Dedicada há décadas a pesquisar sobre a parentalidade, a psicanalista paulistana Vera Iaconelli, 58 anos, lançou recentemente Manifesto Antimaternalista – Psicanálise e Políticas da Reprodução. A autora, que é doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, oferece uma sólida argumentação para descontruir a crença de que a mulher nasce para ser mãe e também a cuidadora inquestionável de quem precisar ser cuidado. Esse modelo desobriga os homens de assumirem suas responsabilidades com filhos e familiares, ela afirma:
– É uma ideologia extremamente perniciosa porque desequilibra a balança da possibilidade de uma relação igualitária entre homens e mulheres.
Vera participará de um evento de lançamento de Manifesto Antimaternalista no Instituto Ling, em Porto Alegre, no próximo dia 2 de março. Ela concedeu a seguinte entrevista a GZH:
Você define no livro: “O discurso maternalista se ancora na ideia de que a mulher é naturalmente talhada para ser mãe e que o cuidado que ela oferece ao filho – mas também aos familiares em geral – é insubstituível, por ser de uma qualidade única”. Que implicações isso tem?
Isso implica supor que cabe uma responsabilidade especial e intransferível da mulher no papel de cuidadora, eximindo os homens dessa mesma função. Então como é que uma mulher, que é a única pessoa que sabe fazer isso, porque ela é talhada naturalmente para fazer, poderia se abster de fazê-lo? E deixando a prole aos cuidados do homem que está suposto como aquele que não tem a mesma competência. Como é que ela vai deixar que o irmão cuide dos pais mais idosos ou o marido, dos sogros na velhice, quando ela de fato é talhada para isso? Então isso é uma ideologia que vai fazendo supor que existem humanos mais capazes e menos capazes do cuidado, sendo que, na verdade, o cuidado é o que nos torna mais humanos. Então é uma ideologia extremamente perniciosa porque desequilibra a balança da possibilidade de uma relação igualitária entre homens e mulheres na sociedade em que a gente vive hoje, na qual as mulheres são provedoras dos lares. Não são só cuidadoras, elas são provedoras materiais. O discurso maternalista carrega em si uma injustiça muito grande.
Há uma legião de crianças sem cuidados básicos, de proteção, de assistência, porque os cuidadores, no caso dos homens, não se prestam a essa função, e as mulheres não têm como dar conta disso.
Você afirma que a maternidade está entrando em colapso. De que forma?
A maternidade entra em colapso quando as mulheres buscam, desesperadamente, dar conta dessa premissa maternalista impossível, não conseguem e adoecem. Também por conta da ausência de cuidadores que possam realmente assumir as próximas gerações, a gente vai tendo as crianças e a própria ideia de infância à deriva. Hoje sabemos que os cuidados com as crianças são responsabilidade das mulheres. As mulheres são provedoras dos lares, 51% deles são chefiados por mulheres. Elas estão nas duas frentes: provedoras financeiras e cuidadoras. Uma vez que estão sozinhas, elas precisam de outras trabalhadoras, mulheres também, para deixar os filhos e poderem sair para trabalhar. Isso vai virando um sistema de pirâmide no qual, no final, você vai ter uma criança cuidando de outra criança, porque a última responsável dessa cadeia não tem com quem deixar. Isso é o colapso. Há uma legião de crianças sem cuidados básicos, de proteção, de assistência, porque os cuidadores, no caso dos homens, não se prestam a essa função, e as mulheres não têm como dar conta disso. É um circuito no qual a sociedade vai largando na mão das mulheres, e as mulheres vão se virando com isso até que chegam as crianças que não têm com quem ficar. Mesmo em classes mais abastadas, uma mulher sozinha não tem como dar conta da prole sem algum sofrimento psíquico, que vemos na clínica o tempo todo, porque é um desgaste gigantesco.
Por mais que o pai seja presente e participe desse cuidado, as tarefas da mulher e o espaço que isso ocupa na cabeça dela serão sempre muito maiores, né?
Se a gente pegar um casal que divide 50% as tarefas, a logística, o fazer, essa carga mental, que é um termo que tem sido muito usado no Brasil e no mundo, essa responsabilização sobre o que acontece, está do lado da mulher. O pai da criança pode ser onipresente, levar a criança para cima e para baixo, fazer tudo que tem que fazer, enquanto a mulher está num trabalho fora de casa, mas na hora que falta a vacinação recai sobre ela a responsabilidade da vacina que não foi dada. Essa é a carga mental. Ela está no trabalho, é a CEO da empresa, mas está pensando se colocou o lanche certo na lancheira, se o presentinho do colega que faz aniversário foi junto para a escola, se o casaquinho... O homem, na hora que sai da incumbência dele, ele desliga completamente. Isso é a carga mental, ou seja, a responsabilização que está colocada do lado da mulher.
Poderia ser diferente?
Na medida em que as mulheres começam a reconhecer que os homens também são responsáveis, e não só os homens, maridos, companheiros, enfim, a sociedade, aí na hora que falta vacinação mais de uma pessoa pode estar implicada nesse lugar. Você poder, por exemplo, ter férias nas quais você realmente usufrui, ou lazer de que você realmente usufrui, porque sabe que o seu companheiro vai se responsabilizar tanto quanto você com o que acontecer, faz toda a diferença. Isso se chama mudança de mentalidade, temos que mudar a mentalidade. É a mesma coisa, por exemplo, quando o marido chega em casa e fala “hoje eu vou te ajudar a lavar a louça”. Ah, obrigada, valeu, como se a louça não fosse responsabilidade dele. Mas quando ele já chega e faz o que tem que fazer, muda tudo. Muda tudo. Muda uma posição no mundo, é uma mudança de mentalidade. Nos anos 1950, uma mulher achava que tinha que ter uma relação sexual com o marido porque estava casada e hoje ela fala “não, eu não quero”. Muda tudo. Quando muda a mentalidade, muda a forma como a gente responde aos fatos da existência.
Seu livro posiciona o homem na sociedade assim: “Homem é antes de tudo um homem e, contingencialmente, pai, e para quem a paternidade é reconhecida mesmo quando ele se ausenta de suas responsabilidades”. A mulher abre mão da vida dela para ser mãe, e o homem não abre mão da vida dele para ser pai.
Mãe e mulher, para algumas pessoas, ainda hoje são sinônimos. Uma mulher que não fosse mãe, “coitadinha, não casou, ficou para titia, tem algum problema físico”, é uma pessoa que tem uma falta, e ela só vai ser salva desse lugar de fracasso como mulher se for uma cuidadora. “Ah, mas ela dedicou a vida inteira à enfermagem, ela foi professora.” Você vai encontrando outros “filhos”, outros lugares do exercício de uma maternidade, os sobrinhos, que são formas de dizer que ela acabou preenchendo a vocação de cuidadora com os outros. O homem não tem isso, ele é o provedor. O homem só é fracassado quando não consegue se sustentar e sustentar a família ou não consegue sustentar uma vida sexual, porque a sexualidade masculina também é tida como uma marca da virilidade. Mas, para a mulher, a maternidade está confundida com a própria figura da mulher. Até pouquíssimo tempo atrás, não se pensava uma mulher decidir, desejar não ter filhos, ou poder admitir que teve, mas não era bem isso, se arrependeu, preferia não ter tido. Tudo isso era um tabu, ainda é um tanto, mas hoje já se pode falar sobre isso. Essa confusão entre mulher e mãe não encontra paralelo entre homem e pai. A maternidade só é considerada maternidade não pela produção de um filho, mas pelo cuidado. É o cuidado que determina se uma mulher é mãe ou não. Isso não tem paralelo. Não é o cuidado que determina se um homem é pai ou não. Se tiver o DNA do cara, ele é o pai, assunto encerrado.
A confusão entre mulher e mãe não encontra paralelo entre homem e pai. A maternidade só é considerada maternidade não pela produção de um filho, mas pelo cuidado. É o cuidado que determina se uma mulher é mãe ou não. Não é o cuidado que determina se um homem é pai ou não. Se tiver o DNA do cara, ele é o pai, assunto encerrado.
A maternidade ainda é encarada como tarefa compulsória pela maior parte das mulheres? Ou isso nem chega a ser questionado internamente? É automático, “casei, vou ter filhos”?
Acredito que sim. Estou aqui, numa bolha de pesquisa, cercada de mulheres que decidiram não ter filhos, tem toda uma nova geração aí que não está nem aí para filhos. Brinco que estou no Principado da Vila Madalena (bairro de São Paulo), que tem homens para cima e para baixo com seus bebês no sling. Mas, saindo de um certo grupinho minúsculo, a maternidade compulsória é uma realidade, sim. A geração que está na casa dos 20, 30 anos, está começando a trazer uma outra perspectiva, não está interessada, “abaixo o amor e abaixo os filhos”, uma visão muito mais libertária. Essa próxima geração padece de uma outra questão: muitos não pensam, não querem ter filhos por causa das condições da parentalidade na atualidade. Talvez eles desejassem, mas eles não vão nem entrar nessa seara porque percebem que é impossível sustentar, por conta do colapso da maternidade mesmo. Não dá para sustentar uma carreira, filhos e sair inteiro do outro lado hoje.
Deve ser a minha bolha, mas vejo mulheres na faixa dos 30, 40 anos tranquilas com a decisão de não ter filhos. Será que isso vai se tornar mais frequente?
A nossa bolha é isso, né? Você é uma jornalista, participa ali do 1% da população que tem acesso a tudo.
Tenho o meu principado aqui também (risos).
Você está ligada às questões culturais, cercada de mulheres que falam isso para você, mas a gente tem que entender que isso não é a população mundial, isso não é o Brasil. Elas estão tranquilas, não estão torturadas por essa ideia, um filho não cabe na agenda delas, assim como não cabe na agenda de muitos homens há muito tempo. Só que eles não ficavam premidos, necessariamente, pela obrigação de tê-los, entendeu? Enquanto elas ficavam, e às vezes tinham filhos sozinhas, só porque tinham que ter. E agora não têm mais. Isso está mudando. E, mesmo assim, quem ainda acha que tem que ter não acha que tem que ter cinco, seis. Acha que tem que ter um, dois. Mesmo o “projeto filho” ficou extremamente reduzido dentro dessas novas condições da parentalidade.
Até quando as mulheres que não querem ou não quiseram ser mães terão que ficar se justificando? Nossa cultura, no Brasil, permite perguntas muito íntimas e invasivas.
Quem é de uma geração um pouco mais velha, assim como eu, participou de um papo, que hoje é quase surreal, sobre se a mulher era virgem ou não. Isso rendia conversas intermináveis, era uma questão. “Fulana não é mais virgem!” Isso ocupou muito a cabeça das pessoas durante muito tempo. Com a emancipação das mulheres, esse assunto não existe. Quer dizer, só existe como piada. Acho que a tendência é que a questão dos filhos ocupe o mesmo lugar. Essa invasão sobre o desejo do outro, sobre o lugar da mulher, sobre as aspirações da mulher, essa confusão entre mulher e mãe tende a diminuir na medida em que as mulheres começarem a dar a resposta tipo “você não tem nada a ver com isso”. Ou nem responder. Na medida em que as mulheres se posicionam de formas diferentes, vai se revelando a violência que há por trás disso, o preconceito que há por trás disso. Vai um tempo ainda até a hora em que isso vai cair.
Conforme a resposta que essa mulher der, se denotar certa irritação, será tachada de mal resolvida.
Exatamente. Mas as não virgens também, né? A gente vai galgando certos espaços e algumas perguntas vão ficando primitivas. Não dá para falar sobre isso. É ofensivo. A gente vai conseguindo marcar isso. Acho que a gente está indo bem nesse aspecto. Não quer dizer que estamos resolvendo bem a equação entre as condições da maternidade e o desejo pessoal. Porque saber o seu desejo sobre ser mãe ou não é um pouco mais complexo, né? É uma decisão muito difícil e não é sem ônus. O ônus da escolha. Alguma coisa se perde. Acho que a gente ainda está engatinhando nisso daí. Por que alguém tem filhos hoje? Tenho duas filhas, amo ser mãe, não me imagino não tendo sido mãe, mas acho que essa ainda é uma questão.
Precisamos desde uma lei que torne igualitárias as licenças paternidade e maternidade até políticas públicas que pensem formas de cuidar, uma cidade que se pense mais amigável para as crianças. Tem um monte de atitudes que podem ser pensadas para o bem comum, que vão na contramão de uma lógica neoliberal, do ‘cada um por si’.
Você aborda o cuidado com as próximas gerações como uma questão a ser resolvida porque o modelo que responsabiliza unicamente as mulheres é insustentável. Quem deve se responsabilizar?
Toda sociedade só existe na medida em que consegue ter uma descendência. É uma condição de sobrevivência, de não extinção. Sociedades que já estavam aqui quando a gente chegou, os originários, os povos nativos da região, sempre tiveram um cuidado ostensivo, coletivo com as próximas gerações. Cada criança que nasce tem ali seus cuidadores principais, mas ela é responsabilidade de toda a comunidade. Não existe essa cisão que existe no mundo moderno, burguês, “teu filho é teu, dane-se se ele estiver atravessando a rua sozinho porque não estou aqui para cuidar do filho dos outros”. Mesmo hoje, grupos mais tradicionais tendem a pensar as crianças como uma responsabilidade coletiva. Esse é o grande modelo que teremos que começar a repensar, porque o modelo “cada um por si” é o que leva a esse colapso. Cada um por si, cada núcleo familiar por si, competindo com os outros núcleos familiares, com as outras crianças, e esse núcleo familiar ainda cindido por gênero, mulher e homem. Por isso que não adianta pensar a solução da maternidade a partir de um modelo “vamos fazer o homem participar mais”. Isso aí é uma parte da conversa, uma parte importante, mas não é o fim da conversa. Vamos, enquanto sociedade, pensar que sem as próximas gerações a gente não existe. Vamos ter que nos responsabilizar coletivamente por quem está vindo. E aí podemos tentar soluções menos violentas. É uma mudança de mentalidade meio radical.
Profunda, né? E, na prática, o que significa a mãe não ser a única responsável por essa tarefa?
Precisamos desde uma lei que torne igualitárias as licenças paternidade e maternidade até políticas públicas que pensem formas de cuidar, uma cidade que se pense mais amigável para as crianças. Tem um monte de atitudes que podem ser pensadas para o bem comum, que vão na contramão de uma lógica neoliberal, do “cada um por si”. A gente vai tendo que pensar cada etapa do cuidado com o outro, como é que a gente pode oferecer isso. Conforme muda-se a mentalidade, a gente entende o que significa cuidar das próximas gerações, descobre saídas. Com o déficit demográfico, isso é um assunto urgente. O Estado precisa de crianças nascendo. É o mesmo Estado que não estende a mão para a parentalidade.
Quando será permitido à mulher falar mais abertamente sobre o que sente pelo filho e em relação ao papel de mãe? Ainda são temas interditados, não?
Na hora em que a gente começar a desmontar essa idealização da maternidade, essa fantasia de que uma mãe não querer ter filhos ou não ter gostado de ter filhos significaria uma aberração, um tipo de adoecimento... A mãe desnaturada é a mãe que não tem a natureza da maternidade. Isso é da ordem da patologia, do adoecimento, do desvio de caráter, do que não é moral. Isso é uma questão. Tem outra: quando reconhecemos que as mães podem não ter em primeiro lugar a maternidade, que uma mãe pode não amar a maternidade ou o filho, a gente tem que se haver com uma ferida narcísica, que é reconhecer que o amor dos pais por nós sempre foi contingente. Isso nos remete a um tremendo desamparo. De quem a gente dependeu sem nem saber que dependia poderia ter falhado com a gente, poderia não estar lá, ou talvez nem esteve lá para nós. Isso nos fere narcisicamente: pensar que o amor dos pais por nós é contingente. Deixamos o amor da mãe como um lastro inequívoco, incondicional, para garantir que a gente não vai deparar com o fato de que é contingente. Acreditar nesse amor incondicional é uma fantasia que nos protege do desamparo.