Alê Teixeira Primo aproveitou o isolamento e a introspecção da pandemia para promover uma grande transformação: abandonou a identidade de homem e se assumiu como mulher transexual. Formada em Publicidade e Propaganda (PP) e Jornalismo, professora do curso de PP e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alê, aos 53 anos, é uma referência na formação de novos comunicadores no Estado. Ela recebeu a reportagem de GZH em sua sala da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) para refletir sobre as cinco décadas em que foi um “gauchão de cavanhaque” e o processo de transição, com novo nome e cirurgias plásticas.
Quem é a Alê?
A Alê é uma mulher trans, muito feliz por poder ter renascido, vencido milhões de barreiras muito difíceis. É uma professora de graduação e pós-graduação, comprometida com a educação pública, gratuita e de qualidade, formando profissionais de comunicação, pesquisadores e pesquisadoras. Uma mulher corajosa, por mais que eu tenha resistido quando as pessoas me diziam “você tem muita coragem”. Minha resposta padrão: “Um dia não vai ser preciso ter coragem para ser feliz”. Mas hoje reconheço que é preciso muita coragem. Assumi, depois de 50 anos, uma briga, metafórica, com Deus. Na verdade, com religiões fundamentalistas e com toda a sociedade – leia-se também cultura. Por isso demorei tanto para poder me aceitar e assumir realmente a minha identidade e o meu destino.
Um dia não vai ser preciso ter coragem para ser feliz. Mas hoje reconheço que é preciso muita coragem. Assumi, depois de 50 anos, uma briga, metafórica, com Deus.
Por que Alessandra?
Tem a ver com o meu nome morto. Fui refazer a minha identidade com o nome social. Não vinha, não vinha, aí me disseram que Alê era um apelido que não indicava o gênero feminino, coisa em que eles não têm que se meter. Aí optei por Alessandra. Aceitaram. Gosto muito de Alessandra, é um nome forte. Mas a maior parte das pessoas me chama de Alê. Minha transição, algumas pessoas chamam de tardia. Outros acham que não existe transição tardia, cada pessoa tem seu tempo, a sua vida, a sua história de vida. Então, foi mais para facilitar a vida. Seria muito estranho se eu escolhesse um nome muito diferente daquele pelo qual as pessoas já me conheciam. Quem não me conhece e quem está me conhecendo me chama de Alessandra, mas assino como Alê, artigos científicos e tudo. Só que, para trocar no Lattes (currículo para estudantes e pesquisadores), tem que ter feito a troca na certidão de nascimento, que não fiz ainda porque estou esperando sair minha cidadania portuguesa. Aí, na certidão de nascimento, fica gênero feminino. Provavelmente, até meus direitos de aposentadoria passarão a ser de uma mulher, não de um homem.
Você diz que levou 50 anos para se aceitar. Como foi esse longo tempo?
Hoje em dia se tem mais clareza sobre isso. Ninguém decide brincar de outro gênero. Tem muitos riscos, de vida, inclusive. Desde criança, tem experiências, brincadeiras. Tem meninos que colocam toalha na cabeça para parecer cabelo comprido. Eu colocava sabonete nas unhas durante o banho para parecer que era esmalte, me depilava, usava sutiã da minha mãe. Tudo escondido. Durante muito tempo, fui cross-dresser, um homem que usa roupas femininas, mas em privacidade. Nunca ninguém tinha me visto. Aí alguns vão pensar que isso é fetiche. Não é um fetiche porque sou uma pessoa trans. Era uma forma de conseguir concretizar, ainda que temporariamente, essa necessidade da identidade. Naquela época do (estilo) metrossexual, eu ia para a manicure, fazia mão, fazia pé. Botava esmalte transparente, só uma base, depois tirava.
Isso dava alguma satisfação?
Era uma forma de concretizar a minha feminilidade, ainda que mantendo a performance de homem. Desde os 20 anos, tive cavanhaque, uma voz autoritária, alta. Eu performava esse gauchão, esse professor, com autoridade também acadêmica. Uma performance, às vezes, até um pouco caricata. Tudo isso é muito difícil porque é uma contradição. Acho que a minha performance masculina foi muito convincente. Nunca fui uma pessoa afeminada. No colégio, me chamavam de veadinho não por ser afeminado, mas no sentido de ter uma educação, de não gostar de brincadeiras de violência. Não passei da faixa branca no judô. Gostava de jogar futebol. Aliás, para você ser uma mulher trans, não precisa ter brincado de boneca. Eu tinha meus bonequinhos, minha mãe fazia pijaminhas para eles. Durante toda a minha vida, sempre tive calcinhas e roupas escondidas. Era um segredo muito bem guardado. Nos anos 1980, quando estava na adolescência, apareceu a aids, que mostrou que sexo era mortal. Tudo foi muito difícil. Mas a minha questão não era a questão da sexualidade tanto quanto é a do gênero. Algumas pessoas perguntam: e se você tivesse feito a transição na juventude, como teria sido? Não vale a pena nem pensar. Não sei, né? Porque não foi. Eu não teria minha filha, que amo tanto, é a razão da minha vida. Não sei se eu seria hoje uma professora, doutora. Outra vida. Não sei se estaria viva. Hoje evito caminhar na rua, sempre me cuido muito. Tem que olhar para trás. Não é por piadinhas. Posso ser morta por, entre aspas, estar usando roupa de mulher, como se eu não fosse uma. Fico brincando que saltei da pirâmide dos privilégios. Eu era um homem branco, classe média, classe média-alta, professor, casado com uma profissional de sucesso. Tinha todos os privilégios de um homem branco, um cavanhaque imponente, uma profissão que me dava autoridade. Todos os privilégios do patriarcado, de poder falar alto, me impor, ser um gauchão. Mas pulei dessa pirâmide, fui lá para baixo. Hoje sou uma minoria. Isso me faz ver o mundo de outra forma.
Eu tinha todos os privilégios de um homem branco, um cavanhaque imponente, uma profissão que me dava autoridade. Todos os privilégios do patriarcado, de poder falar alto, me impor, ser um gauchão. Mas pulei dessa pirâmide, fui lá para baixo. Hoje sou uma minoria. Isso me faz ver o mundo de outra forma.
O período de isolamento e reflexão da pandemia foi determinante para você. O que aconteceu em 2020?
Eu, minha ex e minha filha levamos o isolamento muito a sério. Nesse momento de introspecção, em que todo mundo foi forçado a pensar sobre a vida e o mundo, se intensificou a luta para esconder a minha identidade. Procurei uma psicóloga especialista em gênero. Ela me falou: “É uma questão de saúde mental”. Na segunda sessão, eu já estava com roupa feminina, ainda que com cavanhaque. Comecei a me preparar para contar para minha então esposa e para minha filha. Isso foi feito com muito vagar, muita preparação. Tinha uma influenciadora de maquiagem muito famosa na internet que revelou que era trans. Minha filha disse: “Ela tem uma voz tão feminina”. E eu aproveitei, conversei com ela, mas não falei sobre mim. Minha filha me maquiava, era uma brincadeira nossa, e um dia ela me falou: “Pai, ou você é daqueles homens que gostam de maquiar e de se maquiar, ou você é trans”. Aí você vê a importância de a escola tratar a diversidade. Quando finalmente contei, ela ficou um pouco em silêncio. Naquela noite, fomos ao shopping. Estava maquiada e perguntei que casaco deveria usar: um fofinho, masculino, ou um cardigã, feminino. Ela escolheu o feminino. Nunca teve vergonha, receio. A separação foi em fevereiro de 2021, e só fui contar para minha filha (então com 10 anos) em maio. A pandemia me ajudou. Enquanto o meu rosto estava em transformação, eu estava de máscara. Ia para um shopping em Canoas, jantava. Foram minhas primeiras saídas. Não olhava para o lado para ver se estavam me olhando. Foi tudo muito devagar. Mandei um e-mail para todos os meus colegas aqui da faculdade, falando da minha vida e da transição. A receptividade foi maravilhosa. Na primeira reunião, me apresentei como Alê. Os alunos foram maravilhosos. Nunca trocaram o meu gênero. Minha filha, depois, nunca me chamou no masculino. Ela me chama de pai e com todos os pronomes e adjetivos no feminino.
As pessoas ainda erram e se referem a você no masculino?
Agora não mais. É outra coisa ser uma mulher trans com dinheiro. Pude fazer uma cirurgia no meu rosto, mexi na testa, no queixo, nos olhos, nas sobrancelhas, nas bochechas. Depois fiz a cirurgia no nariz e coloquei silicone. Vou ao salão, faço meu cabelo com profissionais. Isso ajuda, né? Já chamo a atenção pela altura (1m84cm), então tento me vestir de forma mais discreta.
É outra coisa ser uma mulher trans com dinheiro. Pude fazer uma cirurgia no meu rosto, mexi na testa, no queixo, nos olhos, nas sobrancelhas, nas bochechas.
Mas você veste o que tem vontade?
Sim, mas me freio um pouco. Tem essa transfobia internalizada, no sentido de que não quero parecer que sou trans. Tenho medo, não quero chamar a atenção porque as pessoas vão poder me direcionar um olhar de preconceito, então isso também é um preconceito meu. Eu não estou me disfarçando de mulher, eu sou uma mulher. Sempre fui. Estive homem durante 50 anos porque me demandaram isso para poder sobreviver.
Falar sobre a transição para o seu pai, então com 90 anos, gerou expectativa. Como foi?
A família é sempre um desafio. Contei para minha mãe que eu era uma pessoa feminina. Chorei. Ela me acolheu. Acho que ela contou para o meu pai, mas a minha psicóloga achou que eu tinha que contar. Sempre fiz de maneira muito devagar. Eu ia (à cidade do interior onde eles moram) com roupas masculinas, mas mais neutras. Comecei com calça mais justa. Quando coloquei silicone, fui com jaqueta (cobrindo os seios). É difícil, eles ainda me chamam pelo meu nome morto. Meu pai sempre faz comentários: “Seu cabelo está comprido”, “Você está de brinco”.
Você deu uma explicação para ele, de alguma forma, ou foi a sua mãe que introduziu o assunto?
Para ela falei mais, que eu usava os sutiãs dela e tudo que sempre fiz, mas acho que, com meu pai, nunca me sentei e conversei. Foi uma coisa mais aos pouquinhos, quando eu ia para lá. A cada ida, o cabelo estava um pouco maior. Tudo foi aos poucos, até para evitar preconceito e me proteger. (Em lugares públicos) Primeiro eu ia ao banheiro familiar. Aí, um dia, em um restaurante de estrada, quando eu estava entrando no familiar, uma mulher falou: “Não, o feminino é lá”.
Você sente a aceitação dos seus pais?
Para eles é muito difícil, né? Depois de tanto tempo... E também porque são pessoas de idade, de outra geração, bem diferente. Mas eles poderiam não ter me aceitado, poderiam ter me renegado.
Sente-se acolhida?
Às vezes, é difícil. Minha família é bolsonarista, eu não sou, muito pelo contrário. Mas me sinto, sim, acolhida. Contei para o meu pai que ia colocar silicone, mas não nesses termos, falei em próteses. Ele talvez tenha se chocado um pouco. O silicone parece aquela barreira rompida, é uma mudança mais visível, é uma intervenção.
A família é sempre um desafio. Contei para minha mãe que eu era uma pessoa feminina. Chorei. Ela me acolheu. Acho que ela contou para o meu pai, mas a minha psicóloga achou que eu tinha que contar. Sempre fiz de maneira muito devagar.
Ele já olhou para os seus seios?
Ele olha dando uma disfarçada.
Você já teve um relacionamento pós-transição? Continua se interessando por mulheres?
Puxa, essa pergunta não vou poder responder. Plagiando as celebridades: sobre a minha intimidade, não comento. A questão da afetividade e da sexualidade varia muito de pessoa para pessoa. Não seria diferente entre mulheres trans. O desejo varia muito entre as pessoas. É importante dizer que orientação sexual é diferente de identidade de gênero. A uma mulher trans, quando nasceu, lhe foi atribuído o sexo masculino, mas ela se identifica com o gênero feminino. A mulher trans que gosta de homens é heterossexual, se interessa pelo gênero oposto. A mulher trans que gosta de mulheres é lésbica. A mulher trans que gosta de homens e mulheres é bissexual. A mulher trans que gosta de homens, mulheres e outras pessoas trans é pansexual. Essa questão da sexualidade, obviamente, não tem regra. As pessoas se comportam de formas diferentes e podem ter diferentes experiências e preferências. Uma pessoa que nasceu com a genitália masculina mas se identifica com o gênero feminino e faz a sua transição, uma mulher trans, ela não necessariamente vai gostar de homens. Da mesma forma que uma mulher cisgênero, que se identifica com o sexo que lhe foi atribuído no nascimento, não precisa necessariamente ter desejo por homens. Uma mulher trans pode gostar de mulheres, algo que, de repente, já demonstrava antes da sua transição. Outras mulheres trans podem mudar, reorientar o seu desejo.
Você se interessa por mágica.
Eu queria falar uma coisa antes.
Pode falar.
Quero falar como foi usar biquíni pela primeira vez antes do silicone. Foi tão natural. Um biquíni bem comportado, com calcinha grandona, com um enchimento (nos seios). Minhas mamas estavam crescendo (em decorrência da terapia hormonal), mas eram pequenas. Foi tão natural, como se eu sempre tivesse usado biquíni.
Onde foi?
Na Praia da Pinheira, em Santa Catarina, com minhas amigas, que sempre me acolheram muito bem.
Se eu pudesse (conseguir algo em um passe de mágica), seria o respeito. O respeito é o primeiro passo para a liberdade e, às vezes, quando não temos acesso a essa liberdade, temos medo de ser livres.
E a mágica?
É um gosto antigo. Sou muito fiel à minha infância. Desde criança, gostava de mágica. A única tatuagem que tenho são essas duas borboletas (no pulso), que é essa coisa da metamorfose, da transformação. Fiz com a minha melhor amiga, ela fez comigo. A mágica tem isso da transformação, do etéreo, da revelação. Então agora essas coisas se juntaram, fazem sentido. A mágica também traz liberdade porque você pode voar, aparecem e desaparecem coisas. Hoje não se faz mais isso, mas o coelho, quando aparece na cartola, é um nascimento. Do nada, aparece uma vida ali. Tem também a ressurreição, depois que uma pessoa é cortada ao meio. Tem um número que faço com duas pessoas não binárias e um lenço preto que se transforma nas cores do orgulho (gay). Elas criam vida. Vejo, como professora, que a mágica tem algo educativo também, de fazer as pessoas não apenas se espantarem, mas também pensarem.
Se você pudesse conseguir algo em um passe de mágica, o que seria?
Que ótima pergunta. Se eu pudesse, seria o respeito. O respeito sendo algo compartilhado por todas as pessoas. Respeitar a diferença, respeitar os pontos de vista distintos dos seus. Acho que o respeito é o primeiro passo para a liberdade e, às vezes, quando não temos acesso a essa liberdade, temos medo de ser livres. Passei 50 anos com medo de ser livre. Aquele passarinho que está na gaiola a vida toda, quando você abre a gaiola, ele não vai embora. Ele fica ali dentro. Ou quando você cuida de um animal que foi capturado machucado, você abre a porta e, às vezes, ele não quer ir embora, tem medo. Acho que seria esse o passe de mágica: o respeito.