Se a humanidade sonhava com robôs que iriam realizar tarefas desinteressantes enquanto os humanos estariam livres para desenvolver-se artística e intelectualmente, parece que o contrário tem se tornado realidade. Imagens, livros, músicas e vídeos gerados com poucos comandos multiplicam-se na internet. Em meio ao tão esperado avanço tecnológico, é justamente a criatividade uma das delegadas às máquinas.
Somado a esse contexto, o Brasil apresentou baixos níveis em termos de capacidade criativa, que foi avaliada pela primeira vez no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), divulgado em junho. Os brasileiros ficaram em 44º lugar entre 56 países. Mais do que encarar as máquinas como ameaças, porém, é preciso atentar para o próprio comportamento humano.
— Já existem crescentes preocupações de que as pessoas estão contornando o pensamento criativo e ação criativa e simplesmente se concentrando em ajustar prompts — expõe o dinamarquês Christer Windeløv-Lidzélius, professor na Elisava School of Design and Technology e que durante 17 anos esteve à frente da Kaospilot, escola pioneira no desenvolvimento da criatividade, com aplicações em liderança e empreendedorismo.
O que é criatividade atualmente?
A criatividade, na atualidade, é o mesmo que tem sido desde os primórdios da humanidade, defende Windeløv-Lidzélius. É uma forma de lidar com o mundo, para resolver problemas e criar ideias, gestos e propostas, de modo a satisfazer a necessidade interna de dar sentido, reagir com significado e se relacionar.
Professor da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS) e pesquisador na área de criatividade, Vinícius Mano destaca que todo ser humano possui uma cota natural de criatividade. Alguns apresentam mais habilidades do que outros, por motivos como contexto, referências, ambiente, entre outros. Citando Domenico De Masi, sociólogo italiano que propôs o conceito de "ócio criativo", Mano sustenta que, para que uma ideia venha ao mundo, é preciso passar do pensamento, incorporando elementos mais concretos.
— Eu gosto de pensar a criatividade, falando de maneira contemporânea, muito mais em relação à atitude criativa. Que aí já é quase colando com a prática. Esse é o desafio hoje, criar culturas criativas ou entender o conceito como uma atitude. O que é atitude criativa? É alguém que persiste nas ideias, não abandona, tem disciplina, vê referências — argumenta.
Transformar uma área criativamente envolve sacrifício e disciplina, enfatiza o professor. Ou seja, a criatividade vai além do conceito de liberdade geralmente associado – para ele, é justamente o contrário: o limite e o prazo são favoráveis ao processo criativo.
Por que a criatividade é importante?
A criatividade é a narrativa da vida em evolução, inclusive em termos de sobrevivência, afirma Windeløv-Lidzélius. Diogo Cortiz, professor da PUC-SP e escritor especializado em temas como IA, ciência cognitiva, inovação e cultura digital, destaca a importância da criatividade nos mais diferentes aspectos da vida: apesar de estar geralmente associada a um processo artístico, autoral ou de grandes revelações, está presente no dia a dia, ao encontrar soluções que não são óbvias para problemas triviais, como o ato de arrumar um vestido. O processo criativo está ainda na tomada de decisões, em maneiras diferentes de pensar.
A interferência da tecnologia
Para o dinamarquês, os principais discursos da atualidade se dividem em crenças de que a nova tecnologia elevará tanto o tempo disponível quanto a sofisticação do trabalho criativo, e em temores de redução da criatividade, com os seres humanos se tornando preguiçosos e aceitando cada vez menos.
— Queremos terceirizar algo que é parte inata do ser humano? Ferramentas são ótimas, elas devem trabalhar para nós. Não devemos trabalhar para elas — reflete. — O que somos se tirarmos a criatividade? Precisamos de mais. Não de menos.
Da mesma forma que, se a gente souber usar, ela (IA) pode elevar o nosso processo criativo para outros patamares, a gente corre o risco de ficar preguiçoso. E aí, isso pode ser um problema para a nossa criatividade
DIOGO CORTIZ
Professor da PUC-SP e escritor especializado em temas como IA, ciência cognitiva, inovação e cultura digital
A tecnologia já impacta a criatividade de diferentes maneiras – há aplicativos que montam looks baseados nas peças do guarda-roupa, por exemplo. Uma das questões discutidas na academia atualmente é como as ferramentas tecnológicas têm levado a um encurtamento de repertório, já que, cada vez mais, o consumo de conteúdos online ocorre por meio de modelos de IA e algoritmos, que geram recomendações similares. A grande questão é como sair desse cenário, já que os humanos estão acomodados, pondera Cortiz.
O acesso à internet ampliou os horizontes da criatividade, mas o excesso de recursos tecnológicos atrapalha, na avaliação de Mano. A inteligência artificial permite rapidez, o que é interessante em termos de ritmo e para testar ideias. A tecnologia pode, então, ser utilizada como ferramenta aliada no processo, de maneira produtiva. Contudo, o professor da PUCRS frisa a importância de optar pelo "caminho mais difícil", compreendendo o processo em profundidade ao invés de optar por atalhos prontos, de modo a alcançar um resultado mais interessante – a criatividade não está no fim, e sim no processo.
— Muita gente diz: "Eu posso criar agora o pôster que eu quiser, eu digito aqui e vai sair". Para mim, me parece, se for só isso, um pouco vazio — afirma.
Inteligência Artificial: ameaça versus oportunidade
Para Cortiz, não é que a inteligência artificial, no momento atual, seja "supercriativa": ela cria algo novo, mas a partir de dados existentes e do repertório recebido. A criatividade humana e a da máquina, portanto, não são comparáveis, já que as grandes ideias ainda estão fortemente relacionadas ao processo cognitivo humano. Desta maneira, a IA não é uma ameaça direta – é o ser humano que pode se deixar ameaçar por ela se fizer um mau uso.
— É muito mais por uma questão do próprio comportamento humano. De, de repente, dentro de um processo criativo, a gente delegar muito mais para a máquina e acabar consumindo mais conteúdos criados por IA, exercitar menos o nosso processo criativo — explica.
Ao olhar as possibilidades, o especialista vê a IA como um impulsionador da criatividade humana, por ajudar em materializações e em momentos de bloqueio criativo, além de gerar insights para novas ideias, servindo como uma grande fonte de repertório. Ela pode até produzir sozinha caso seja demandada, gerando, talvez, um resultado inferior ou mediano. Os humanos não podem, entretanto, se acostumar com isso.
Há dificuldade em compreender como realizar um processo em coautoria com a IA, conforme Cortiz. Porém, cabe aos humanos deixar a preguiça de lado e utilizar a máquina como parceira, sem delegar tudo para ela.
— Da mesma forma que, se a gente souber usar, ela pode elevar o nosso processo criativo para outros patamares, a gente corre o risco de ficar preguiçoso. E aí, isso pode ser um problema para a nossa criatividade — alerta.
Criatividade em xeque?
Para os especialistas consultados pela reportagem, a criatividade não está em xeque. Ela vem melhorando: há um grande número de invenções atuais "extremamente criativas", bem como maior repertório e mais recursos para colocar ideias em prática. Sempre há problemas a resolver. O que pode estar em xeque é algum processo, ressalva Vinícius Mano. O excesso do uso de tecnologias em termos criativos é sintoma de algo maior, na avaliação do professor:
— O problema central hoje é que as pessoas não querem abrir mão de nada. Elas querem criar tudo. Porque tem muita coisa legal. "Eu queria ser bom em tudo, saber tudo". Porque o mundo tem muitas oportunidades.
Assim, as pessoas parecem não querer sacrificar seu tempo por nada, porque estarão perdendo outra coisa, e não conseguem manter o foco. Isso acaba atrapalhando, pois deixam de refletir sobre seu lugar e sua motivação, que se torna difusa. Esse cenário, por sua vez, leva à preguiça, à má vontade e ao desinteresse.
— Para mim, a preguiça está um pouco relacionada com um desinteresse até pelo que possa fazer sentido para a vida — avalia.
O que precisa ser feito
Mano sustenta que é preciso focar no presente. Diogo Cortiz acrescenta que deve ocorrer uma valorização do processo criativo como uma tarefa cognitiva humana, sabidamente árdua. Deve-se fortalecer a visão de que a IA vem para somar, mas não deve substituir a criatividade humana – as pessoas devem estar no controle, sempre com sua intencionalidade.
As bases para mudanças estão em reinventar a educação, desenvolvendo uma nova pedagogia, frisa Windeløv-Lidzélius:
— Deve-se colocar a criatividade e a imaginação na agenda. É mais amplo do que empreendedorismo e inovação. Olhar mais longe. Nutrir a criatividade natural das crianças. Focar não apenas em resolver problemas, mas em gerar o problema para trabalhar nele. Trabalhar com a realidade. Começar onde os alunos estão, não onde o professor ou o currículo está.