Há quem, buscando relaxar ao final de um longo dia, chegue em casa, deite no sofá e ligue a TV para assistir a um documentário sobre assassinatos — muitas vezes, cruéis. A multiplicação de conteúdos que retratam crimes reais (os chamados true crimes) nos mais variados formatos, de podcasts a séries e filmes, facilita ainda mais o acesso a essas histórias. Por trás desse comportamento, por mais contraditório que possa parecer, há uma explicação psicológica.
Essa tendência de apreciação e consumo de informações sobre crimes é visível no Museu da Polícia Civil. O espaço em Porto Alegre recebe pesquisadores e público interessado no acervo, que inclui objetos de crimes apreendidos, de charlatanismo, de contravenção penal, da atividade policial e do Instituto-Geral de Perícias (IGP). O que mais desperta o interesse do público, segundo os organizadores, é o acervo de armas, que inclui exemplares artesanais e dos séculos 18 e 19. A busca por informações sobre a caça aos nazistas também mobiliza visitantes.
Enquanto o gênero true crime gera fascinação em algumas pessoas, outras não conseguem nem imaginar consumi-lo, explica a psicóloga Neusa Chardosim, especialista em neuropsicologia. Portanto, ao mesmo tempo que atrai curiosidade, gera repulsa.
A especialista acredita que muitas pessoas se interessam pelo tema com diferentes objetivos: entender as motivações do criminoso; a curiosidade dos detalhes do crime; bem como tentar buscar respostas sobre o porquê desses acontecimentos. A audiência é estimulada pelos elementos de suspense desses conteúdos.
— Além disso, a maioria busca entender a mente humana. Dentro deste universo, já foram realizadas pesquisas, e viram que a maioria que busca esse tipo de filme ou série são mulheres, até porque é esta maioria que sofre, e muitas vezes, é vítima dessa violência — explica.
Alex Niche Teixeira, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vice-diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), observa que alguns programas não se apresentam necessariamente como ficção, mas utilizam recursos narrativos desse gênero. Para ele, as histórias de true crime também promovem o fascínio por meio da sedução dessas narrativas.
Relação com a morte
Conforme Christian Dunker, psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP), o fascínio está ligado à relação com a morte. Ao mesmo tempo em que os humanos querem saber e se aproximar da morte, eles a temem, por também revelar a “verdade da vida” — para onde vamos.
— Nesse processo, há uma aproximação e um distanciamento que gera um efeito e exigência muito propícios para que isso aconteça no distanciamento de uma tela, de um programa, em que a gente pode fazer essa aproximação e simultaneamente receber uma satisfação indireta, que é: ufa, isso não aconteceu comigo, eu sobrevivi, ainda bem que foi com o outro — expõe.
Essa recompensa explica, de certo modo, porque esse tipo de narrativa não é apenas cativante, como também induz uma certa dependência.
O fascínio por esses conteúdos também está relacionado à interpretação de que o mundo é facilmente falseável, principalmente na era digital. Há, portanto, um sentimento de irrealidade e uma espécie de complexo de impostura que ronda a atualidade. Ao mesmo tempo, o true crime se apresenta como uma certeza.
— Por mais que a gente possa discutir se sim, se não, motivos, razões, causas, há um morto. Isso funciona como um apaziguador para essa sensação geral de fluidez e de indeterminação — analisa o psicanalista.
Identificação e violência
Paralelamente à certeza da morte na vida, outro elemento entra em cena para explicar esse comportamento, superando o mero acaso do óbito: existe uma pessoa capaz de mudar o destino — o criminoso.
— Isso coloca a gente em uma identificação com o criminoso. Porque ele teve coragem de mexer na equação. Isso fascina, porque é um nível de domínio sobre a vida que a gente sente que não tem. Ele impõe o destino previsível, premeditado, ao outro — afirma Dunker.
Há aqui também uma relação com a violência. Conforme Neusa, um mecanismo inconsciente faz com que o espectador possa aliviar elementos de violência ao consumir esses conteúdos. Outro fator, para alguns tipos de estrutura de personalidade, é a busca do prazer por meio das cenas de violência e dor.
De acordo com Freud, os humanos recalcam e reprimem a sexualidade, bem como a agressividade e o sadismo — o prazer de ver o outro sofrer. Já o professor da USP argumenta que o que as pessoas querem recalcar em si mesmas, primeiramente, são esses mecanismos hostis e sádicos:
— A gente não suporta vê-los em nós mesmos. O que o true crime oferece é: eu posso viver isso por deslocamento. Eu posso viver isso através de um outro, e ninguém vai ficar sabendo que eu não estou só torcendo para a equipe de investigação, estou torcendo para o cara pegar mais uma.
Contudo, a identificação pode ser tripla: tanto do ponto de vista do criminoso, que representa o id, quanto da vítima (ego) e do investigador (superego), configurando uma montagem das três exigências básicas do funcionamento psíquico.
— Você assiste isso para mobilizar seus impulsos sádicos e não cometê-los. Deixar que o outro aja por você, na distância de deslocamento — resume o psicanalista.
Saúde mental
Esses conteúdos violentos podem ter impactos na saúde mental, avaliam os especialistas. Ver os casos resolvidos, por exemplo, pode trazer uma sensação de conforto e uma certa ilusão de controle, segundo Neusa.
— Segundo cientistas na área da neurologia, o fato das pessoas assistirem a esses conteúdos dentro de suas casas pode funcionar como uma forma de alertar aos sinais de perigo e, com isto, amenizar a ansiedade em relação a estas situações — acrescenta.
Essas questões dialogam diretamente com os aspectos positivos do consumo de conteúdos de true crime observados por Elisangela Reghelin, delegada de Polícia, diretora-geral da Academia de Polícia Civil do RS e professora de Direito Penal na Unisinos. Para a delegada, é relevante conhecer cada história e seus detalhes para entender o que se passou, prevenir novas incidências e aprofundar o conhecimento sobre determinados temas, como no caso da perigosidade criminal dos psicopatas sexuais e dos assassinos em série.
— No caso da violência contra a mulher, especialmente, muitos alertas são disparados nesse tipo de filme ou série, favorecendo, na prática, a tomada de uma maior cautela no dia a dia e, até mesmo, podendo auxiliar em algum processo de elaboração interna — explica.
Por outro lado, é claro, há aspectos negativos: o consumo, quando excessivo ou desenfreado, de materiais contendo extrema violência, e em certas situações, tomando grande parte do tempo, costuma denotar que algo não vai bem, alerta a diretora-geral da Academia de Polícia Civil. Isso pode ser ainda mais preocupante em se tratando de crianças, jovens ou pessoas com alguma vulnerabilidade.
Há, além desses casos, pessoas com compleição perversa, como psicopatia ou sociopatia.
— Esse tipo de produção agrega também pessoas como copycats (imitadores), que estão planejando coisas e se perguntando seriamente: "Por que não assassinar?" — afirma Dunker.
Impacto na sociedade
Esse consumo, que já ocorre em grande escala, traz ainda impactos para a sociedade, defendem os especialistas.
— De algum modo, os meios de comunicação, a televisão e as redes sociais despertam ou estimulam as pessoas a atualizarem as suas pulsões de morte (tendência à destruição e à agressividade) — explica José Vicente Tavares, sociólogo e professor do programa de pós-graduação em Sociologia e em Segurança Cidadã da UFRGS.
Desta maneira, conteúdos de true crime estimulam a agressividade humana, conforme o professor. No entanto, Tavares lembra que não é porque a pessoa vê um crime na televisão que ela comete um crime. Por outro lado, também poderiam estimular um controle da agressividade — pensamento do qual Dunker compartilha:
— É difícil, porque você tem um impacto genérico e muito discutido de que exposição à violência pode causar tanto aumento de violência, quando não tem mediação, quando é mimético, quanto a prevenção da violência, quando é objeto de reflexão, objeto de pensamento crítico.
Além disso, para Teixeira, o borramento entre a ficção e a realidade gera um problema de contribuição para um senso de insegurança e de medo nas esferas coletivas.
— A gente não consegue necessariamente localizar ou apontar concretamente por que vivemos com medo, do que temos medo, mas ele se manifesta nas interações, ou na falta de interações, no isolamento, na falta de busca por soluções coletivas para problemas coletivos, e um reforço das estratégias individuais para sobreviver — explica o professor.
Ele ressalta que o caminho do individual ao coletivo se torna cada vez mais rápido. Ele distingue duas dimensões desse fascínio: como um consumo cultural consciente; e como algo perigoso quando esse consumo cultural se torna essencial como condição de existência.
— Quando você transforma esse fascínio em uma essencialização, aí sim a gente tem um problema que transborda do individual para o coletivo, e ele é muito perigoso — salienta.
Neste mesmo sentido, essa profusão de histórias também suscita um debate sobre os limites em recriar acontecimentos e de como veicular crimes sem exaltá-los. Há especialistas que defendem que não se deve recontar crimes cruéis. Conforme Dunker, isso segue a lógica do suicídio e de massacres a escolas:
— Se você espetaculariza isso, você acrescenta um ganho de satisfação a mais e de desinibição a mais para aqueles que já estão no limiar de fazê-lo. Eu não gosto muito dessa palavra, mas funciona como uma espécie de gatilho, de “olha, isso não é tão ruim assim” — explica o psicanalista, destacando que isso pode construir uma espécie de “imagem heroica” para alguns, de que a pessoa será lembrada pelo crime.
O fascínio também pode refletir na busca pela atuação profissional. A delegada e professora Elisangela percebe que muitos alunos buscam o curso de Direito para entender as questões criminais que hoje pautam o espaço público. Muitas pessoas também acabam buscando a atividade policial como decorrência desse fascínio, já que a investigação deriva da curiosidade pelas formas de elucidação de crimes.
Tendência histórica
O interesse do ser humano por crimes violentos vem desde a antiguidade e os tempos bíblicos, quando as pessoas assistiam publicamente às punições aos criminosos, lembram os especialistas. Com o surgimento da imprensa, as notícias passaram a abordar os crimes, e, mais tarde, as histórias de detetives e criminosos ganharam espaço na literatura. Ou seja, o suporte foi alterado, mas o interesse continua o mesmo — sendo ainda mais fácil obter o conteúdo na atualidade, por meio da internet ou da TV.
As narrativas não são tão variáveis, pondera Dunker, mas a história do crime é uma das mais centrais da cultura e da civilização humanas. Isso porque, de certa forma, o que funda a experiência social são as leis e as regras — que as pessoas passam a querer transgredir.
A multiplicação de séries, podcasts e documentários que abordam crimes que aconteceram na vida real é baseada no interesse do público. Configura-se, assim, uma relação que se retroalimenta, conforme os especialistas.
— Nenhum desses produtos precisa ser banido, porém seu consumo deve ser consciente e responsável, especialmente considerando as condições do espectador — conclui Elisangela.