Desemparedamento. Se a palavra é difícil de falar, talvez seu conceito seja ainda mais difícil de aplicar. A abordagem pedagógica voltada para a educação das crianças nos centros urbanos segue o caminho contrário à superexposição tecnológica e aos dias vividos cada vez mais em meio ao concreto e encerrado entre quatro paredes. Desde o início da pandemia, fez-se ainda mais urgente estimular o contato com a terra, com as plantas, com os animais e com o ar puro, na medida em que a falta dessa relação mais próxima com ambientes naturais afeta diretamente no desenvolvimento infantil.
Nascida há quatro anos no bairro Santa Catarina, em Caxias, a escola de educação infantil Eureka traz o contato com a natureza no âmago da sua proposta de desemparedar o cotidiano de seus alunos, desde bebês de quatro meses até crianças de cinco anos e onze meses. A coordenadora pedagógica da escola, Lilibth Wilmsen, conta que nos primeiros anos era difícil “vender” a ideia da escola, que atualmente tem lista de espera por matrículas.
– Os pais não acreditavam muito no começo, queriam os personagens da Disney, aquela coisa toda arrumadinha. Mas nosso investimento em mostrar o potencial da proposta deu muito certo. Olhamos muito para o lado emocional da criança, priorizando que elas se desenvolvam mais sensíveis e empáticas, pois aprendendo a respeitar a natureza elas aprendem a respeitar o outro – explica Lilibth.
Na maior parte do tempo possível, as crianças utilizam o pátio externo para brincar na terra, pisar no barro, subir em árvores ou abraçá-las, conhecer e pesquisar sobre pássaros e insetos, e inventar brincadeiras com o que encontram pelo bosque, priorizando materiais não estruturados, ao invés de brinquedos prontos. Se eventualmente houver uma queda, faz parte entender que o tombo, assim como o esfolão, é natural.
– É uma linha tênue que separa o risco do desafio. A gente trabalha muito com as profes como parceiras do aprendizado e das brincadeiras, com escuta e observação atenta, mas permitindo que a criança possa desafiar a si mesma – conta a coordenadora pedagógica.
A abordagem que coloca a criança como protagonista do seu próprio desenvolvimento é inspirada em um método criado pelo pedagogo italiano Loris Malaguzzi, junto à comunidade de Reggio Emilia, na Toscana, após a Segunda Guerra Mundial. Neste modelo, deixa de existir a figura do professor como detentor do saber e o aluno como receptor, para valorizar a experiência construída junto, em que ambos se escutam para aprender e a internalização das experiências é o que irá construir o conhecimento.
Além de mais sensibilidade e empatia, também é fruto desse convívio harmônico com a natureza uma personalidade mais crítica, autônoma e criativa. Ou seja, uma pessoa que provavelmente saberá lidar melhor com problemas e reagir melhor às emoções negativas ao longo da vida. E também mais consciente quanto ao valor da preservação dos recursos naturais para a qualidade de vida, segundo observa o médico pediatra caxiense Dr. Marcelo Saldanha (confira a entrevista completa no final desta reportagem).
– No momento em que a gente identifica que a natureza é importante pra vida da pessoa, ela vai entender que é preciso preservar. É uma reeducação também para os pais, que estão muito preocupados em dar o último computador, mas não em dar a ela um contato com um bosque, com um parque, e isso tem que ser trabalhado. Botar no cotidiano dos filhos o quanto isso é valoroso. Porque se apenas perguntar para a criança se ela prefere brincar na terra ou no celular, na maioria dos casos ela vai preferir o celular. Mas é preciso estabelecer limites e dar o exemplo. Não adianta levar o filho para o bosque e ficar sentado, mexendo no celular, e mandar ela ir brincar. Tem que interagir e participar do processo, para a criança se sentir completa.
A horta das descobertas
No bairro Petrópolis, também em Caxias do Sul, a escola infantil Desconbrincando surgiu em 2016, igualmente apostando na interação com a natureza como parte indispensável da estratégia pedagógica. Além de contribuir para o desenvolvimento integral, considerando habilidades motoras, cognitivas, sociais e emocionais, resgatar o prazer da descoberta a partir do próprio esforço, como o de puxar uma cenoura e descobrir que ela cresce debaixo da terra, também é tido como um tipo de aprendizado fundamental, que não se aprende pela tela do celular.
No pátio da escolinha os alunos cuidam regularmente de uma horta, sendo que cada turma é responsável por um canteiro. Ali se planta alface, tomate moranguinhos, couve e diversos temperos, que os alunos levam para casa ou fazem alguma experiência culinária após a colheita.
– Além de todos os benefícios que uma atividade ao ar livre oferece, a horta ajuda muito a estimular o paladar das crianças. Às vezes elas não comem determinado alimento, mas ao participar de todo o processo acabam querendo experimentar e gostando – comenta a pedagoga Cristiane Palandi Basotti, proprietária da Desconbrincando.
É nesse cultivo que se aprende que é preciso ter paciência e respeitar o tempo das coisas, a se frustrar quando algum inseto faz sua própria colheita, a repartir a safra com as outras turmas, a valorizar a origem de um alimento (e assim até começar a comer o que antes não gostava). Um processo de transformação que é, ao mesmo tempo, vivido pelas crianças e observado pelas professoras.
– Quando escolhi essa casa para abrir a escola, foi pensando em oferecer um pouco da infância que eu tive, e que hoje não se tem mais. Poder mexer na terra e encontrar uma minhoca, ou pisar numa poça d’água e depois vê-la secar quando volta a abrir o sol. São vivências que criam memórias para a vida toda – destaca Cristiane.
Além da horta, o bosque da escola conta com diversas árvores frutíferas, como pitangueira, laranjeira, bergamoteira e uma jabuticabeira, cuja muda foi presente de uma turma de formandos de pré-escola, como um agradecimento que valida a experiência e incentiva a escola a seguir semeando o carinho pela natureza entre os pequenos.
“Não existe pessoa saudável sem contato com a natureza”
Em 2016, o jornalista e pesquisador norte-americano Richard Louv alcançou grande repercussão com o livro “A Última Criança na Natureza”, (ed. Aquariana, 400 pgs, preço médio R$ 46) no qual cunhou a expressão ‘Transtorno de déficit de Natureza”. Trata-se de uma reflexão sobre os efeitos de uma infância imersa no mundo digital e afastada dos ambientes naturais, misturando relato pessoal e estudos científicos. Em entrevistas da época, no entanto, o autor salientou que não se trata de um diagnóstico médico, mas sim de uma doença da sociedade.
Atento à obra de Louv, o médico pediatra caxiense Dr. Marcelo Saldanha considera que em algum momento o déficit de natureza pode vir a ser classificado como um distúrbio. Confira a seguir a entrevista concedida por Saldanha ao Almanaque:
Como o “transtorno de déficit de natureza” é visto pela pediatria?
Em algum momento a classe médica vai entender como um distúrbio, relacionado a uma doença. O mundo cada vez mais está imerso em tecnologia, e muito precocemente eu oriento as famílias a levarem suas crianças para ambientes externos, principalmente que envolvam a natureza. Na medida em que a temperatura permite, deixar a criança de pé descalço na grama, na terra, subir em árvores, brincar com animais domésticos. Isso tudo vai estimular alguns sentidos que todos nós deixamos de usar quando ficamos muito em casa. Está no nosso DNA a necessidade de simbiose com a biodiversidade.
A sujeira do brincar na terra pode ser benéfica para as crianças?
É um velho jargão que a gente ouve dos nossos antepassados: “deixa brincar, porque está adquirindo anticorpos”. É uma verdade. As crianças mais expostas a ambientes naturais desenvolvem menos alergias, desenvolvem mais resistência a certos tipos de infecção. É notório e científico que crianças que têm contato com animais domésticos ficam menos doentes, e o mesmo ocorre quando elas passam mais tempo em contato com a natureza.
É comum se dizer que a infância de antigamente, com mais brincadeiras de rua e menos tecnologia, era mais saudável. Isso é uma verdade?
Tudo tem o seu espaço. Sou contra aquela coisa de que “música boa era da década tal”. Com a infância ocorre o mesmo. Tem os benefícios que a tecnologia trouxe, mas tem de saber dosar. Algumas brincadeiras que eram feitas antigamente também não se fazem mais, porque o mundo evolui. Precisa fazer um misto, de modo que desperte o interesse na criança, pois fazer uma atividade interessante vai motivá-la a fazer de novo. Não adianta só caminhar no mato sem objetivo nenhum. Invente alguma coisa que deixe ela envolvida, procure umas pedrinhas diferentes, umas plantas que ela não conheça. Posso tornar um assunto extremamente interessante ou extremamente entediante, de acordo com o método.
Que efeitos o isolamento social provocado pela pandemia provocou no desenvolvimento das crianças?
Nesses últimos dois anos aumentou muito a quantidade de crianças com depressão, ansiedade, intoxicação digital, irritabilidade, má alimentação, diabetes, obesidade, colesterol nas alturas, tudo por não conseguir se desconectar do mundo digital. Atendo crianças de sete ou oito anos que vão dormir às 4h e acordam ao meio-dia. Aí tu aplicas um questionário e vê que o desenvolvimento delas está súper atrasado, sem falar nos distúrbios emocionais e alimentares. A pandemia, infelizmente, veio para atrapalhar muito, e a gente percebe cada vez mais a necessidade de vida em meio à natureza, fora de casa. Não existe uma pessoa saudável que não tenha contato com a natureza.
Dicas para a família
- Converse com um profissional sobre como ajudá-lo a proporcionar uma vida ativa ao ar livre para seu filho. Tire dúvidas, peça explicações a respeito dos benefícios e dos riscos envolvidos (insolação, cuidado com a pele, hidratação, prevenção de acidentes).
- Se a praça mais próximo da sua casa está abandonadA, mal cuidadA e pouco atraente para o uso, envolva-se com a sua revitalização com a ajuda da vizinhança ou da prefeitura. Procure saber se há outras famílias interessadas em promover a limpeza e a renovação dessa área pública.
-Monte um pequeno kit para levar nos passeios com a intenção de ajudar a criança a explorar ainda mais aquilo que despertou seu interesse. Sugestões: papelão para descer barrancos, lupas para investigar pequenos animais, potes para guardar achados, cordas e tecidos para construir uma cabana.
- Conte ao seu filho histórias sobre a sua infância, as brincadeiras que fizeram parte dela e o papel das áreas naturais e dos espaços abertos nesse período da sua vida. Lembre-se de como essas experiências foram importantes e formadoras para você e ajude seu filho a viver experiências semelhantes.
- Não existe clima ruim, só roupas impróprias. Encoraje seu filho a interagir com o ambiente natural em todas as condições climáticas. Se estiver chovendo, saia de casa e mostre a alegria de pular em poças d’água, fazer represas na calçada, observar barcos de folhas. Nos dias muito ensolarados, proteja-as com chapéu, roupas leves que impeçam a passagem do sol e use protetor solar.
- Reconheça que as crianças e adolescentes são capazes e competentes. Aprenda a avaliar as habilidades do seu filho em assumir riscos durante o brincar não estruturado em ambientes ao ar livre, e ajude-o a perceber as consequências do que ainda não é capaz de fazer.
- Use o interesse das crianças pelo processo de plantar, cultivar, colher e preparar alimentos para promover hábitos alimentares saudáveis para toda a família, aumentando o consumo de verduras, frutas e legumes. Uma pequena horta doméstica é uma excelente ferramenta.
- Use a natureza como parceira para fortalecer os laços familiares. Quando pensam na infância, jovens costumam mencionar aventuras ao ar livre como suas melhores lembranças – mesmo que tenham reclamado na época.
*Fonte: Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e Adolescentes, do Grupo de Trabalho em Saúde e Natureza, da Sociedade Brasileira de Pediatria. Disponível na íntegra em: https://bit.ly/3CLIlDn.