Ela certifica que o caminho é longo. Já passou por situações constrangedoras, olhares julgadores silenciosos e atos de desrespeito. Soma-se a isso o fato de viver em um país campeão, por 15 anos seguidos, de transfobia letal do mundo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Lauri Miranda Silva, no entanto, desafiou o cenário e os preconceitos. Tornou-se a primeira mulher trans a concluir um doutorado em História no Brasil, conforme a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Nascida em Rondônia, Lauri defendeu sua tese no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, em agosto de 2023, abordando justamente a luta contra as opressões que mulheres e movimentos LGBT+ passam no seu Estado natal. Ao final da apresentação, ganhou flores e aplausos.
— Eu me sinto feliz e emocionada por essa conquista. Não foi fácil chegar nesse lugar e em outros tantos nos quais os nossos corpos travestis e trans não estão presentes, tendo em vista que eu sou uma das poucas travestis e mulheres trans com o título de doutora no Brasil — contou.
Lauri integrou um grupo de apenas 0,02% (3.379) de pessoas trans e travestis que chegaram às salas de aula em instituições públicas de Ensino Superior, conforme levantamento publicado em 2018 pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
O mais recente dossiê do Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil, descreve que, durante o ano de 2022, ocorreram 273 mortes LGBT+ de forma violenta no país, dos quais 228 foram assassinatos. Deste tipo de óbito, 159 (58,2%) vitimaram mulheres trans e travestis.
— Vivenciamos transfobia todos os dias. Não será pelo fato de que estamos adentrado e ocupando as escolas, universidades e outras instituições que estamos livres de opressão. A luta é todo dia — pontua a doutora.
Acreditar em si
Apesar da infância feliz e livre, foi na escola que Lauri descobriu o preconceito, muitos anos antes da transição de gênero.
— Por ter cabelo afro e devido à minha cor preta/negra, então eu era chamada de cabelo de pipoca, cabelo de Bombril, cabelo duro, Cirilo, pretinho da senzala e outros termos. Na 6ª série, aconteceu um dos primeiros casos de homofobia comigo, quando a orientadora educacional me culpou pela homofobia que sofri — recorda, citando que a reprodução da discriminação acontece não só entre estudantes, envolvendo até professores e funcionários de ambos os sexos.
Os incômodos com os padrões apareceram na vida de Lauri na adolescência, época de conflitos, estranhamento com o corpo e vontade de se expressar por meio de roupas consideradas "inadequadas".
— A repressão sobre a minha identidade de gênero e orientação sexual, a LGBTQIfobia nossa de cada dia, estava presente tanto no âmbito familiar, bem como na igreja evangélica, pois eu a frequentava com os meus avós. Também sofri transfobia na busca de empregos. Foi árduo, mas cheguei até aqui. Sobrevivente — afirma.
Ela se considera Lauri desde o Ensino Médio, mas, durante o Mestrado, ainda utilizava o nome de batismo registrado na certidão de nascimento. O processo de troca do nome social foi lento e a espera trouxe uma série de situações de constrangimento.
Apenas em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito de que pessoas travestis e trans possam retificar o nome e gênero no registro civil, sem que se submetam a cirurgia de redesignação sexual.
— A chegada e a conquista do uso do nome social reconfiguraram um pouco a minha vida. Afinal, o nome é primeira forma de se apresentar no mundo, de dizer quem ou como somos e nos relacionamos com a nossa identidade de gênero — se emociona.
Discussão a passos lentos
O debate sobre o lugar desta população no espaço acadêmico ainda engatinha. Tramita no Congresso um projeto de lei de Erika Hilton (PSOL-SP), que sugere um mínimo de 5% de vagas para pessoas trans e travestis em concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação de universidades federais e demais instituições federais de Ensino Superior.
A chegada e a conquista do uso do nome social reconfiguraram um pouco a minha vida. Afinal, o nome é primeira forma de se apresentar no mundo
LAURI MIRANDA SILVA
Primeira mulher trans doutora em História no país
Atualmente, sete universidades federais disponibilizam cotas para pessoas trans nos cursos de graduação, nenhuma delas no RS. Segundo o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), nenhum dos 38 estabelecimentos associados possui cotas voltadas para a população trans e travestis. A entidade explica, no entanto, que toda a rede possui mecanismos que "propõem diretrizes e desenvolvem ações inclusivas e não sexistas, buscando equidade e igualdade entre todas as pessoas".
Para a doutora em questões relacionadas a gênero, sexualidade e comunicação, professora Fernanda Nascimento, o baixo número de pessoas trans no universo acadêmico é um reflexo do "preconceito, exclusão e discriminação históricos" a esta faixa da população.
— Isso ocorre, também, porque há uma evasão escolar, seja por fatores básicos, como o uso do banheiro, seja pelas formas violentas que essas pessoas são tratadas. Agressões verbais e físicas na escola, que também exclui — explica.
Além do acesso ao Ensino Superior, Fernanda chama a atenção para a importância da permanência dos poucos estudantes trans que chegam a este patamar.
— Em alguns locais, há políticas de ações afirmativas, mas se não houver medidas para coibir qualquer tipo de violência, teremos pessoas trans evadindo das universidades também — alerta a professora.
Fernanda defende a política de cotas nas instituições de Ensino Superior e em vagas para concursos. A especialista também acredita que as experiências de vida, como a de Lauri, sejam mais propagadas para que a desigualdade seja conscientizada pela população em geral.
— Não passa apenas pela capacitação dessas pessoas, mas uma compreensão da sociedade. É um trabalho que também deve ser feito no âmbito da segurança pública, da saúde, na educação, para que se possa falar das questões de gênero e sexualidade desde o Ensino Fundamental. Assim se inibe o bullying. As cotas são reparatórias, mas não pode ser a única política — diz a professora, lembrando que ainda não há uma implementação nacional de cotas, mas há iniciativas pontuais, como alguns programas de Pós-Graduação na UFRGS que oferecem vagas à população trans.
A presença de pessoas trans nas universidades aumenta o número de trabalhos acadêmicos sobre a temática, segundo Fernanda, ainda que não seja impositivo que esta população aborde somente este tipo de assunto.
O Dia Nacional da Visibilidade Trans ocorre após a organização de um ato nacional, em 2004, para o lançamento da campanha "Travesti e Respeito", um marco na história do movimento contra a transfobia. Desde então, durante o mês, associações, instituições e coletivos diversos se engajam na celebração e na reafirmação da importância da luta pelos direitos das pessoas trans.