A rotina de grande parte dos gaúchos mudou desde o início de maio, pela enchente histórica que atingiu o Estado. Escolas fechadas, ruas cheias de entulho, um abrigo no lugar de casa. Se qualquer um teria dificuldade na adaptação, para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) a situação requer ainda mais atenção. Neste contexto, o Dia do Orgulho Autista, celebrado nesta terça-feira (18), é uma data importante para reconhecer as conquistas e refletir sobre no que ainda é preciso avançar.
Para a dona de casa Gabriela Jung, mãe do João Miguel Jung Cardoso, a existência de um espaço como o abrigo Casa Colo, em Porto Alegre, é uma delas. O local, que agora é lar para cerca de 50 pessoas desalojadas por causa da enchente, permite que crianças como João Miguel tenham uma rotina estabelecida e acesso a serviços de saúde.
Aos seis anos, João Miguel é uma criança carinhosa e comunicativa. Para ele, que tem autismo grau 2 de suporte e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a mudança de rotina é um desafio. Quando a família precisou deixar a casa, no bairro Humaitá, por causa dos alagamentos, Gabriela e o marido, o vigilante Leandro Garcia Cardoso, ficaram apreensivos com como seria a experiência do filho em um abrigo. A adaptação, porém, foi positiva e, atualmente, João Miguel está feliz com a nova rotina.
— Eu tento deixar a rotina dele aqui no abrigo o mais parecido possível com o que tínhamos em casa. Ele se sente muito seguro e confortável aqui. E quando a gente sai para algum lugar um pouco mais longe, ele pede para voltar para casa. Para ele, aqui já é a casa dele — conta Gabriela. O abrigo Casa Colo, da Instituição Colo de Mãe, é pensado especificamente em pessoas com deficiência (PCDs) e pessoas com TEA.
Segundo Felipe Kalil, pediatra e professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), autismo e rotina são duas palavras que andam juntas. Ele explica que a rigidez comportamental é uma característica comum entre algumas pessoas com TEA. Ter horários definidos para determinadas atividades ajuda na autorregulação dessas pessoas.
— Acredita-se que muitos autistas tenham dificuldade em lidar com o mundo externo, seja por aspectos sensoriais ou comportamentais, e a presença da rotina faz com que eles consigam ficar mais organizados e seguros internamente. Dessa forma, imagine a dificuldade que pode ocorrer quando há uma alteração radical de ambiente. Abre um leque para a presença de sintomas de ansiedade e instabilidade de humor, assim como comportamento opositores e de agressividade — explica.
Sem saudade da escola
A suspensão das aulas foi uma grande mudança de rotina para algumas dessas crianças. Antes da enchente, Gabriela conta que João Miguel não tinha um acolhimento positivo na escola, onde ele costumava ficar 1h15min por dia. O menino, portanto, não demonstra sentir falta dessa parte da rotina antiga. Kalil diz que casos como o dele não são incomuns. De acordo com o especialista, crianças com TEA podem ter dificuldade de adaptação e socialização no início da vida escolar.
— No entanto, o ambiente escolar pode ser muitas vezes utilizado como ambiente terapêutico, mas é importante frisar que não substitui terapias, pois o contato com outras crianças permite o espelhamento e consequentemente a imitação, aprendizagem, assim como melhora na socialização e comunicação — defende o pediatra.
Um estudo da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência e com Altas Habilidades no Rio Grande do Sul (Faders) aponta que a maioria das pessoas com autismo estão frequentando algum nível de escolarização, com 79,17% dos indivíduos em idade escolar efetivamente matriculados em instituições educacionais. Para que a experiência seja positiva, é necessário que a escola passe por um processo de inclusão, pontua Kalil.
A instituição em que João Miguel estuda é uma das 14 escolas da rede municipal que foram alagadas e seguem sem previsão de retorno das aulas. Enquanto isso, atividades adaptadas ganharam espaço na nova rotina do menino. Gabriela também ressalta que a convivência com as outras crianças do abrigo é outra parte positiva dessa experiência.
— Ele tem gostado muito de brincar de montar um trem. Ele gosta muito, também, da sala de terapia ocupacional. Inclusive, quando se desorganiza, já pede para ir para a sala de brinquedos especiais. E lá ele volta para o eixo dele — relata.
Na nova realidade de João Miguel, oficinas de música, atividades sensoriais e tempo na brinquedoteca também fazem parte da rotina.