
Um C-47 da Força Aérea Brasileira (FAB) transportou feridos do Litoral para Porto Alegre. Três esquifes partiram, também com a FAB, para São Paulo. Walter Peracchi Barcellos, então governador do Rio Grande do Sul, compareceu ao funeral de uma das vítimas.
Um episódio com detalhes nebulosos
Transcorridas cinco décadas, registros do episódio se perderam e detalhes permanecem nebulosos. As memórias das testemunhas são discordantes em vários aspectos. É difícil precisar o número total de mortos e feridos, dadas as discrepâncias de grafia dos nomes em diferentes listas. Existem dúvidas inclusive a respeito da rota do voo – há quem diga que o PT-CLO partiu do território paulista, enquanto outros garantem que saiu de um campo de pouso em Tramandaí.
Pelos dias que se seguiram naquele verão, uma polêmica ocupou a imprensa – "Sobrevivente ferido acusa: piloto passou a noite na farra", noticiou ZH. Depoimentos davam conta de que o condutor do Piper fora visto fantasiado, ingerindo bebida alcóolica, em um baile de Carnaval da Sociedade Amigos de Tramandaí (SAT), horas antes de decolar. Otávio Casagrande, que perdeu uma filha e teve a outra gravemente ferida, lamentou em entrevista ao jornal:
– Somente total irresponsabilidade do piloto e do proprietário do avião causaram um drama de tais proporções. Eu estava na praia, vi tudo, desde as piruetas iniciais até o terrível fim de ferragens retorcidas, gritos de dor e cadáveres espalhados pela areia da praia onde tudo antes era alegria.
À época, a 5ª Zona Aérea estava encarregada de investigar as causas do acidente. ZH contatou diversos órgãos em busca de informações sobre o desfecho do caso, sem sucesso. A Delegacia da Polícia Civil de Tramandaí e a Academia de Polícia Civil (museu, biblioteca e arquivo) não localizaram qualquer documento. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em consultas a mais de um setor, não encontrou referências a um possível processo judicial – uma pesquisa mais completa, incluindo o Arquivo Judicial, não pôde ser concluída até o fechamento desta edição.
Em um comentário recente postado em um blog, sob um texto recordando o acidente, um suposto sobrinho do piloto refuta a versão sobre a presença do tio na festa. A reportagem não conseguiu localizá-lo.
Recolhidos, os pedaços da aeronave ficaram por um tempo no pátio de um prédio da Polícia Civil na cidade. Imagens do avião viraram suvenires, na forma de monóculos ou decorando as residências de moradores. Claudio Bittencourth, durante anos, atormentou-se com as recordações daquele feriadão. Morava em São Leopoldo, em uma rota de aviões para o Aeroporto Salgado Filho, na Capital. Assustava-se sempre que ouvia os potentes motores se aproximando. Na ocasião de sua primeira viagem aérea, aos 24 anos, resistiu a embarcar na aeronave que o levaria até o Mato Grosso. Acabou por se acostumar, empreendendo muitas outras jornadas pelos ares ao longo da vida, no Brasil e no Exterior.
– Depois que você se senta lá dentro e trancam aquela porta, seja o que Deus quiser – comenta Claudio, em sua casa em Imbé, onde vive atualmente.