A sociedade impõe expectativas sobre o papel de pai e mãe que, muitas vezes, não condizem com a realidade das famílias. Para o terapeuta e educador parental Renato Caminha, isso predispõe os pais ao sentimento de culpa, que pode ser negativo para o processo de educação dos filhos. Esse é o tema do livro Mitos da Parentalidade: Livrando os Pais da Culpa Infundada, escrito pelo especialista e lançado em 2023 pela editora Artmed.
Caminha é formado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e atua como educador parental, palestrante, escritor e pesquisador. Criou o protocolo Tríade da Regulação, para tratar depressão infantil e adolescente, e é autor de 20 livros sobre parentalidade, infância e adolescência.
O autor abriu, na quarta-feira (16), a sexta edição da Escola de Pais. A palestra abordou dois dos 10 mitos da parentalidade descritos no livro de Caminha. Em entrevista a Zero Hora, o especialista falou sobre como manter a saúde mental durante o processo de educação dos filhos, garantindo uma boa experiência a todos os envolvidos.
O seu livro fala muito sobre como livrar os pais da culpa infundada. De onde vem esse sentimento e por que ele é um problema?
Porque a sociedade, principalmente para as mulheres, coloca o mito da disponibilidade permanente. No momento em que você tem um filho, você tem que estar disponível para ele o tempo inteiro, de modo integral. Isso contraria a história filogenética da nossa espécie. O bebê humano não foi um ser desenhado pela natureza para ser criado única e exclusivamente por uma pessoa. E a mulher entra em um processo de autossacrifício.
Por exemplo, se uma mãe que teve filho há dois meses se ausenta 40 minutos para ir ao cabeleireiro e deixa essa criança com pessoas de referências emocionais importantes, ela é extremamente criticada. Se a mãe se preocupa em dar atenção para as suas necessidades, ela é criticada. Então, as mulheres já vêm com culpa pela própria natureza, é a história de que nasce uma mãe, nasce uma culpa. Porque a sociedade diz que a gente tem que ter dedicação máxima para o filho, tem que ter entrega máxima para o filho, e o que a gente sabe é que, quanto mais tempo a gente passa cuidando de alguém, o grado é inversamente proporciona: a qualidade do cuidado cai. Porque você começa a desenvolver um processo que se chama exaustão do eu, que tem uma tendência a gerar uma negligência moderada e uma desatenção seletiva.
Isso vem da cultura do filho e é algo que não encaixa. Em momento algum, no momento em que você tem filhos, tem que abrir mãos dos seus desejos, das suas necessidades, da sua individualidade. Pelo contrário, tem estudos mostrando hoje que, quando a gente dilui esse processo no cuidado, que a gente chama de círculo da parentalidade, essas crianças têm mais plasticidade emocional e se desenvolvem, inclusive, com maiores habilidades sociais.
O problema da culpa no processo educacional é que quando você entra culpado, é como se você entrasse em campo perdendo o jogo de 1x0. Você já entra com uma tentativa de reparar alguma coisa. Então, isso faz, muitas vezes, com que os pais tenham dificuldade de impor frustração aos seus filhos e é um processo fundamental do desenvolvimento do cérebro infantil, o treino da tolerância à frustração. É isso que nos faz ser empáticos e a empatia é o que nos faz adentrar e se conectar na sociedade.
Não existe amor incondicional. Incondicional é aquilo que não impõe nenhum tipo de restrição, nenhum tipo de limite.
RENATO CAMINHA
Educador parental
Não é raro ver pais que sentem que não conseguem acertar na criação dos filhos. Existe um sentimento constante de insuficiência atrelado à parentalidade?
O capítulo que abre o livro é uma brincadeira que fiz com a palavra "pai". Eu criei um acrônimo chamado “Pai: Permanente Atestado de Insuficiência”. Nasce uma criança e nascem pais junto. No momento em que a gente nasce na parentalidade, os filhos estão constantemente mostrando que a gente é insuficiente. E a gente tem que lidar com eles. A gente tem que ter também tolerância à situação e o que eu falo no meu outro livro Cabe Um Filho na Sua Vida? (2023, Arte em Livros) é justamente sobre isso. Você está pronto para a renúncia? Você está pronto para não controlar absolutamente nada? Você está pronto para não dar conta de inúmeras coisas que você vai ser demandado? Você está pronto para desregular em alguns momentos e tudo bem? E passar esse processo? É isso.
A parentalidade é um nicho forte nas redes sociais, onde pais compartilham a rotina e dicas para a criação dos filhos. Esse contato abre margem para sentimentos de insuficiência e comparação?
Como eu brinco, é uma faca de dois gumes. Isso demonstra, por um lado, que os pais estão se sentindo insuficientes e estão buscando ajuda, o que é muito bom. Só que, por exemplo, você pega influências de parentalidade, que têm mais de 1 milhão de seguidores, e você vê que eles dizem coisas que são muito temerárias, dão fórmulas prontas e, às vezes, banalizam algumas coisas. Por exemplo, "se o seu filho está fazendo birra e não quer tomar banho, diga para ele ir ao banheiro brincar com água”. Isso tudo é muito lindo, mas se você vai experimentar essa fórmula quando chega em casa extremamente estressado, com problema conjugal, com problema de dinheiro, e em um péssimo dia, você não vai conseguir. Isso vai reforçar em você o quê? Que você é incapaz.
Quais são as estratégias práticas para que os pais lidem com essa culpa e mantenham a saúde mental durante o processo de educação dos filhos?
O que a gente precisa ter é, cada vez mais, um movimento de parentalidade consciente. Eu gosto de fazer uma analogia: sabe o que a nutrição fez com a gente? A nutrição foi divulgando informação e hoje nós temos uma grande consciência alimentar. A gente sabe o que faz mal, o que faz bem. A gente é atento e ligado a isso. A infância foi revelada lá no século 18 e 19. Desde lá, a infância evoluiu barbaramente. E as pessoas não sabem disso quando vão ter um filho. Elas não se preparam. Por exemplo, crianças aos dois anos de idade entram numa fase chamada adolescência de infância. Elas começam a fazer birras. Quando os pais não sabem que isso vai acontecer, as crianças começam a fazer birras e os pais começam a pensar “onde é que eu estou falhando? Por que essa criança está mal educada? Eu dou todo o amor do mundo e ela reage comigo de modo agressivo.”
Isso é absolutamente normal e, pior, ou melhor, é saudável. E como é que as pessoas não sabem disso? Então, para reverter culpa e para ter uma parentalidade mais consciente e mais inspiradora de resiliência e saúde mental para todo mundo, a gente precisa conhecer isso.
Um dos tópicos do livro que chama atenção é sobre o amor incondicional entre pais e filhos. Como os pais podem encontrar um equilíbrio saudável entre estabelecer limites e expressar amor?
Primeiro que limite é amor. E, se você não der limite, você vai criar um monstro. Então, o amor é uma emoção que não tolera tudo. O amor é uma emoção importante e saudável, mas é que o amor coloca limite. Por exemplo, eu tenho trabalhado muito a desconstrução de dois mitos: o mito do instinto materno, que é o que escraviza muitas mulheres, e o mito do amor incondicional. Não existe amor incondicional. Incondicional é aquilo que não impõe nenhum tipo de restrição, nenhum tipo de limite. Então, não tem quem não impõe alguma restrição ou limite para os seus filhos. Porque, se isso, porventura, tivesse de acontecer, você ia ter um amor sem nenhuma capacidade de empatia e sem nenhuma condição de interação social no futuro.
No livro Cabe um Filho na Sua Vida?, você busca desmistificar algumas das questões que permeiam a decisão de ter ou não um filho. Do ponto de vista racional, o que é importante ter em mente na hora de planejar uma família?
Entender que você não controla nada. Que se der tudo certo, ainda pode acontecer algo ruim. Que educar é essencialmente renúncia. Que você vai renunciar, por exemplo, às suas noites de sono, à sua saúde, às baladas, à sexualidade, às viagens, à sua conta financeira. E as pessoas só se dão conta disso quando elas têm filhos e começam a perceber a renúncia e começam a se queixar da renúncia e começam a se ausentar da parentalidade. Então esse livro, eu brinco, ele tinha de ser um anticoncepcional. Essas pessoas deveriam ler antes de ter filho para ter uma ideia de que filho é tudo isso.
Porque essa nossa biologia nos manipula muito para gente ter filho. É um princípio, um algoritmo biológico, chamado imperativo reprodutivo, que faz parte de qualquer espécie, que é preservar a manutenção da espécie no planeta. Só que quando esses algoritmos biológicos ativam dentro da gente, eles alteram os nossos dados de memória. Eles manipulam através da emoção. Então a gente, quando vai ter filho, só projeta coisa boa. A gente pensa que vai ser bonitinho, vai ter os olhinhos da mamãe, vai ter o sorriso do papai, a inteligência da vovó, o carisma do vovô. A gente não pensa, pode ter a bipolaridade do irmão, o mau caráter da mãe, o gênio do pai.
Essas coisas são todas programadas pela própria biologia para que a gente tenha uma seletividade projetiva da memória, para que a memória só projete coisas boas. E a gente começa a achar crianças na rua fofinhas, maravilhosas, lindas, e a gente quer um bebezinho daqueles. Até fazer. Então, quando faz, aí eu falo de quem trabalha lá na linha de frente, no nível de abandono, de abuso sexual, de negligência, de "educação invalidante" para essas crianças, é um absurdo. É um absurdo o que pais fazem com os filhos. Por, justamente, desconhecerem o processo que é essencialmente baseado na renúncia. Filho é renúncia.
Então, você vai se perguntar para que quer um filho na sua vida se vai renunciar a todas as coisas que quer fazer? Porque muita gente não quer ter filho e vai com a boiada. E depois que faz filho e pensa “o que eu andei fazendo?” Então, filho é um comprometimento para a vida. Eu considero o ato mais generoso de ser humano fazer um filho. Para que você não espere nada dele a não ser participar da vida dele e dar amor.
Em algum momento a parentalidade deixa de ser emocionalmente desafiadora?
Não. Eu brinco que a parentalidade é que nem um jogo de videogame. A cada fase nova, do bebê até a adolescência e até a vida adulta. Quando você passa de fase no videogame, as ferramentas que você tinha não servem mais. Você vai ter que ter ferramentas para fase dois e o nível de desafio aumenta. Então, o nível de desafio com o filho é crescente. Os filhos exigem da gente o tempo todo. E aí volta o Permanente Atestado de Insuficiência (PAI). A gente não sabe tudo, a gente não dá conta de tudo. A gente pode ser fraco, a gente pode fraquejar. Essa é a questão.
O Renato Caminha pai de dois filhos é diferente do Renato Caminha psicólogo e especialista em educação parental?
Eu cometi grandes equívocos com o primeiro que não cometi com o segundo. A parentalidade é um processo de aprendizagem. E pode até soar meio narcisista o que eu vou dizer, mas eu gostaria de ter conhecido um Renato Caminha quando eu tive filho, porque eu acho que ia ajudar muito o meu percurso. A gente aprende muito com o processo intuitivo do acerto e erro, e eu acho que isso não é legal. A vida como pai não é aquilo que ensinam para a gente, nem nos livros de ciência e nem nos jornais e revistas. A gente não tem acesso a esse conhecimento. Então, hoje, eu sou um pai mais pleno. Longe da perfeição, cometo um monte de erros, e vou cometer muitos erros ainda.
Um dia uma pessoa me disse “quem é você para falar sobre isso?" Eu falei “olha você deveria ter humildade, porque a gente aprende muito mais com as pessoas que erraram do que com as pessoas que acertaram, principalmente no processo de educação intuitiva.” Eu sou um pai que, hoje, pelo menos, não me culpo quando estou estressado, quando estou sem saco, quando estou sem disposição, quando eu quero me priorizar, quando quero viajar sozinho com a minha mulher.
Embora eu seja separado da mãe dos meninos e eles tenham 10 anos de diferença, acho que consigo entender que existe uma unidade chamada Renato que é diferente dos meus filhos. Eu consigo me priorizar e acho que, hoje, estamos em um bom acordo.