Uma das cidades afetadas pela enchente que devastou o Vale do Taquari na última semana foi meu lar por 18 anos. Com frequência, visito minha família em Estrela, e foi por eles que soube a grandeza da tragédia que ocorria. Foi com apreensão e certa surpresa que recebi, às 22h22min da segunda-feira (4), uma mensagem de áudio do meu pai, Alcir Polo, 60 anos, em nosso grupo da família:
— Aqui o bicho tá feio, vamos ter uma enchente das piores do que aquela anterior grande (2020), pense que essa água está vindo numa velocidade… não estamos vencendo pegar as coisas aqui e tirar. Pelo amor de Deus, pense num enchentão, meu Deus.
Nem passava pela minha cabeça a proporção da enxurrada – a princípio, eu acreditava que seria mais uma enchente grande, porém, dentro do que já estávamos acostumados em algumas cidades do Vale do Taquari. Ali, começou a preocupação sobre se nosso pai, nosso tio Ronaldo Polo e seus amigos conseguiriam sair a tempo. "Abandonem tudo e saiam", pediu minha mãe, que estava segura em nossa casa, na cidade. Meu pai, como muitas outras pessoas afetadas pela cheia, acreditou que ainda conseguiria salvar aquilo que batalhou para construir e, principalmente, os bichos de seu sítio localizado à margem do Rio Taquari, em Estrela. Mas não conseguiu.
Naquele momento, o rio subia rapidamente: cerca de mais de um metro por hora em Encantado. Liguei a Rádio Gaúcha e ouvi os relatos assustadores de ouvintes em diversas cidades do Vale. Meu irmão comunicou a situação e reforçou o pedido para que fossem embora: "Vai ser muito pior do que a outra". "Meu Deus, vou perder tudo de novo", respondeu meu pai. Nosso maior medo, porém, era que ele perdesse a vida. Consideramos acionar socorro, mas ele tentou nos tranquilizar, afirmando que ainda estavam no controle da situação, removendo o que era possível. Do outro lado do telefone, não tínhamos a remota ideia do que estava acontecendo. Após ele insistir, fomos dormir. "Vamos rezar", disse minha mãe antes de colocarmos os telefones de lado.
No outro dia, por volta das 6h, já acordada, recebi dois vídeos do meu pai. A água já havia entrado na casa do sítio do meu tio, que ficava ao lado – em 2020, maior enchente em décadas, ela havia sido poupada. Dois barcos já estavam amarrados na frente da casa, e alguns animais lutavam para não serem engolidos pela água. Essa foi a última comunicação antes da bateria do celular dele morrer. Minha mãe conseguiu contato mais uma vez, por volta das 10h, e ficamos sabendo que a água já havia tomado tudo e eles estavam nos barcos, que foram amarrados ao telhado por uma corda. A correnteza era tão forte que só seria possível sair de helicóptero a essa altura, e eles perceberam que precisavam de ajuda.
Eu já estava na Redação de GZH quando recebi essa notícia. O nervosismo bateu, e percebemos que eles teriam de ser resgatados. Tivemos de nos manter calmos para tentar ajudar o mais rápido possível. Liguei para a Defesa Civil, mas os telefones estavam mudos. Minha mãe foi a pé até o Corpo de Bombeiros e reforçou o pedido. Acionei a prefeitura de Estrela, que estava atendendo os cidadãos pelas redes sociais, e colocaram meu pai na lista de pessoas a serem resgatadas. Chamei outro tio, Algacir Polo, para ver se ele tinha mais notícias ou conseguiria ajudar de alguma maneira. Ele se tornou o único contato entre as oito pessoas que estavam ilhadas e nós, conversando com a única pessoa embarcada que ainda tinha bateria. Ela mandou a localização do barco – o que foi crucial para o trabalho da Polícia Rodoviária Federal, já que os limites das cidades se misturavam àquela altura, e tudo virava um grande Taquari. Restava aguardar.
O desespero se torna uma coisa que não tem como explicar, viver ou morrer, sobreviver, se salvar, orar...
ALCIR POLO
Resgatado em Estrela
Inquieta, mas tentando me manter calma para não assumir o pior, desci para almoçar com colegas, que compartilhavam da minha ansiedade à medida que eu relatava a situação. Às 12h55min, meu tio me ligou com a notícia de que eles haviam sido resgatados. Respirei aliviada. Dava até para sorrir e brincar depois de tanta angústia. Meus colegas da redação comemoraram comigo quando compartilhei o desfecho da história. E imagine qual não foi minha surpresa ao ver as fotos do colega Mateus Bruxel, que estava na região e registrou, sem saber, o resgate da minha família em fotos e vídeo.
"Fiquei impressionado ao descobrir que o resgate que fotografei, envolvendo dois barcos, forte correnteza e um helicóptero voando baixo sobre o telhado de uma casa submersa, era de familiares de uma colega da redação de GZH que também tem raízes no Vale do Taquari. Fotografei a cena sob mau tempo, a bordo de um avião, quando já nos direcionávamos para voltar a Porto Alegre, depois de sobrevoar cidades atingidas pela cheia do Rio Taquari. Como em outras coberturas jornalísticas marcantes de que já participei, aquela imagem ficou na minha cabeça, junto com questionamentos sobre o desfecho daquele resgate e as vidas envolvidas. Foi gratificante descobrir a história por trás daquele salvamento, saber que as pessoas estão bem e em segurança, diante do triste cenário de devastação naquela região."
Mateus Bruxel, repórter fotográfico
À noite, quando consegui conversar com meu pai, ele confessou que achavam que iriam morrer. Eles não acreditavam que aguentariam até a noite segurando as cordas amarradas àquele telhado – tinham medo de que se rompessem ou de algum outro problema, como um desabamento.
Posteriormente, com mais calma, meu pai contou que eles tiveram de embarcar por volta das 7h de terça-feira (5), mas acreditavam que a água ainda baixaria. Às 9h, começou o terror, porque a enxurrada só aumentava, e não sabiam mais até onde poderia subir. O maior pavor foi ver a destruição à volta. Casas, galpões, eletrodomésticos, enormes árvores arrancadas e tudo o que se pode imaginar passava por eles. Com a correnteza batendo os barcos um contra o outro, eles se agarravam às embarcações e à casa, que formou um "vácuo" na água, protegendo-os.
"A primeira coisa é uma sensação de desespero, a gente não sabia se viria socorro ou até onde ia o problema. Não tínhamos a dimensão do volume de água e do tamanho do problema. A gente subestimou toda a água que podia vir, não imaginou. Em um segundo momento, houve pavor. Sensação de que aquilo que poderia ter sido feito antes agora não podia mais fazer, aí deu pânico. E o desespero se torna uma coisa que não tem como explicar, viver ou morrer, sobreviver, se salvar, orar, tudo o que passa na cabeça da gente no momento de desespero… cada um pensa e age de uma forma. Ficamos horas naquele pavor, terror, angústia. A sensação maior e mais alegre foi quando a gente estava vendo o resgate chegar, dá um alívio, tu não sabe se chora, ri, bate palma… não tem como explicar, só quem está no momento vive isso. Não tem quem não chore. Os pelos arrepiam. Aí vê que começa outra sensação, de saber se o resgate vai ser seguro, porque tem o risco de você resvalar subindo no helicóptero e cair, e aí não tem recuperação. É coisa de segundos. Eu estava muito consciente daquilo que estava fazendo, sabendo que o pé tinha de estar na hora certa, no lugar certo, me agarrar no lugar certo. Só de lembrar já dá arrepio", relatou meu pai, Alcir Polo.
Poucos minutos após deixarem o local, os barcos em que estavam afundaram – meu pai segurava o barco com uma mão e, com a outra, removia a água que já entrava na embarcação.
No outro dia, quando o nível da água estava baixando, meu pai voltou ao local para ver o que havia restado. Emocionado, encontrou um rastro de destruição. Todas as casas à beira do rio foram levadas. Somente uma permaneceu de pé: a casinha de telhado amarelo no qual se amarraram na tentativa de se agarrar à vida.
— Deus nos protegeu, deu uma segunda vida para todos nós que estávamos lá, porque só sobrou aquela casinha que nós estávamos em cima — relembrou meu pai, agradecendo especialmente à PRF pela competência no trabalho.
Essa é uma das histórias da enchente que tiveram um final feliz. Meu pai, meu tio e seus amigos conseguiram ser resgatados rapidamente. Tiraram a sorte grande na loteria da vida, como ouvi do colega na redação Gabriel Jacobsen. Muitos, no entanto, não tiveram essa chance. Me pego pensando com frequência no que poderia ter acontecido. Os policiais que efetuaram o salvamento voltaram ao local em outro dia e conversaram com eles. Contaram que foi um dos resgates mais arriscados que realizaram na tragédia, porque alguns postes impediam o posicionamento adequado do helicóptero.
Hoje meu pai está bem, grato e alegre por ter sobrevivido – uma sensação de sobrevida, como definiu. E é isso que importa. Nosso sentimento, neste momento, apesar de tudo, é de alívio. Tantas pessoas perderam absolutamente tudo. Tivemos perdas, claro – meu tio de forma ainda mais significativa –, mas nem se comparam à dor de outras famílias, que perderam familiares e seus lares. Estamos todos juntos. O resto podemos reconstruir.