Ao observar árvores pela cidade, você saberia identificar qual delas é uma figueira, um ipê ou um guapuruvu? Ian Oliveira da Silveira, sete anos, precisou apenas de uma rápida olhada para responder à pergunta do repórter fotográfico de Zero Hora sobre a que estava em nossa frente no Parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre, na tarde da última quarta-feira (9).
— É uma goiabeira — afirmou, convicto.
O conhecimento aprofundado de Ian é resultado de um trabalho feito com muito carinho pela mãe, Andreza da Silva Oliveira, 41 anos: desde o início da pandemia, a relações públicas passou a coletar sementes de árvores para germiná-las em casa.
Além de incluir o menino em todo o processo de cultivo, Andreza e o marido, Eduardo Estima da Silveira, 39, fazem questão de garantir que o filho tenha bastante contato com a natureza. Assim, a rotina da família envolve praças e parques sempre que possível.
Em meio a ambientes cada vez mais digitalizados e cidades tão cheias de prédios, especialistas destacam que o contato com a natureza é fundamental para o desenvolvimento físico, motor e cognitivo das crianças. A partir dessa conexão, os pequenos conseguem aprender sobre os ciclos da vida e a diversidade dos ambientes, além de exercitar a criatividade e a imaginação.
Natural de Taquara, no Vale do Paranhana, Andreza morou até os 27 no Interior e conta que teve o privilégio de crescer em uma casa com pátio, árvores e proximidade com outras crianças.
Por isso, ao engravidar de Ian já se preocupava e refletia com o marido sobre o "desemparedamento da infância" — que significa, basicamente, permitir que os pequenos tenham mais contato com ambientes externos.
A família morou em um apartamento até Ian ter oito meses. Nessa época, Andreza levava o filho para praças e áreas comuns do condomínio sempre que possível. Depois, o trio se mudou para uma casa com pátio, em Canoas — foi lá que ela começou a cultivar as árvores, chegando a ter quase 500 mudas na residência.
Após a enchente de maio, a família passou a morar em um apartamento na zona norte de Porto Alegre, mas o contato com a natureza continua sendo prioridade. Andreza garante que eles visitam com frequência praças e parques da cidade. Na Amigos do Verde, escola onde cursa o 2º ano do Ensino Fundamental, Ian também brinca na terra todos os dias.
Desde que o Ian era bebê, nós sempre priorizamos a praça ao shopping. Sempre buscamos esse refúgio no verde. Quem acompanha vê que o desenvolvimento da criança é diferente. Elas ficam mais destemidas, e tem a própria questão da saúde mesmo. Eu sempre deixei o Ian muito livre, não me importava que se sujasse. Aqui, ele se abaixou e já começou a brincar com as pedrinhas. Ele não tem a coisa do "nojinho" de sujar as mãos, por exemplo
ANDREZA DA SILVA OLIVEIRA
Relações Públicas e mãe do Ian
A fala da mãe é comprovada pelo comportamento de Ian durante o encontro com a reportagem de Zero Hora: além de se ajoelhar no chão e mexer na terra, o guri demonstrou habilidade ao escalar algumas árvores do parque e mexer nas sementes e brotos levados por Andreza.
— Eu gosto de subir nas árvores. É a minha coisa preferida — destaca Ian.
O menino também esbanja conhecimento ao falar sobre o cultivo das árvores que faz junto à mãe e outras curiosidades relacionadas à natureza — como, por exemplo, que o ninho do beija-flor é o menor entre as aves:
— Eu gosto de ver como que elas (as sementes) ficam antes e depois. Tipo a de guapuruvu, quando boto na água, depois de um tempinho, dá tipo uma raiz embaixo, daí planta, o lado da raiz vai na terra e, quando cresce a raiz, a casca da semente de guapuruvu, que vira o adubo, cai. Daí vai crescendo até virar um pé de guapuruvu e depois vira uma árvore.
Impactos da presença na natureza
O pediatra e palestrante Daniel Becker aponta que, com o passar do tempo, as pessoas estão se isolando da natureza cada vez mais e que o corpo e o cérebro dos humanos não se adaptam rapidamente às mudanças decorrentes disso.
Esse processo é ainda mais complexo para as crianças, que antigamente tinham todo seu desenvolvimento baseado em sua presença na natureza, no movimento, na brincadeira e na socialização.
— Nós estamos perdendo esses quatro elementos. Então, as crianças estão exiladas do seu território essencial, que é a natureza, da sua atividade essencial, que é a brincadeira, e da socialização, que é fundamental também. A presença da criança na natureza é absolutamente necessária nesses tempos em que é possível passar o dia inteiro sem encostar a mão no material orgânico, sem respirar um ar puro — enfatiza.
Conforme o especialista, o desenvolvimento motor e cognitivo da criança é impactado pela falta de contato com a natureza, já que o mesmo é extremamente estimulante. Em razão disso, os pequenos estão ficando mais sedentários e fracos, com a musculatura mais atrofiada e uma capacidade cardiovascular ruim.
Becker afirma que os ambientes externos estimulam uma atividade física funcional, com seus terrenos irregulares, desafios e convites para que os pequenos explorem todos os espaços — seja descer um barranco, subir em uma árvore, rolar na grama ou acompanhar os insetos que vivem ali:
— A criança é muito estimulada no seu cognitivo e na sua fisicalidade. Ela se fortalece, ganha forma cardiovascular e aeróbica. Por causa desses desafios, vai conseguir avaliar melhor os riscos, vai desenvolver a sua criatividade, vai usar materiais naturais para fazer brinquedos criativos, vai resolver problemas. A natureza é um convite à exploração, ao movimento físico saudável e ao desenvolvimento cognitivo.
Antídoto para as telas
Além de estimular a visão, fortalecer a musculatura e trazer mais foco, o contato com a natureza melhora muito a imunidade, reduzindo as alergias e as infecções, e fornece benefícios mentais, como a diminuição da ansiedade, conforme o especialista:
— A natureza também é um ótimo antídoto para o uso de telas. Afasta das telas, faz com que a criança tenha uma sensação de maravilhamento. Então, faz bem em todas as dimensões da saúde das crianças: física, mental, emocional, social e espiritual.
Na visão da pediatra Lucia Diehl, sócia da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul e dona do perfil @ficatranquilamamae, a natureza representa um mundo inteiro de descoberta para as crianças, pois faz com que aprendam sobre os ciclos da vida e se conectem com todos os seus sentidos:
— Na natureza, tu começa a prestar atenção. E, quando tu presta atenção, tu aprende. Howard Gardner, que é um professor de Harvard, que desenvolveu a teoria das inteligências, diz que a natureza é a nossa oitava inteligência. Isso porque aprendemos sobre plantas, animais, ciclos da vida, amizade e diversidade dos ambientes. É uma coisa fantástica.
A médica acrescenta que a natureza é "o maior playground que uma criança pode ter", porque lá pode "brincar de tudo", usando a imaginação e a criatividade. Também permite que os pequenos aprendam a tomar decisões, desenvolvam sua autoconfiança e pratiquem o encantamento.
Conviver com a natureza aguça a sensibilidade e a empatia. Por isso, defendemos que os pais devem oferecer, diariamente, uma hora de natureza para seus filhos. Como vivemos em espaços confinados, dizemos para ir na pracinha. Uma vez por semana, vai em um parque. E, uma vez por mês, vai em um grande parque, como o Jardim Botânico, para oportunizar que tenham esse contato
LUCIA DIEHL
Pediatra e membro da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul
Lucia concorda que essa conexão ajuda a diminuir o tempo de uso de telas e, consequentemente, o sedentarismo. Pondera, contudo, que a tecnologia tem um lado bom quando bem usada, como no contato com familiares que moram longe e com aulas remotas.
De toda forma, ressalta que a luz emitida pelos dispositivos digitais diminui a liberação de melatonina, atrapalhando o sono das crianças, e que o uso excessivo de telas muitas vezes atrapalha a socialização, levando ao isolamento.
— Temos que reverter isso. Como? Com a brincadeira, levando a criança para brincar na natureza. Para mim, as duas principais maneiras de fazer com que as crianças comecem a largar as telas e voltem para uma vida "mais saudável" são o livre brincar e o convívio com a natureza — aponta Lucia.
Dicas para os pais
Luciana Barcellos Fossi, psicóloga clínica com atendimento voltado a crianças e adolescentes, considera que há muitos pais preocupados em oferecer mais contato com a natureza para seus filhos. Isso porque a limitação do acesso aos espaços públicos e o aumento do uso de telas fizeram com que muitas pessoas passassem a problematizar a falta de conexão dos pequenos com ambientes externos.
Acho que talvez esse seja o primeiro momento da grande problematização acerca dos espaços em que as crianças circulam. E tem um fenômeno muito bonito que eu observo, tanto nas cidades grandes quanto nas pequenas, que é a popularização, por exemplo, das festas de aniversário infantis em parques. Isso está muito comum hoje em dia: as famílias e amigos se reúnem e fazem a comemoração em um parque
LUCIANA BARCELLOS FOSSI
Psicóloga clínica com atendimento voltado a crianças e adolescentes
Além disso, Luciana percebe que muitas famílias têm buscado outras opções de lazer — como hotéis fazenda e espaços de trilha e acampamento, que ofereçam contato com rios, terra e animais — para frequentar com as crianças, ao invés dos shoppings e dos ambientes residenciais. Para ela, esse tipo de movimento traz uma carga simbólica além de permitir que as crianças possam brincar de coisas diferentes, de outras formas e com outros indivíduos da mesma faixa etária:
— É um espaço onde a criança vai poder criar muito mais, porque o ambiente não é controlado e é menos mediado pelo adulto. Então, a criança pode explorar mais livremente o que esse ambiente oferece.
Diferentemente de Andreza, alguns pais têm medo de que as crianças se machuquem ao deixar que brinquem livres na natureza. A psicóloga Luciana ressalta, contudo, que assim como nos espaços controlados e no uso de dispositivos eletrônicos, os responsáveis podem estabelecer limites para as brincadeiras. Os pais podem explicar aos pequenos, por exemplo, que eles não podem se aproximar muito de barrancos devido ao risco de quedas.
— O ambiente é livre para exploração, mas os pais também precisam olhar para esse ambiente e ajudar a criança a mapear quais são os perigos que podem existir ali e quais são os limites. Claro que isso vai implicar que os pais, de algum modo, também se desconectem dos seus dispositivos eletrônicos e acompanhem os filhos nessa exploração. Então, podem ir nomeando para as crianças quais são suas capacidades e onde estão os riscos — afirma Luciana, lembrando que joelhos arranhados fazem parte do desenvolvimento infantil.
O pediatra Daniel Becker acrescenta que, quando a criança é pequena, até um passeio por calçadas arborizadas é melhor do que ficar em casa. Pracinhas, clubes e parques também são opções, e até mesmo brincar com elementos naturais — folhas, gravetos, flores e pedaços de madeira — em casa é considerado benéfico.
— Comer de forma natural, com frutas, legumes e grãos, também é muito melhor do que comer comida industrializada. Mas, claro, sempre que possível, é recomendado levar a criança para uma praça. Por isso que é tão importante que tenhamos esses espaços, mesmo na periferia das cidades, e que as prefeituras invistam no verdejamento, na construção, manutenção e cuidado das praças — destaca o pediatra.