Mesmo sem números oficiais, a Promotora de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, Cinara Vianna Dutra Braga, tem percebido um aumento nas devoluções de crianças e adolescentes já adotados na Capital.
Segundo ela, o comum era crianças de até três anos serem adotadas e devolvidas quando chegavam na adolescência pelos chamados "habilitados", os pais adotivos. Nos anos mais recentes, com a criação de projetos de adoção tardia (focada em crianças maiores de três anos e adolescentes de qualquer idade), o número de devoluções estaria aumentando. Ainda é impossível confirmar, contudo, se este número de devoluções cresceu porque também aumentaram as adoções ou se, de fato, os habilitados não estão dando conta da adoção.
— Posso garantir, com certeza, que aumentou o número de devoluções. Estas adoções, muitas vezes, não dão certo porque o habilitado não está devidamente preparado, porque o adolescente talvez não esteja preparado (psicologicamente) ou porque eles não têm um (suporte) pós-adoção que dê conta das dificuldades que vão surgindo. Quanto maior a criança e o adolescente, mais histórias eles têm. E histórias que precisam trabalhadas — justifica a promotora.
Em artigo escrito para o jornal Zero Hora em 25 de maio, Dia Nacional da Adoção, Cinara fez referência à situação das devoluções. Escreveu: "Urge a conscientização dos gestores do sistema de justiça para o adequado aparelhamento das Varas da Infância e Juventude, com juízes, promotores de justiça, defensores públicos, psicólogos, assistentes sociais e servidores cartorários suficientes, a fim de que os processos tenham tramitação regular, possibilitando a colocação das nossas crianças e adolescentes institucionalizados em famílias o quanto antes".
Em Porto Alegre, no ano de 2019, 77 crianças e adolescentes conseguiram uma família. Em 2020, com a pandemia, somente 68 ganharam um novo lar. Mas, no ano passado, 82 receberam novos pais. Neste ano, até maio, 33 já deixaram os lares provisórios.
Hoje, a Capital tem 105 crianças e adolescentes esperando por uma adoção. Apenas duas têm menos de seis anos de idade, enquanto 58 têm entre 15 e 18 anos. Já no Rio Grande do Sul há 482 crianças e adolescentes disponíveis para adoção. Destes, 457 têm mais de dois anos de idade e 111 já têm mais de 16 anos.
Devoluções se tornam processos por danos morais
Sempre que ocorre devolução após a sentença de adoção, Cinara Vianna Dutra Braga aciona a família adotante exigindo indenização por dano moral no valor de R$ 50 mil, mais pensão alimentícia e pagamento de terapia ao adotado devolvido ao Estado.
— Depois do estágio de convivência, depois da pessoa reafirmar a intenção de adotar, depois da sentença transitado e julgado, acabou. É como se filho biológico fosse. Então, vai responder por indenizatória, vai pagar danos morais, alimentos e atendimento de saúde mental, porque é absolutamente inadequado. A criança que está em acolhimento já foi negligenciada, abandonada ou é órfã. Então, ela fica esperando uma família, e chega o habilitado, adota e depois devolve. O sofrimento psíquico é intenso e os danos, irreversíveis. Esta criança fica muito machucada psiquicamente falando — explica a promotora de Justiça da Infância e Juventude da Capital.
Em resposta por e-mail, a Coordenadoria de Infância e Juventude do Rio Grande do Sul afirmou não dispor do número de crianças e adolescentes devolvidos depois de serem adotados. O órgão informou também que está "num processo de organização desses dados, mas ainda muito incipiente e sem projeção de divulgação numa perspectiva próxima. O levantamento que esta Coordenadoria da Infância e Juventude está organizando vem no sentido de, dentre outras informações, obter a motivação para a devolução dessas crianças e adolescentes adotadas".
Conforme a Coordenadoria, desde 2019 existe o projeto Pós-adoção, que encaminha a grupos de apoio famílias que confirmam a adoção. O projeto, que conta com assistentes sociais e psicólogos, foi disponibilizado para todas as 165 comarcas do Estado. No entanto, a Coordenadoria só dá como certa em execução a de Porto Alegre. Somente o juiz da comarca é quem pode determinar se a família deve ser acompanhada durante um período por uma organização de apoio à adoção e assistência social que faz parte do Pós-adoção, que tem parceria com a Coordenadoria. O problema é que esta decisão do juiz só ocorre no ato da adoção. Depois disso, se houver necessidade de suporte psicológico, quem deve arcar com os custos é a família.
— É mais uma coisa para nos preocuparmos. Temos que pensar na preparação e, principalmente, no pós-adoção, no acompanhamento destas crianças e adolescentes e dos pais que adotaram. As dificuldades vão surgir, pois é inerente. Faz parte da adaptação. Agora, como os habilitados vão se portar e como as crianças e os adolescentes vão entender o comportamento dos habilitados, e vice-versa, isso precisamos de acompanhamento técnico — sugere a promotora Cinara.
"Adotamos porque nos apaixonamos, mas sinto falta de um grupo de apoio"
Os empresários Michelle e Marcelo Costa, 41 e 43 anos, respectivamente, viram sua história mudar em fevereiro de 2018, ao serem convidados por amigos a participar de uma ação social e religiosa em lares de crianças acolhidas pelo Estado.
Michelle temia não saber lidar com a ida ao local, conviver com os moradores e não poder levá-los para casa. No fundo, admite, queria ser mãe de todos. Foi lá que ela e o marido conheceram os irmãos Lucas, Sara, Ana Laura e Alice, hoje com 11, 13, 15 e 17 anos de idade, respectivamente. Lucas e Sara foram os primeiros adotados. Depois, chegou Alice. A última a se unir à família foi Ana Laura, no final de 2020.
De lá pra cá, muita coisa mudou. Michelle não nega as dificuldades da adoção tardia e da adaptação à nova realidade da família, e seu relato vai ao encontro do que defende a promotora Cinara, no que diz respeito à falta de suporte pós-adoção.
— Não é fácil a adoção tardia. Você pega um serzinho ali, que já tem uma história imensa, uma personalidade formada, e moldar isso não é fácil. E não há um suporte. Já passamos por algumas crises, pedi para a promotoria acompanhamento psicológico e me conseguiram um local onde dariam um desconto. Mas fizemos uma avaliação e sairia R$ 800 por mês para dois fazerem, e eu e meu marido. No nosso caso, os quatro precisavam de acompanhamento. Ficou muito pesado para nós — conta Michelle, que opina:
— Tinha que ter uma rede de apoio. Porque quando a criança está na instituição ela tem um custo para o governo. Vamos lá e adotamos pelo amor, óbvio. Mas este custo passa a não existir para o Estado. Eles poderiam investir. Nem todas as famílias têm condições financeiras. Adotamos porque nos apaixonamos, mas sinto falta de um grupo de apoio porque não temos condições de manter suporte psicológico.
Entre desafios e dificuldades da adoção tardia, Michelle menciona a responsabilidade de reconstruir sentimentos:
— É preciso fazê-los acreditar de novo no amor, de novo que eles merecem, fazer com que tenham uma identidade novamente, com que tenham esperança e fé nos pais, porque eles foram muito decepcionados por estas figuras. Então é bem difícil, mas é possível. E, hoje em dia, aqui em casa já está estabelecido.
E a mãe de quatro elenca os pontos positivos de abrir a mente e o coração acolher crianças e adolescentes maiores, e garante que o amor se sobrepõe a tudo:
— Um dos pontos positivos de ser mãe adotiva tardia é que os filhos te escolhem. A relação fica mais aberta. Os dois lados vêm muito conscientes e querendo esta relação. Muitas vezes, em conversas, disse a eles: "Vocês nos escolheram, a gente escolheu vocês. A gente decidiu se amar e decidiu ser uma família juntos. A gente tem que fazer dar certo.