Associar identidade feminina e maternidade é a norma convencional. Mas, por razões e experiências diversas, cada vez mais mulheres redefinem as narrativas das próprias vidas, optando conscientemente por não serem mães. Longe de ser uma escolha simples, o fenômeno reflete uma mudança de padrões e ganhou nome, cunhado pela associação britânica Gateway Women: NoMo, sigla de Not Mother, ou simplesmente Não Mãe, em português.
Uma pesquisa de 2019, realizada pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think about Needs in Contraception (Tanco), indica que 37% das mulheres brasileiras não querem ter filhos. Por trás da decisão de quem desafia a expectativa tradicional, diferentes caminhos contribuem para a construção de identidades femininas fora do papel convencional de mães.
Com o assunto se tornando cada vez mais recorrente nos consultórios, nas conversas entre amigas e a família, e com figuras famosas tornando pública sua opinião sobre não ser mãe, o tema tem ganhado mais notoriedade. No entanto, ainda é objeto de julgamento, conforme diz a psicóloga Thaís Gaspari:
— A pressão social em cima das mulheres não é de hoje e nem vai acabar amanhã. A identidade feminina foi construída atrelada à maternidade, tão enraizada no imaginário social de que todas as mulheres devem desejar ser mãe que o não-desejo pela maternidade ainda é observado com estranhamento. Mas, ao contrário do que ouvimos a vida toda, mulheres não nascem para ser mães e não são menos mulheres ou menos completas as que optam por não gestar — explica Thaís.
De acordo com a psicóloga, é necessário, enquanto sociedade, entender que cada pessoa pode decidir o que é melhor para sua vida e, que, nem sempre, as opiniões sobre os temas serão as mesmas.
— Você precisa estar confortável com as suas escolhas para buscar ser feliz naquilo que acredita ser melhor para você. Seu corpo é sua casa e você deve decidir o que é melhor para ele. Não há nada de errado em querer seguir o padrão “namoro, casamento, casa, filhos”, mas o que precisamos entender é que também não há nada de errado em questioná-lo e muito menos em romper esse padrão.
Para Thaís, as mulheres que não têm o desejo de vivenciar a maternidade não deveriam se sentir na obrigação de explicar sua decisão para as outras pessoas, uma vez que a escolha cabe à ela ou ao casal.
— Precisamos entender que para cada pessoa o significado de uma vida plena é formado por aquilo que ela julga importante e esse conjunto de coisas é único e subjetivo. Isso significa que todas as pessoas pensam de formas diferentes e vivem de formas diferentes e podem, e devem, ter escolhas diferentes.
Clareza para tomar a decisão
Ser mãe é uma decisão que muda, de forma definitiva, a vida da mulher. Por isso, não deve ser uma escolha feita sem refletir sobre esse significado. Segundo a psicóloga Thaís Gaspari, existem algumas técnicas que são utilizadas para o auxílio em momentos de tomada de decisão juntamente com o foco no autoconhecimento e, por isso, o apoio de um profissional pode ser um bom amparo no planejamento do futuro.
— Estar consciente do impacto emocional dessa decisão para si, para seu parceiro, futuro ou atual, e da reação associada, é fundamental para conseguir encontrar a resposta mais adequada para si mesma. Levar em consideração os planos a longo prazo, relacionados a sonhos, carreira e estilo de vida, também é imprescindível nesse momento, pois não é novidade que as maiores demandas da casa e dos filhos seguem sendo das mulheres.
Entre os aspectos a serem analisados, diz Thaís, deve estar também a questão financeira.
— Cabe analisar qual estilo de vida essa mulher quer para si, quais os seus limites, limites da relação amorosa e do parceiro que escolher para ser pai dessa criança, o desejo de gestar, às vezes cabe avaliar adoção, por exemplo, avaliar sua rede de apoio e a situação financeira atual — considera Thaís.
A psicóloga defende que o ideal é que o parceiro também pense sobre o seu desejo ou não de ser pai. Ela explica que algumas motivações para ter ou não filhos podem mudar, talvez por medo ou insegurança. Thaís pondera, no entanto, que existem outros fatores que não podem ser mudados.
— Não existe solução fora do diálogo, compreender os motivos do parceiro é fundamental. Quando a motivação para não querer ter filhos é o medo de não conseguir sustentar financeiramente ou de não cuidar bem de um filho, por exemplo, a solução pode ser conversar mais sobre essas questões. Ceder ao desejo do outro também não é uma boa opção. Geralmente, quando um dos lados cede ao desejo do outro na questão de filhos, isso resulta em crises na relação conjugal — destaca a psicóloga.
Diálogo é a palavra-chave, diz Thaís:
— Culpa, afastamento, frustração, arrependimento, desejo de vingança e raiva são sentimentos comuns nesses casos, o que não faz bem nem para o casal nem para essa criança que está a caminho.
Opções e métodos para quem não quer engravidar
Com o passar do tempo, a pílula anticoncepcional deixou de ser a única opção para as mulheres que não querem engravidar. Além dos métodos como preservativo, hoje, são diversas as alternativas para quem quer garantir a segurança de forma hormonal.
Atualmente, é possível optar entre a pílula, os dispositivos intrauterinos (DIU), o implante hormonal, o adesivo anticoncepcional, o anel vaginal ou, também, o congelamento de óvulos, que permite que a mulher possa tomar a decisão mesmo depois do período fértil.
Diante de tantas opções, cada vez mais mulheres têm se posicionado quanto a querer, ou não, ser mãe, de acordo com a médica ginecologista Mona Dall Agno, com consultório em Caxias do Sul.
— São dois fenômenos que acontecem. Um deles é o fato de que na consulta ginecológica, deveria ser abordada a questão reprodutiva, justamente pelas novas possibilidades que a gente tem de gestar mais tarde. Isso exige um certo planejamento e até pouco tempo atrás não se falava muito sobre planejamento reprodutivo. Então, como precisa falar sobre isso, essa pergunta acaba vindo à tona. E, realmente, várias meninas têm se posicionado de que não querem ter filhos, nem hoje, nem no futuro — afirma a médica ginecologista.
Mona diz que, em alguns momentos, ela tem a impressão de que a pressão externa acaba intimidando as mulheres de abordarem o assunto de uma forma mais aberta. Isso se reflete em pacientes que, no momento da consulta respondem que ainda não sabem se querer ter filho, e, por isso, preferem pensar mais sobre o assunto.
— Eu acho que essa manifestação de dizer que não quer ter filhos é um ato de coragem. Eu falo muito para as pacientes, que eu acho muito mais difícil definir que tu não quer. Falar sobre isso é muito mais difícil, porque muita gente diz que é o fluxo da vida natural e acaba acontecendo culturalmente. Então, se posicionar que não quer e buscar alternativas para isso, de forma saudável, eu acho louvável.
Possibilidades para preservar a sexualidade
Para as mulheres que já tomaram a decisão de não ser mães, mas que prezam por preservar a sexualidade, além dos métodos anticoncepcionais, que não são definitivos, existe a possibilidade da ligadura tubária, popularmente conhecida como laqueadura. Esse procedimento, conforme explica a médica Mona Dall Agno, é uma possibilidade para as mulheres que já tomaram sua decisão.
Um avanço para a independência feminina ocorreu no início deste ano, com a mudança na legislação que permite a ligadura tubária. Antes, apenas mulheres maiores de 25 anos, ou com dois filhos vivos, poderiam realizar o procedimento. No entanto, era necessário que o parceiro também autorizasse o procedimento. Agora, mulheres a partir dos 21 anos podem fazer a ligadura, sem a necessidade de autorização de outra pessoa.
— Eu acho que a lei vem para dar mais autonomia às mulheres. Antes, a gente precisava de autorização do parceiro. Gravíssimo, né? E nesse ano conseguimos nos libertar dessa questão, isso acaba dando mais autonomia para as mulheres que não querem ter filhos e que decidem por isso. Essa é uma opção possível, nossa única alternativa definitiva — explica.
"Eu já fui chamada até de egoísta"
A professora de inglês Daiane Pedroti Venturin, 38 anos, conta que percebeu logo cedo que não queria ser mãe e que, nas oportunidades em que namorou, deixou claro aos parceiros que não tinha esse desejo.
— Aos 21 anos eu lembro de ter comunicado cedo ao meu namorado. Não foi nada pensado, eu simplesmente percebi já com aquela idade. E comuniquei para o caso de aquilo virar algo sério e não comprometer o relacionamento por diferentes opiniões — relembra Daiane.
Ela conta que a reação mais comum das pessoas, ao ouvir que ela não queria ser mãe, era sempre “você ainda é nova”, “vai chegar a hora” ou “você vai sentir o chamado”.
— Hoje respeitam mais, porque passou “a idade de ser mãe”. Mas, mesmo assim, as pessoas dizem “hoje dá para ter filho até os 40”, às vezes até dizendo “depois tu vai se arrepender”, tem ainda um pouco desse julgamento. Eu já fui chamada até de egoísta — revela.
Ela afirma que, apesar de não querer ser mãe, isso não significa que não goste de crianças.
— Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Ninguém jamais pergunta para uma pessoa que queira ser pai ou mãe o porquê dessa decisão. Quando a pessoa diz que não quer, as outras pessoas se sentem no direito de questioná-la, perguntando se não quer ou não pode. Eu já tive vontade de dizer que eu não podia.
"A família sempre ficava cobrando"
A educadora física Noeli Morais, 51, revela que o simples fato de declarar sua decisão geralmente causa reações adversas.
— Parece que sendo mulher tu precisa ser mãe. A família também, sempre ficava cobrando.
Atualmente casada, ela conta que foi uma decisão em dupla, já que nenhum dos dois tinha o desejo de ter filhos.
— Eu até achei que, de repente, um dia, poderia ser mãe, mas aí tu prioriza a formação, depois busca uma especialização... Porque se fosse mesmo uma vontade real, arranjaríamos tempo, não arranjaríamos desculpas — reconhece Noeli.
Famosas também falam sobre o desejo de não ter filhos
A atriz de 28 anos, que namora atualmente a produtora musical Marta Supernova, contou que não pensa em ter filhos em entrevista publicada pela revista Marie Claire, em abril deste ano.
— Não penso e nunca tive vontade, isso é algo que carrego comigo desde que sou nova. Casar é algo que também não queria, mas entendi que o que eu não gostava era a instituição e como ela dita a forma que a mulher deve ser dentro de um relacionamento. Mas filhos eu não quero. Adoro crianças, e vou aproveitar muito para brincar com os filhos das minhas amigas, só que ter os meus, não quero — afirmou.
A intérprete de Rachel no sitcom Friends, ao contrário de sua célebre personagem, não embarcou na maternidade. Em uma entrevista à revista Elle norte-americana, ela falou sobre o assunto e explicou como se sente com a sua decisão.
— Eu não sinto um vazio, mesmo. Meus casamentos (com Brad Pitt e com Justin Theroux) tiveram muito sucesso, na minha opinião. E, se eles chegaram ao fim, foi porque decidimos ser felizes e, às vezes, a felicidade não está mais naquele arranjo.
Para a atriz, hoje com 52 anos, sociedade envia uma mensagem clara às mulheres:
— Nesta idade, você deve se casar, nesta outra, deve ter filhos. Isso é um conto de fadas. Esse é um molde do qual estamos tentando sair aos poucos — opinou.
Sobre a perspectiva de ter filhos, falou:
— Honestamente, é um pouco assustadora. Algumas pessoas são feitas para isso. Eu não sei o quão naturalmente isso viria para mim.
Já em 2016, ao site Huffington Post, ela deu uma resposta mais direta sobre o assunto:
— Nós somos completas com ou sem um companheiro, com ou sem uma criança. Nós não precisamos ser casadas ou mães para sermos completas. Nós conseguimos determinar o nosso próprio "felizes para sempre".
A atriz de 57 anos já teve vontade de ter filhos, mas em 2012 explicou que "superou" o desejo ao falar sobre o assunto no programa Fantástico, da TV Globo. Por quê?
— Quis ter meus amigos, meu trabalho, fazer minhas viagens... Fui protelando e acabou que não rolou. Depois que escolho, não fico remoendo, nem olhando para os outros — explicou posteriormente em entrevista à jornalista Joyce Pascowitch em 2014.
Em 2013, ao falar com a revista The Hollywood Reporter, a icônica apresentadora norte-americana, hoje com 67 anos, relatou que teve um bebê aos 14 anos, mas ele morreu dias depois do parto. Posteriormente, ela não nutriu mais interesse pela maternidade.
— Se eu tivesse filhos, eles iriam me odiar. Acabariam em um programa como o meu para falarem de mim, porque algo na minha vida teria que sofrer e provavelmente teriam sido eles — declarou.
Em 2017, Oprah afirmou à revista Good Housekeeping U.K. que não teria a "paciência necessária" para ter filhos.
— Eu não quis filhos, não teria sido uma boa mãe para os bebês. Não tenho a paciência necessária — disse ela, afirmando ainda que consegue lidar melhor com cachorros.
Na conversa, ainda contou que se sente realizada com o projeto comandado por ela que abriga mais de 170 meninas na África:
— Quando as pessoas me pressionavam para casar e ter filhos, sabia que não seria aquela pessoa que se lamentaria por nunca ter tido, porque sinto que sou como uma mãe para as crianças do mundo — explicou.