Doutora em Economia pela Universidade de Chicago (1978), Shoshana Grossbard é professora emérita da Universidade Estadual de San Diego (EUA). Na instituição, ela também integra o Center for Health Economics and Policy Studies (CHEPS). A pesquisadora ganhou destaque por suas análises econômicas sobre questões sociais, como as dinâmicas dos relacionamentos afetivos, os padrões de consumo, o mercado de trabalho, a saúde e o bem-estar, a migração, a violência doméstica e as questões de gênero. Aluna de economistas influentes, como Gary Becker, Jacob Mincer, Theodore Schultz e James Heckman, é fundadora da Sociedade de Economia Doméstica e pioneira a investigar a economia da família e a economia do casamento. Ela esteve em Porto Alegre recentemente para proferir palestras e participar de uma banca de doutorado na PUCRS. Foi quando concedeu esta entrevista a GZH.
Como se deu seu interesse e sua especialização nessa área tão específica como as questões comportamentais sob o ponto de vista econômico?
Eu nasci e cresci na Bélgica. Saí de lá para estudar em Israel. Fiz bacharelado em Economia e Sociologia na Universidade Hebraica de Jerusalém, e depois fui estudar nos Estados Unidos, na década de 1970. Fiz doutorado em Economia na Universidade de Chicago, onde estudei com Gary Becker. Atualmente, leciono na Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia.
Gary Becker foi um dos pioneiros a desbravar esse campo de estudos, certo? Como ele influenciou suas pesquisas?
Sim. Tive o privilégio de ser aluna de Gary Becker. Na época em que eu era estudante, na década de 1970, ele já era famoso. Foi o pioneiro na economia do casamento, olhando para esse processo com uma perspectiva econômica. Essas dinâmicas já haviam sido estudadas por sociólogos e antropólogos, mas ele trouxe esse novo olhar. Então, eu vi a oportunidade maravilhosa de combinar as duas disciplinas, Sociologia e Economia, e investigar as relações familiares sob um ponto de vista econômico. Não digo econômico no sentido monetário, mas sim no sentido de olhar para o casamento e ver como a lei afeta as recompensas, os custos e benefícios para diferentes pessoas. Assim, segui os passos de Gary. Mas, depois de tantos anos trabalhando com o tema, percebo que hoje tenho opiniões diferentes das dele e de vários outros economistas homens, como James Heckman.
Em que aspectos suas visões divergem?
Principalmente na visão sobre o trabalho doméstico envolvido na rotina de uma família. Acredito que o trabalho não depende apenas do que a família necessita, mas também do que as pessoas estão dispostas a fazer, e quanto de seu tempo estão dispostas a dedicar a essas tarefas. Eles olham para a família tradicional, tipicamente composta por marido e mulher, e consideram que existe uma determinada demanda de trabalho doméstico, como cozinhar, limpar a casa e cuidar dos filhos. Então, eles basicamente presumem que alguém faria esse trabalho e que estaria disposto a gastar todo o seu tempo fazendo esse trabalho. Esse é o modelo que eles usaram. O que eu venho dizendo desde o início das minhas pesquisas, há mais de 40 anos, é que não é apenas uma questão do que a família precisa, mas também do que as pessoas estão dispostas a fazer pela família. Ou você dedica seu tempo às tarefas domésticas, ou você usa esse tempo para cuidar de si próprio, descansar, sair com amigos, ou qualquer outra coisa que você queira fazer. Trabalhar não é lazer, é preciso considerar isso. A maioria das pessoas não tem, entre as atividades favoritas, fazer faxina e cozinhar, por exemplo. Algumas pessoas realmente adoram cozinhar, e isso não é um problema. Mas geralmente não é o caso quando você tem a obrigação de cozinhar todos os dias. Ainda mais quando você precisa conciliar essa tarefa com o cuidado, cuidar de crianças, ou de outras pessoas da família. E às custas de outras coisas que você poderia estar fazendo. Eu chamo isso de custo de oportunidade, a economia do custo da oportunidade.
A maioria das pessoas, homens e mulheres, desejam ter uma carreira. Mas o que observamos é que depois da formação de uma estrutura familiar, principalmente se tiver filhos, muitas mulheres, mais do que os homens, optam por sair do mercado de trabalho. Parte da explicação é por causa da competição no mercado matrimonial.
O que a senhora chama de economia do casamento? E qual a relação disso com a economia da oportunidade?
Existe um conceito, que é uma das minhas principais linhas de pesquisa, que chamo de “mercados matrimoniais”. Por exemplo, quando as pessoas estão interessadas em entrar em um relacionamento, seja para casar ou para viver junto com o parceiro, de certa forma elas estão competindo com outras pessoas, porque existem muitos potenciais candidatos. Assim, a dinâmica dos relacionamento pode ser pensada como um mercado. O que caracteriza um mercado é a competição. Pegando como exemplo um relacionamento heterossexual, você tem muitas mulheres e muitos homens participando desse mesmo mercado. São diversas mulheres em busca de um homem, e diversos homens em busca de uma mulher para se relacionar. Com uma análise econômica, podemos investigar diversos aspectos dessa dinâmica. Estamos falando de consequências para a economia, mas não sob uma dimensão monetária, e sim sobre os impactos comportamentais. Esse processo impacta nas decisões das pessoas, por exemplo, se vão se casar-se ou não, se vão ter filhos ou não, quantos filhos vão ter.
Como se dá esse impacto na prática?
Digamos que você seja uma mulher heterossexual com “alta demanda” no mercado matrimonial, por exemplo. Ou seja, há muitos homens interessados em você. Você vai tomar decisões diferentes de uma mulher com menos demanda, que teria mais dificuldade de encontrar um parceiro, porque estar em uma posição de alta demanda influencia suas decisões, faz com que você tenha mais opções. Também é provável que influencie o seu estilo de vida. Você pode conseguir mais facilmente um marido com um emprego melhor, por exemplo, que ganhe mais dinheiro, e isso te dá mais possibilidades, principalmente depois que nascem os filhos. O que constatamos é que muitas mulheres abandonam a carreira depois de terem filhos, mesmo quando estão casadas. No início, a maioria das pessoas, homens e mulheres, desejam ter uma carreira. Mas o que observamos é que depois da formação de uma estrutura familiar, principalmente se tiver filhos, muitas mulheres, mais do que os homens, optam por sair do mercado de trabalho. Alguns economistas chamam esse processo de opting out. Há pesquisas que explicam por que algumas mulheres diplomadas, que estudaram nas melhores universidades dos Estados Unidos, muitas até com doutorado, decidem abandonar o mercado de trabalho depois de se casarem e terem filhos. Sei que esse fenômeno também acontece no Brasil. Parte da explicação pela qual algumas mulheres optam por sair e outras permanecem no mercado de trabalho e constroem suas carreiras é por causa dessa competição no mercado matrimonial. No caso das mulheres que têm mais opções e conseguem encontrar um marido que garanta melhores condições financeiras, é mais provável que elas optem por sair da força de trabalho se tiverem filhos.
O pensamento econômico ajuda as pessoas a terem mais clareza na questão de onde vão alocar seu dinheiro e seu tempo, ajuda na tomada de grandes decisões. Você vai entrar em uma relação? Vai morar junto com seu parceiro? Vocês vão se casar? Vão ter filhos? Quantos? Se as pessoas entenderem melhor esses conceitos, também teremos relações mais saudáveis.
E qual é o impacto econômico disso?
O sucesso no mercado matrimonial influencia o preço e o custo de oportunidade do trabalho doméstico. Se você estiver em “alta demanda”, há muitas pessoas querendo que você trabalhe para elas em casa, e você certamente acabará ganhando mais vantagens pelo seu trabalho. Digamos, se você fosse um engenheiro muito inteligente e muitas empresas quisessem contratá-lo, você poderia tentar negociar um salário mais alto. Da mesma forma, uma pessoa que está disposta a fazer essas tarefas domésticas e dedicar muito do seu tempo poderá ter exigências muito maiores. Tomando como exemplo Donald Trump, que só se casa com supermodelos, mulheres muito bonitas, ele provavelmente também tem que ofertar muitos benefícios para que elas queiram continuar casadas com ele.
Por que esse processo tem efeitos diferentes para homens e mulheres?
Esse é um ponto interessante. Porque é mais comum que as mulheres sejam encarregadas pelas tarefas domésticas, como cuidar dos filhos pequenos. Para além da gravidez e da maternidade, hoje em dia as pessoas dedicam muito tempo e atenção aos seus filhos, e isso exige muito dos pais. Vimos o exemplo da pandemia, quando muitas famílias tiveram que lidar repentinamente com seus filhos por mais tempo dentro de casa, com o fechamento das escolas. Na maior parte dos casos, a responsabilidade de cuidar dos filhos recaiu sobre as mulheres, mesmo que hoje em dia seja comum tanto o homem quanto a mulher terem uma carreira. Ou seja, recaiu sobre elas a necessidade de renunciar à carreira e dedicar mais tempo à família. E economia do cuidado não se trata apenas de cuidar dos filhos, mas também cuidar de si próprio, cuidar do cônjuge, garantir que todos na casa se alimentem bem, entre outras responsabilidades.
Qual é a importância de as pessoas refletirem sobre essas dinâmicas?
O pensamento econômico ajuda as pessoas a terem mais clareza na questão de onde vão alocar seu dinheiro e seu tempo, ajuda na tomada de grandes decisões. Você vai entrar em uma relação? Vai morar junto com seu parceiro? Vocês vão se casar? Vão ter filhos? Quantos? Todas essas decisões são decisões importantes, especialmente do ponto de vista da mulher. Ou a decisão de ser mãe solo. Se as pessoas entenderem melhor esses conceitos, também teremos relacionamentos mais saudáveis. Portanto, acho que todos deveriam estudar um pouco de economia da família, e isso deveria ser ensinado às pessoas na escola, não somente em nível universitário. Estou pensando em lançar um livro sobre isso voltado ao público em geral, para explicar esses processos e a importância de termos consciência disso.
Como a questão da violência doméstica se relaciona com seus estudos?
Uma maneira de pensar sobre isso é que, normalmente, os homens são violentos com as mulheres, raramente o contrário. E normalmente também são os homens que ganham mais do que as mulheres, financeiramente. Em boa parte dos casos, eles são os responsáveis pelo sustento da casa, seja por questões de desigualdade salarial, seja porque as mulheres costumam abrir mão da carreira, muitas vezes. Em muitos desses casos, a pessoa responsável pelo trabalho doméstico na casa é a mulher. Ou seja, a mulher trabalha para os homens da casa e é “remunerada” com a garantia de acesso a bens e serviços que não poderia ter se estivesse sozinha. Essa é uma situação muito típica. Se você tem um cenário como esse, em que na mulher é responsável pelos cuidados com a casa e os filhos, para que o marido possa trabalhar, isso a coloca em uma posição complicada, caso não cumpra esse papel dentro da casa. Se a mulher não cumpre com essas responsabilidades, muitas vezes, os homens usam a violência como forma de obrigá-las a trabalhar. Assim, a mulher fica com medo de deixá-lo e acaba trabalhando como uma escrava, porque ela apanha se não trabalhar. Infelizmente, esse é frequentemente o caso. É uma chantagem feita pelos homens para obrigar as mulheres a cumprirem esse papel na casa.
Que outras questões a senhora destacaria, entre suas descobertas?
Uma das coisas mais interessantes que estudei são as flutuações no mercado de casamento que causam o baby boom e a queda das taxas de natalidade. No Brasil, houve uma explosão nas taxas de natalidade por muitos anos, e agora estamos passando pelo processo inverso. Bem, é preciso levar em consideração que, por conta da diferença de idade, normalmente, nos relacionamentos, o homem é um pouco mais velho que as mulheres. Então, se houver um baby boom, há muitos bebês mais novos em comparação com os mais velhos. Se tomarmos a proporção de 50% meninas e 50% de meninos, e se continuar havendo esse crescimento todos os anos, quando eles crescerem, haverá menos homens mais velhos do que mulheres mais jovens. Isso significa um cenário negativo para o mercado de casamento ou de relacionamento para as gerações mais jovens. As mulheres não teriam muitos homens mais velhos para escolher. Numa situação como essa, mulheres mais tradicionais que queriam ser donas de casa ou queriam trabalhar apenas meio período e cuidar da casa ficam em uma posição complicada, isso era mais difícil de conseguir. Porque não há homens suficientes competindo pelas mulheres mais jovens. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, durante 14 anos, entre 1946 e 1960. A cada ano nasciam mais bebês, a chamada geração baby boomer. Sendo que a taxa de natalidade havia caído antes, durante a guerra. Isso provocou um aumento no número de mulheres no mercado de trabalho, porque elas não conseguiam encontrar um marido ou não queriam se casar. Em outros períodos, como na década de 1970, houve uma queda na natalidade por conta do aumento dos abortos, nos Estados Unidos. Tivemos a aprovação da lei Roe versus Wade, que garantia o direito ao aborto, revogada recentemente. O que aconteceu nessa época é que caiu a taxa de natalidade repentinamente, e houve uma redução na quantidade de mulheres jovens no mercado. Isso está acontecendo agora, com a inversão da pirâmide etária.
Como podemos construir relações mais saudáveis e justas, em termos de distribuição do trabalho doméstico e de cuidado?
Uma regra simples que muitos casais usam é dividir o trabalho da casa meio a meio. No entanto, essa estratégia não funciona tão bem em determinadas circunstâncias, como para cuidar de crianças pequenas, ou quando acontecem imprevistos, como no caso da pandemia. Quando aconteceram essas mudanças repentinas na rotina das pessoas, mulheres em todo o mundo passaram a exercer mais tarefas domésticas e, consequentemente, muitas decidiram não ter mais filhos para priorizar a carreira. E isso pegou todos nós de surpresa. Então, é fundamental que as pessoas pensem de uma maneira mais prática sobre essas questões, para tomar as melhores decisões. As civilizações ocidentais são muito influenciadas pela cultura e filosofia europeia, e no Brasil não é diferente. Isso influencia muito nossa forma de pensar nas relações e no casamento. Temos uma cultura muito diferente das sociedades orientais. Em países como a China, o Japão e a Coreia do Sul, as pessoas são mais pragmáticas em relação ao casamento e às relações. Elas são menos românticas e não pregam esses conceitos idealistas que temos, de alma gêmea, por exemplo. Essas ideias que temos não nos ajudam a nos prepararmos para situações da vida real. Não que não existam problemas nessas civilizações em relação ao casamento. São sociedades com estrutura tradicional e conservadora, em que as mulheres encontram muitas dificuldades para perseguir seus objetivos, e elas estão reivindicando mudanças. Mas, em alguns aspectos, esse pensamento mais conectado à realidade pode nos ajudar a lidar com os problemas que enfrentamos aqui, onde boa parcela da população é composta por famílias que não funcionam bem. Isso acontece porque há uma lacuna entre os ideais e aspirações das pessoas, e o que eles podem conseguir.