Embora o preconceito ainda seja um empecilho na vida de pessoas transexuais e travestis, espaços que tratam gratuitamente e de forma exclusiva da saúde de uma população estigmatizada estão se consolidando em Porto Alegre, uma conquista da luta pela visibilidade trans, celebrada nacionalmente neste domingo (29).
Fundado em 2019 para atender pessoas que não se identificam com o gênero atribuído no nascimento, o Ambulatório Trans de Porto Alegre, situado no Centro de Saúde Santa Marta, vai além do serviço de hormonização, tratamento baseado na ingestão de hormônio para ficar com as características físicas do sexo oposto. É uma referência para os transexuais tratarem diferentes problemas de saúde.
Os serviços vão desde a hormonioterapia aliada ao acompanhamento psicológico, uma das principais demandas da população trans, até os exames básicos oferecidos em uma unidade convencional de saúde, como medicação e testagem rápida contra doenças sexualmente transmissíveis. A diferença é a garantia de respeito às particularidades de quem ainda é alvo de incompreensão, diz a coordenadora do ambulatório, a médica de família Gabriela Tizianel.
— A maioria das pessoas atendidas aqui já sofreu discriminação em outros espaços de saúde ao menos uma vez na vida. Em torno de 50% dos nossos pacientes não têm vínculo com nenhum outro ponto de atendimento em saúde. Aqui, nossa equipe é treinada para respeitar o nome social. É um lugar de convivência, onde criamos vínculo com os pacientes - diz.
Um dos principais dilemas de quem é trans está relacionado à saúde mental, e é comum desenvolver transtornos como a depressão. Segundo Gabriela, são pessoas com profundas cicatrizes emocionais, seja porque não foram aceitas por suas famílias e, em alguns casos, foram expulsas de casa, seja porque perderam o emprego e, nas piores situações, até tentaram o suicídio.
— Depois da hormonização, a questão da saúde mental é a principal demanda. Como recebemos muita gente, não temos como fazer um processo de terapia prolongada, como é tradicional, mas temos formatos de atendimento da saúde mental para tentar dar conta dessa demanda. Precisamos fazer isso porque a expectativa de vida dessas pessoas é menor, seja por causa do suicídio, seja por causa da violência que sofrem — diz.
A procura pelo ambulatório trans aumentou tanto que, em 2022, o espaço que até então funcionava no Centro de Saúde Modelo foi transferido para o Santa Marta e ampliou os horários, passando a atender de segundas às sextas-feiras, das 13h às 19h, sempre de portas abertas. Hoje, a planilha de cadastrados conta com 1,6 mil pessoas. A cada mês, são realizadas em torno de 200 consultas. Além disso, há uma procura mensal de 40 a 50 novos pacientes. Eles são recebidos por duas médicas, enfermeira, técnico de enfermagem, duas assistentes sociais e um psicólogo.
No mesmo ano foi criado um segundo ambulatório trans, anexo à Clínica de Família Álvaro Difini, na Restinga. Embora mais enxuto, funcionando apenas às sextas-feiras de manhã com médica, enfermeira e psicólogo, consegue ser um amparo a pacientes da Zona Sul que não tinham como chegar à Região Central.
A expansão dos ambulatórios expressa a ânsia dessas pessoas em sentirem-se protegidas e aceitas o suficiente para cuidar da saúde.
— Estamos recebendo inclusive adolescentes e suas famílias, que se encontram para grupos de conversas. O detalhe é que o ambulatório nasceu e cresceu em governos mais conservadores, mas Porto Alegre é uma cidade com organizações sociais, coletivos e ONGs com atuação muito forte. É uma luta de muitos anos. Essas pessoas não vão mais aceitar serem atendidas de outra forma. Elas têm exigido cada vez mais — diz Gabriela.
Cirurgia de afirmação de gênero
Quando a vontade é dar um passo adiante e passar pela cirurgia de afirmação de gênero, antigamente chamada de cirurgia de redesignação sexual, Porto Alegre tem uma referência nacional no serviço. Desde 1998, o Hospital de Clínicas conta com o Programa Transdisciplinar de Identidade de Gênero (Protig), único no Estado a oferecer o processo no qual o pênis da mulher transexual é alterado para uma vagina. Também são feitos implantes de silicone nos seios e, nos homens trans, a retirada das mamas, tudo pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Antes dessas etapas delicadas e consideradas um marco na vida das pessoas, os candidatos fazem uma série de encontros em grupo, além de se submeterem a atendimentos com a equipe multidisciplinar formada por três psiquiatras, assistente social, endocrinologista, psicólogo e enfermeiro. Mas o atendimento não é espontâneo: só entra no programa quem for encaminhado por uma unidade de saúde.
De acordo com a coordenadora do Protig, a psiquiatra Maria Inês Lobato, são em torno de 24 encontros, um processo que dura, em média, dois anos. A espera é para que a pessoa se certifique do que vai fazer, evitando arrependimentos.
— É um período para adequar expectativas. Por razões óbvias, a cirurgia não dá margem para remorso. A pessoa precisa estar completamente segura de que é isso que deseja para sua vida, e que saiba que é uma cirurgia complexa, porque não podemos reverter. Por isso, precisamos acolher e conversar — diz.
Em 25 anos de atuação, o Protig avaliou mais de mil candidatos e realizou pouco mais de 300 cirurgias de afirmação de gênero, o que mostra que nem toda pessoa transexual deseja redefinir seus órgãos sexuais. Para a psiquiatra, isso é reflexo de um aumento na oferta dos serviços de saúde exclusivos, como os próprios ambulatórios, que conseguem dar apoio psicológico e orientação.
No entanto, a espera para a cirurgia ainda é demorada, e pode se tornar uma angústia para quem já tomou a decisão.
— O tempo de espera para a cirurgia pelo Protig é de quatro a cinco anos, porque ainda temos os reflexos da covid-19. O Hospital de Rio Grande, por exemplo, passou por uma capacitação conosco há quatro anos, pediu credenciamento para também fazer as cirurgias e, até hoje, não foi credenciado. Poderíamos ter mais serviços de cirurgias de afirmação de gênero, precisamos abrir mais espaços — reflete Maria Inês.
Onde buscar atendimento:
Ambulatório Trans 1
Local: Centro de Saúde Santa Marta (Rua Capitão Montanha, 27, Centro Histórico)
Horários: de segunda à sexta-feira, das 13h às 19h
Ambulatório Trans 2
Local: Clínica da Família Álvaro Difini (Rua Álvaro Difini, 520, Restinga)
Horário: sexta-feira, das 8h ao meio-dia