Passava das 15h30min de quarta-feira, 21 de dezembro, quando uma batida na porta, seguida de um “ho ho ho”, chamou a atenção de crianças e mães que ocupavam o espaço de recreação do Setor de Oncologia Pediátrica, no terceiro andar do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Com o saco de presentes em mãos, o Papai Noel e ex-paciente oncológico da instituição se aproximou da primeira mesa e logo foi surpreendido pelo abraço tímido de uma menina de quatro anos, já sem cabelos, em função da quimioterapia.
É por esses gestos sinceros de carinho que Germano Hofler, 45 anos, incorpora o Bom Velhinho há 13 anos nas festas e ações de Natal do Instituto do Câncer Infantil (ICI). O gaúcho, que teve uma parte da perna direita amputada durante seu tratamento, atua há mais de duas décadas como voluntário da instituição que o acolheu, em 1995, ainda na adolescência. A entrega de presentes realizada na última quarta-feira (21) foi o terceiro evento ao qual compareceu somente neste ano.
Natural de Estrela, no Vale do Taquari, e morador de Teutônia, Hofler precisou de poucos minutos para se tornar o Papai Noel. A parte mais demorada foi colocar um revestimento na perna mecânica, antes de vestir a calça vermelha, para dar uma aparência mais natural ao membro que lhe permite se locomover normalmente. A prótese, que inicia antes do joelho, o acompanha desde os 18 anos.
Além do típico traje vermelho, que foi doado ao ICI neste ano, o gaúcho colocou barba e peruca brancas para a ação. A esposa, Andrisa Schaefer, 40 anos, ajudava botando as luvas e pintando as sobrancelhas de Hofler com lápis branco. Já o filho, Pedro Henrique Schaefer Hofler, 17, acompanhava atentamente a preparação — ele costuma participar das festas de Natal do instituto junto ao pai.
— Espero o ano todo por isso, mas cada ano é como se fosse o primeiro. É muito legal saber que podem ter crianças ali que nunca viram o Papai Noel. Talvez seja o primeiro Natal de algumas nessa situação, e é bem diferente. Eu passei um Natal aqui dentro. As crianças que entendem mais, esperam o ano inteiro por essa data, mas daqui a pouco tem que ficar no hospital. Então, esse é um momento de tentar trazer algo especial, quase como a mesma realidade que elas teriam em casa: uma festinha, entrosamento, presentes — explica Hofler, que é técnico judiciário.
Para Graciela Fernanda Fritzen, 36 anos, mãe de Cecilia Helena Fritzen Silva — a menina que abraçou o Papai Noel logo na chegada —, a presença de Hofler é muito emocionante, principalmente por ele ser um ex-paciente.
— É muito gratificante ver eles (os pacientes) sendo bem acolhidos e bem tratados por todos. Fica uma alegria maior ter o Papai Noel, porque eles ficam contentes, é muito legal. É bem importante para eles terem esses momentos, para se sentirem bem acolhidos e poderem vivenciar isso — afirma Graciela.
Aos quatro anos, Cecilia está fazendo tratamento com quimioterapia desde setembro, devido a um tumor no olho. Questionada pela reportagem, a menina afirma com a cabeça, enquanto brinca na mesa, que não sente medo e que gosta do Papai Noel.
Aos 17 anos, o diagnóstico
Hofler tinha 17 anos quando foi diagnosticado com um sarcoma de Ewing — tumor que atinge os ossos e as chamadas partes moles, como músculos, ligamentos e tendões — na perna direita. Após as primeiras sessões de quimioterapia no HCPA, passou por uma cirurgia para retirada do câncer.
Durante a operação, foi constatado que o tumor havia prejudicado as veias da perna, comprometendo a circulação de sangue. Assim, seria necessário amputar parte do membro, logo acima do joelho.
— Meu sonho era fazer 18 anos e tirar a carteira de motorista. Então, quando o médico me deu a notícia de que eu ia perder a perna, a primeira imagem que me veio na cabeça foi a de amputados que eu via na rua, com muletas debaixo dos braços, com mobilidade zero. Nunca tinha ouvido falar em perna mecânica. Mas o médico me explicou que, com uma, eu poderia caminhar normal — relembra.
Cerca de seis meses após a amputação, realizada em outubro de 1995, Hofler colocou a prótese. Ele conta que foi necessário reaprender a caminhar, mas que em pouco tempo as muletas deixaram de ser necessárias.
Após o fim do tratamento contra o câncer, o gaúcho ficou um tempo afastado do ICI. De acordo com ele, sentia que o período era necessário para que pudesse se “curar por completo”. Hofler afirma que foi a uma festa de Natal da instituição, enquanto era paciente, mas depois, mesmo recebendo os convites anuais, passou três ou quatro anos longe das comemorações.
Já com mais de 20 anos, decidiu aceitar o convite e ir à festa, incentivado pela mãe. Durante o evento, foi apresentado a um menino de 13 anos, que também teve a perna amputada e estava chateado. Foi convidado por uma voluntária a conversar com o garoto, que os apresentou e contou sua história.
— Ele ficou me olhando, eu puxei a calça para cima e mostrei a perna mecânica. Daí os olhos dele brilharam, e eu vi que a gente fez uma troca. Eu me vi na história dele e ele se viu já no futuro, caminhando. Conversamos durante toda a festa. Infelizmente, ele não resistiu, mas eu vi que aquele momento foi muito importante para ele. Então, eu pensei: “meu Deus, eu não posso mais ficar sem fazer isso” — relata Hofler, que se emociona ao contar sua história.
A partir de então, o gaúcho passou a visitar o instituto com mais frequência e a participar de todos os eventos que podia, sem falhar mais nenhuma festa de Natal. Às vezes, era convidado a conversar com os pacientes, mas, em outras situações, apenas servia como exemplo de alguém que venceu o câncer. Em 2009, foi convidado pelo ICI para ser o Papai Noel dos eventos:
Poder chegar como o próprio símbolo da esperança, poder levar palavras de conforto, é muito transformador. E quando as pessoas descobrem que o Papai Noel é um ex-paciente, aí sim, é mágico.
GERMANO HOFLER
Voluntário e ex-paciente do Instituto do Câncer Infantil
— Aí sim foi o auge da carreira de voluntário. Poder chegar como o próprio símbolo da esperança, poder levar palavras de conforto, é muito transformador. E quando as pessoas descobrem que o Papai Noel é um ex-paciente, aí sim, é mágico.
A esposa e o filho de Hofler costumam acompanhar as ações de Natal, quando possível. Andrisa garante que o marido fica sempre muito feliz depois dos eventos e que a iniciativa é uma de suas maiores realizações.
— É algo muito legal de acompanhar. Para quem vê de fora, às vezes, pode não ficar claro o real significado da coisa, mas acompanhando tu vê como essa boa ação faz diferença na vida das crianças que passam por uma dificuldade como essa — acrescenta o filho Pedro.
Apoio faz diferença no enfrentamento da doença
Hofler defende que o apoio e a estrutura que o ICI oferece aos pacientes faz muita diferença na luta contra a doença, destacando o atendimento humanizado das equipes. No entanto, garante que as ações de Natal não fazem bem somente para as crianças:
— A máxima aquela que a gente recebe muito mais do que dá, para mim, é muito verdadeira. É muito, muito gratificante o retorno e o carinho que se recebe. Eu sou só um dando carinho, mas recebo de dezenas e centenas de crianças. É até desproporcional a balança — brinca.
Para Hofler, o principal após as ações é sentir que as mães veem nele uma esperança, quando conta sua história. O gaúcho explica que faz questão de ressaltar que foi paciente e já esteve no mesmo lugar daquelas crianças, pois entende a angústia dos pais, que também são muito afetados pela doença.
Sarcoma de Ewing
De acordo com Lauro Gregianin, médico oncologista pediátrico do Instituto do Câncer Infantil e chefe do Serviço de Oncologia Pediátrica do HCPA, o sarcoma de Ewing é um tumor que atinge os ossos (em 70% dos casos) e as chamadas partes moles, como músculos, ligamentos e tendões (em 30% dos casos). A maior incidência desse tipo de câncer é em adolescentes entre 15 e 17 anos, e os locais mais comuns são nos ossos da bacia e das pernas.
— Ele começa a crescer no osso e não apresenta nenhum sintoma quando é pequeno. Mas, na medida em que cresce, começa a destruir aquela parte do osso que está atingindo e a causar uma dor leve, que vai se acentuando ao longo das semanas. A tendência é piorar quando atinge uma dimensão maior — explica o especialista, que também é professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Pela falta de sintomas no estágio inicial, pode ser um tumor de difícil diagnóstico precoce. Gregianin afirma que um simples raio X é capaz de identificar esse tipo de câncer, mesmo que ainda esteja em uma dimensão pequena. O tratamento é feito com sessões de quimioterapia, cirurgia e, às vezes, radioterapia.
A expectativa, segundo o especialista, é que sejam diagnosticados cerca de 15 novos casos dessa doença por ano no Rio Grande do Sul, sendo um pouco mais frequente em meninos. Esse tumor representa em torno de 3% dos 9 mil casos de câncer infantil no Brasil por ano, o equivalente a cerca de 300 diagnósticos anuais.
— Quando não se pensa em tumor, ele vai crescendo e tomando uma dimensão que é incompatível com aquele membro. É como se ele abraçasse os nervos e vasos sanguíneos, daí o cirurgião não consegue mais separar o que é tumor e o que é membro. Nesses casos, se perde o membro — aponta Gregianin, dizendo que menos de 10% dos pacientes são amputados em função do sarcoma de Ewing.