A enchente que assolou o Vale do Taquari dizimou casas e famílias. Enquanto alguns perderam tudo o que tinham dentro de seus lares, outros precisaram se despedir de entes queridos. Para ajudar a lidar com o trauma causado pela tragédia, os municípios e o Estado, com a ajuda de voluntários, estão promovendo o acolhimento e o acompanhamento psicossocial dos moradores da região.
Para atender à comunidade, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) tem desenvolvido ações em parceria com os municípios, com a Universidade do Vale do Taquari (Univates) e com a Universidade La Salle (Unilasalle). A Rede de Apoio Psicossocial, que atua em emergências e desastres, também está envolvida no cuidado às vítimas.
Ainda que profissionais da rede local estejam atuando, muitos deles também foram afetados pela tragédia. Assim, grande parte da força de trabalho é composta por voluntários. Cerca de 400 enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos e psiquiatras estão atendendo vítimas nas cidades afetadas, como Muçum, Roca Sales, Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio, Encantado e Lajeado.
O Estado tem fornecido apoio e auxiliado na recepção dos voluntários. As secretarias municipais também têm desempenhado um papel importante na organização dos serviços, estipulando as escalas de atendimento e atuando na localização das famílias.
— A gente vê qual é a necessidade, em que ponto eles vão ficar. E tendo, dentro da região, os serviços especializados como referência, caso tenha algum caso grave, e os leitos de saúde mental para internação no caso de necessidade — afirma Marilise Fraga de Souza, diretora adjunta do Departamento de Atenção Primária e Políticas de Saúde da SES.
O atendimento é assegurado a todos os moradores. Há um espaço de acolhimento nas cidades, mas os profissionais também estão indo até casas e abrigos em alguns municípios — e os moradores solicitam o auxílio. O foco agora, explica Marilise, são as pessoas enlutadas, que estão recebendo acompanhamento após a perda de entes queridos, inclusive durante o reconhecimento de corpos.
— Essas que estão demandando mais nesse momento. Mas, obviamente, todas as demandas estão sendo vistas pelas equipes multidisciplinares, dentro da organização possível neste momento — complementa.
A importância do acolhimento
A prática segue manuais e guias de trabalho, aplicando os Primeiros Socorros Psicológicos (PSP), que se dividem entre acolhimento, amparo e ressignificação. São direcionados às pessoas que estão experimentando reações de estresse agudo ou em aparente risco de prejuízo significativo no funcionamento psicológico.
— O objetivo é restaurar o equilíbrio emocional, ajudar a pessoa a tomar medidas concretas para lidar com a crise — afirma Liciane Diehl, coordenadora do curso de Psicologia da Univates, que está auxiliando nas ações.
O atendimento é imediato, breve e focal na hora da crise. O propósito é promover o alívio do estresse e o amparo do sofrimento, dando lugar para a dor de cada um, com respeito, dignidade e integralidade, explica a psicóloga Melissa Couto, fundadora da Rede de Apoio Psicossocial (RAP) e especialista em emergências de desastres, que atuou no caso da Boate Kiss, em Santa Maria. Ela reside em Lajeado e ajuda a coordenar o trabalho no local. A função, explica, é também auxiliar a estruturar os serviços para que a rede de referência possa permanecer e dar continuidade ao trabalho que começa no acolhimento.
— O apoio psicossocial é uma das intervenções mais eficazes dentro desse cenário de apoio psicológico, porque pode reduzir em 50% o adoecimento em relação ao trauma. O que a gente vai viver agora e está vivendo, depois da hora do impacto, são as reações ao luto e à perda — pontua, destacando que as reações podem ser físicas, psíquicas, cognitivas e emocionais.
Liciane ressalta a importância de buscar atendimento para conseguir se reerguer.
— É muito provável que lidemos com inúmeras situações de estresse pós-traumático, então o apoio deve ocorrer a médio e longo prazo também — acrescenta.
Não há uma receita. Cada um reage de modo único, frisam as especialistas. O importante é que as vítimas se sintam acolhidas, para que ocorra a retomada depois do processo de elaboração do luto.
— Cada um de nós tem recursos internos diferentes e capacidades de ativação de resiliência distintas, dependendo do perfil emocional e cognitivo. O processo de luto é único e singular. A gente primeiro precisa validar tudo o que sente para, depois, poder elaborar. E as coisas que fortalecem, em algum sentido, são principalmente nossa rede de apoio e amparo e o respeito ao cuidado neste momento — afirma Melissa.
Organização nos municípios
Cada município tem uma estrutura para atender a população. Em Lajeado, psicólogos do município e voluntários trabalham nos abrigos e no Instituto Médico Legal (IML) para auxiliar no momento de reconhecimento dos corpos. O atendimento psicossocial está no local de retirada de doação. Todos que, de alguma forma, foram atingidos e necessitam de ajuda, passam por uma triagem com psicólogos e outros profissionais.
Uma das cidades mais afetadas, Muçum também está ofertando atendimento psicossocial, com o apoio de estabelecimentos de ensino como Univates e La Salle. O foco é oferecer um plantão psicológico, escutando as vítimas e permitindo que elas expressem suas emoções. O atendimento pode ser feito junto à unidade do ESF e do Hospital de Muçum. Há dificuldade para transitar pela cidade, mas o município está se organizando para atender externamente.
— Os atendimentos são abertos para toda a população da cidade, mesmo as pessoas que não estão nos abrigos, que estão na casa de familiares, que não perderam nada, mas estão com essa comoção — afirma Juliana Báo, psicóloga do Centro de Referência de Assistência Social de Muçum.
Em Roca Sales, uma equipe formada por assistentes sociais está auxiliando a população com atendimentos internos e externos, passando nas casas que foram atingidas para conversar com as famílias. Um grupo também realizará atividades lúdicas para crianças desabrigadas neste sábado (9), além de atendimento especializado na área.
Já em Estrela, psicólogos e assistentes sociais da prefeitura também estão nos abrigos realizando acolhimento das famílias. No entanto, ainda não houve tempo para pensar em um plano mais estruturado. As equipes estão realizando visitas nas casas de famílias nos bairros mais atingidos, e há uma base do Centro de Referência de Assistência Social no bairro Moinhos.
Na sexta-feira, uma equipe de profissionais do Caps de Estrela entregou mensagens motivacionais e sementes de girassol, que simbolizam a resiliência em momentos difíceis, para voluntários e pessoas atingidas pelas cheias.
— É um momento de passar segurança para essas pessoas. São situações muito difíceis, casas perdidas, as pessoas vão ter de recomeçar — pontua Renata Cherini, secretária municipal de Desenvolvimento Social e Habitação.
Grupo de trabalho
O Conselho Regional de Psicologia do RS (CRPRS) constituiu um Grupo de Trabalho em Emergências e Desastres para traçar estratégias para contribuir no acolhimento das vítimas e no amparo às cidades. O CRPRS emitiu uma nota orientando a categoria profissional e está em contato com outros órgãos para construir ações em conjunto. Na sexta-feira (8), foram definidos encaminhamentos, como um formulário para cadastro de profissionais que querem se disponibilizar a dar suporte psicológico — principalmente no período de retomada e reorganização das famílias.
O cadastro, que será lançado na terça-feira (12), será repassado aos municípios, para que os profissionais voluntários possam atuar junto às redes públicas. O conselho também promoverá um webinário com orientações sobre atuação e cuidados na próxima semana, além de oficinas e uma cartilha.
— Nossas atividades precisam ser construídas sempre em uma perspectiva de fortalecer os órgãos públicos e as redes públicas existentes — pontua a presidente do CRPRS, Míriam Alves.