Por André Cauduro D’Angelo
Mestre e bacharel em Administração, professor da PUCRS
O capitalismo pode ter matado o tempo livre e a contemplação, como afirmam alguns de seus críticos, mas a ameaça de pôr fim à imposição fisiológica de dormir, como temia Jonathan Crary em 24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono (ed. Ubu, 2016), aparentemente foi debelada. Acaba de surgir o “turismo do sono”.
O nome entrega o objetivo: viajar para hospedar-se em hotéis e pousadas com o único intuito de relaxar e adormecer, devidamente auxiliado por 10 diferentes tipos de travesseiros, colchões que regulam a temperatura corporal, almofadas detectoras de tensão, isolamento acústico perfeito e proibição de celulares e eletrônicos. Há opções de estabelecimentos e serviços assim em Portugal, Ilhas Maldivas, República Dominicana, México, Nova York, Londres e Itália, todos com nomes parecidos: Spa do Sono, Alquimia do Sono, concierge do sono. A explicação para a excentricidade não é nem um pouco surpreendente. Pessoas assoberbadas e estressadas têm se mostrado incapazes de dormir a contento em casa, precisando interromper a rotina para se dedicar – um tanto contrariadas, provavelmente – à mundana obrigação.
Impossível não enxergar na novidade um irônico subproduto da sociedade do cansaço, termo cunhado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em livro homônimo para definir os tempos atuais, em que o corpo responde com a fadiga às exigências de performance multitarefa. E de não lembrar Max Weber (1864-1920), segundo o qual o capitalismo exige disciplina e autocontrole – até na hora de descansar, pelo visto.
O que talvez Weber não previsse é que os vencedores do sistema, aqueles que superam os demais em disciplina e tenacidade, são os que menos desfrutam da riqueza que amealham, e os que menos desaceleram. Eis um fenômeno relativamente recente da modernidade que Han foi feliz em flagrar: com a identidade fortemente dependente do trabalho e da produção, pausas servem para retornar reenergizado... ao trabalho e à produção. Não há gratificação no ócio ou tempo para o tédio, pois a vida resulta de um planejamento individual, tal qual se faz na empresa privada.
Há outras nuances no tema. À disciplina flagrada por Weber soma-se a autoindulgência e o supérfluo, tão fundamentais quanto. Sem eles não se faz capitalismo nem sociedade de consumo. Se a abundância é uma construção social, a escassez também, a começar pela de tempo e repouso. Daí que o mercado responda com uma oferta na fronteira do banal com o afrontoso, transformando em mercadoria o que a biologia oferece gratuitamente. “Havendo tão pouco a ser dito, muito precisa ser inventado”, escreveu John Kenneth Galbraith (1908-2006) – nunca a frase pareceu tão bem aplicada.
Ameaças ao sistema, apenas em nível individual. A resistência consiste nos desejos comedidos, nas ambições modestas, nos sonhos factíveis e na renúncia às possibilidades infinitas – na simplicidade voluntária, em suma. Ou, segundo interpretações mais ousadas, na depressão, espécie de manifestação patológica da desistência – o sofrimento decorrente do excesso de possibilidades pode ser um tanto paradoxal, como se vê.
Quanto aos hotéis de sono, vale recuperar uma crônica de Contardo Calligaris (1948-2021), que, diante da procura por viagens inusitadas e vivências extremas (voos espaciais, mergulhos para observar destroços de navios etc.) como nova fronteira do privilégio contemporâneo, lamentou: “Elas são interrupções na vida de cada um, momentos de férias. (...) Como foi que nossa experiência cotidiana se empobreceu a ponto de passarmos nosso tempo nos preparando para 15 dias por ano de pseudo-aventuras de férias obrigatórias?” (Folha de S. Paulo, 22/09/2005).
Reflexão parecida vale para os turistas do sono: como foi que se deixaram levar por uma vida em que pagam para dormir?