Ao saberem que aquele seria o último dia morando na casa lar, os irmãos Lucas e Sara, então com oito e 10 anos, respectivamente, reuniram os poucos pertences num saco de lixo e saíram porta afora, onde já eram esperados pelos novos pais, o casal de empresários Michelle e Marcelo Costa, na época com 37 e 39 anos. Antes de deixarem o lugar que os acolheu nos últimos dois dos seis anos sob a tutela do Estado, despediram-se das irmãs mais velhas, Laura e Alice, 12 e 14 anos. Enquanto os mais novos eram adotados, elas seguiriam na casa lar. Era outubro de 2018, e o que seria um adeus, em meio a lágrimas e abraços, tornou-se um até breve. Hoje, Lucas e Sara já têm o sobrenome Costa no documento de identidade, e Alice deve recebê-lo em breve. Laura uniu-se à mesma família há 10 meses.
Michelle e Marcelo namoraram por três anos até se casarem, há uma década, e decidirem ser pais. Porém, descobriram que não podiam gerar um filho biológico juntos. Quando tinha 11 anos, Michelle enfrentou 28 sessões de quimioterapia e 45 de radioterapia para eliminar um rabdomiossarcoma, um tumor maligno no abdômen, que atingiu o ovário direito e a deixou estéril. Sem avaliarem a possibilidade de adoção, os dois mantiveram reservada a intenção da paternidade por meio de inseminação artificial. Até realizarem o procedimento, previsto para ocorrer em 2018, optaram por morar em um apartamento de um quarto.
Do outro lado da cidade, na casa lar, Lucas e as irmãs já haviam passado por três abrigos e enfrentado diferentes situações, desde apadrinhamentos até propostas de adoção. Todas sem o resultado almejado pelos quatro: ganhar uma mãe e um pai. Alice passou por seis famílias até ser adotada pelos Costa. Laura, por quatro. Sara, três. Lucas, uma.
A esperança de se tornarem filhos de alguém era grande, mesmo com a possibilidade do distanciamento como irmãos, vivendo em diferentes famílias. Não seria tão diferente da experiência de vida com os parentes biológicos. Enquanto Alice e Laura perambulavam pela cidade com a mãe, por vezes ao lado pai, Sara e Lucas eram cuidados pela avó materna. O primeiro convívio como irmãos ocorreu apenas no abrigo, ao serem deixados pela avó com a promessa de que seria uma viagem rápida. Não foi.
A história do nascimento da família Costa começa em fevereiro de 2018. Convidados por amigos para participarem de uma ação social e religiosa em lares de crianças acolhidas pelo Estado, Michelle e Marcelo, que frequentam a Igreja Batista, inicialmente hesitaram. A empresária temia não saber lidar com a questão de ir ao local, conviver com os moradores e não poder levá-los para casa. No fundo, admite, queria ser mãe de todos. Convencidos da positividade do gesto, os dois aceitaram a proposta.
– Lembro da primeira vez em que conversei com a Alice e ela me disse: “Você se parece com a minha mãe”. Quando soube que ela estava há mais de seis anos na casa, a abracei e me machucou por dentro. Fiquei pensando: “Por que tanto tempo? Porque não foram adotados?” – recorda Michelle.
Nos meses seguintes, todas as semanas, o casal seguiu visitando o lar e se aproximando cada vez mais dos irmãos. Nesse período, conversaram com a assistente social e com a psicóloga e conheceram o histórico e as dificuldades enfrentadas pelo quarteto.
Em abril de 2018, decidiram apadrinhá-los. Mas havia uma barreira. Alice, com quem Michelle diz ter encontrado afinidade logo no inicio, já tinha padrinhos, e Laura estava em processo de apadrinhamento. Lucas e Sara, então, tornaram-se seus afilhados.
– Cheguei a ir para ser adotado, mas fui devolvido e esperava uma outra chance – lamenta Lucas, que logo abre a um sorriso ao ouvir da mãe e das irmãs que, se a situação não tivesse ocorrido, ele não seria adotado por Michelle e Marcelo.
Os encontros quinzenais, aos fins de semana, garantiriam passeios e horas de confraternização. No entanto, o casal foi surpreendido na conversa inicial entre os quatro e a assistente social.
– A reação deles nos espantou porque saíram da sala dizendo: “Eles vão ser os nossos pais, vão nos adotar!”. Olhamos para a assistente social e perguntamos se ficaria tudo bem eles nos chamarem de pais.
Ela nos orientou a deixarmos os dois à vontade – lembra Michelle.
Lucas se emociona ao recordar o episódio, assim como toda a família.
– Quando o pai e a mãe visitavam a casa lar, eu ficava olhando para eles e dizendo para mim: estes vão ser os meus pais – confidencia Lucas, embargando a voz.
O primeiro final de semana de Sara e Lucas ao lado dos então padrinhos foi no Dia das Mães de 2018. A escolha da data partiu de Marcelo, acordada com a assistente social, como um presente à esposa. Os irmãos participaram de uma festa que também contou com familiares do casal.
– Foi bem emocionante. Eles já vieram nos chamando de pais, e os nossos parentes ficaram impressionados com a conexão entre nós. Era tudo tão normal, tudo tão tranquilo – lembra Michelle.
Marcelo recorda que, na confraternização, os familiares avisavam o casal algumas vezes quando as crianças os acionavam.
– Nosso cunhado nos alertou de que eles chamavam de mãe e pai e não dávamos bola. Foi uma surpresa boa – comenta o empresário.
– Demorei a atender que eles me chamavam de mãe, mas amei desde o início – completa Michelle.
– A gente sente prazer de chamar vocês de mãe e pai – derrete-se o serelepe Lucas, apoiado por Sara, para a alegria dos dois.
Entre as noites de sexta-feira e domingo, os irmãos ficavam com os padrinhos, e as despedidas costumavam ser em lágrimas.
– Era uma choradeira quando tínhamos que devolvê-los – recorda Michelle, antes de ser interrompida pelo serelepe Lucas.
– Devolver, não! Levar de volta para a casa lar e no outro final de semana nos buscar novamente – corrige sorrindo o menino, que diz não gostar da palavra “devolver”.
Meses depois, sem dúvidas de que seriam os pais de Sara e Lucas, os empresários contrataram um advogado para agilizar a adoção dos dois irmãos. Hoje, segundo a promotora de Justiça da Infância e Juventude da Capital Cinara Vianna Dutra Braga, os processos estão mais ágeis e não há a necessidade de os interessados chamarem um profissional do direito.
Para terem mais espaço com as crianças, Michelle e Marcelo trocaram o apartamento por uma casa com três quartos. Após um mês, ao saberem que a relação de Alice com os então padrinhos não havia evoluído para a adoção, o casal perguntou a ela se gostaria de ser apadrinhada por eles.
Mesmo desconfiada de que o convite seria retirado em seguida, a adolescente começou a visitar a cada 15 dias a família dos irmãos. Enquanto a mais velha e os dois mais novos ganhavam outros rumos, Laura seguia separada, em processo de adoção por outro casal. Apesar disso, Michelle e Marcelo fizeram questão de manter a jovem próxima dos irmãos. No verão de 2019, Alice e Laura, esta liberada pela família com a qual já estava morando, passaram um mês em Capão da Canoa com os Costa. Foi a primeira vez dos quatro no mar. Ao fim da temporada, a irmã mais velha não voltou à casa lar.
– Não acreditei quando a mãe falou que ficaria comigo. Achei que seria só mais uma mãe. Pensei que eles iam nos pegar e nos devolver depois. Estou muito feliz, foi a melhor coisa que já me aconteceu – afirma Alice.
Para a empresária, a conexão se deu porque o casal sempre quis ter filhos e os irmãos passaram os anos mais recentes desejando terem pais. A acolhida recíproca impulsionou a adoção, diz Michelle.
No início deste ano, a família que adotaria Laura desistiu do processo. Imediatamente, os Costa se ofereceram para serem os tutores legais. A mãe explica que a reaproximação das irmãs mais velhas trouxe paz para ambas, que se tornaram grandes amigas.
Aprendendo a convivência
Proprietário de uma loja de consertos de celulares e computadores na Zona Norte, o casal optou por morar em um prédio ao lado do estabelecimento comercial, onde trabalham de segunda a sexta-feira. Antes dos filhos, o casal também atendia aos sábados. A mudança na agenda pessoal foi para estarem mais próximos do quarteto e acompanharem os estudos, já que as mais velhas não frequentaram a escola enquanto estavam com os pais biológicos. Lucas está no quarto ano, Sara, no quinto, Laura, no sexto, e Alice, no nono ano.
Com a chegada da quarta irmã, foi preciso mudar até o carro, de um Cerato para uma Doblo. A intenção era trocar o apartamento de dois quartos por uma casa no mesmo bairro, mas vieram a pandemia e o distanciamento social. A mudança deverá ser concretizada nos próximos meses.
Em situações do dia a dia, como aprender a ajudar nas tarefas domésticas, os pais perceberam o desconhecimento dos irmãos sobre o mundo fora da casa lar. Até morarem com os Costa, os irmãos tampouco sabiam diferenciar dinheiro e os preços dos produtos. Certa vez, a mãe pediu a Alice para comprar fatias de queijo que seriam consumidas no café da manhã. Michelle tinha apenas uma nota de R$ 50 e a repassou para a filha. Quando Alice retornou, veio a surpresa: tinha comprado todo o valor em queijo.
A relação entre pais e filhos também foi se estreitando com o passar dos meses. Entender o comportamento de cada um tem sido um desafio diário para os seis.
– As crianças não estão pedindo dinheiro, pais ricos e lugares chiques. Elas precisam de amor, de pessoas que estejam dispostas a se entregar a elas e amá-las – resume Marcelo.
Certa tarde, Alice estava pensativa e silenciosa, despertando a atenção do pai. Questionada sobre o motivo daquele comportamento, a adolescente confessou estar apreensiva sobre onde moraria após os 18 anos – imaginando que seria como se ainda estivesse na casa lar, onde os jovens podem permanecer até alcançarem a maioridade.
– Acalmei-a, dizendo que ela não precisaria ir embora. Eles não sabiam como era ser filho e a gente não tinha experiência de ser pai. Aprendemos juntos. É uma troca. Me coloco no lugar deles e imagino como deve ser difícil se adaptar à nova realidade – expõe Marcelo.
Laura, Alice e Sara agradecem pelo carinho dos pais e reconhecem o esforço de ambos para manter os filhos unidos. E também se surpreendem com os gestos espontâneos do casal.
– A gente diz “pai, te amo” e ele chora – Laura revela.
No início deste mês, depois de completar 16 anos, Alice comentou com os pais que gostaria de trabalhar. Por ter habilidade com artes e tarefas manuais, foi convidada pela mãe de Marcelo para atuar num ateliê de costura mantido por ela e localizado na mesma rua em que moram.
Durante a semana, quando não estão em aula, Laura e Sara são as responsáveis por cuidar do almoço e de parte das tarefas domésticas. Lucas faz companhia aos pais na loja. Aos domingos, quando não estão reunidos e assistindo a algum filme, um dos passatempos favoritos da família, costumam visitar o sítio de um parente e um pesque-pague na Região Metropolitana ou percorrer parques da Capital, a exemplo da Redenção.
Para o próximo verão, a família planeja ficar um mês no Litoral Norte. Está na agenda também visitar a terra natal do pai, Pato Branco (PR), viagem adiada por conta da pandemia. Quase todos os parentes de Marcelo seguem morando na cidade paranaense, inclusive a avó de 97 anos, que pediu para conhecer os bisnetos.
Michelle diz que os seis tiveram mudanças positivas desde a primeira adoção. Seja no trato com a família, nos estudos e até na forma de agir.
– Adoção não é um ato de caridade. É um ato pensado, racional. É uma decisão conjunta de amar incondicionalmente aquele ser e de ser para ele aquilo que precisa: um pai e uma mãe. O amor que sentimos por eles é incondicional – ensina Michelle.
Laura é um exemplo de mudança. Antes da adoção, tinha dificuldades em ouvir respostas negativas. Era uma forma de se proteger, acredita. Agora, garante estar desacelerada e compreendendo os ensinamentos dos pais. No gesto de contar os dias desde a adoção, como também fazem os irmãos, demonstra a felicidade de ser uma Costa.
– Foi em 5 de fevereiro de 2020. Guardei este dia porque é especial. É a data em que realmente encontrei a minha família – sintetiza, abraçada pelos irmãos e os pais.
Adoções podem ocorrer em até 90 dias
- Segundo promotora Cinara, a situação dos Costa foi muito diferente do padrão nas casas lares. Uma família não pode ir ao local e escolher quem pretende adotar. Ela ressalta que a adoção ocorre conforme a ordem da sentença de habilitação. Só adota quem está habilitado para fazê-lo. "Neste caso, não ocorreu dessa forma. A rigor, não havia ninguém habilitado para adotá-las. Era um grupo de irmãos com mais idade, e poucos se interessam por crianças maiores", justifica Cinara.
- A promotora explica que, quando uma criança chega ao acolhimento, a meta é conseguir que volte à família de origem. Quando não há condição, ela é encaminhada para a adoção. Mas, se tem mais de seis anos e não há interessados, acaba incluída em projetos de adoção tardia ou adoção internacional. Enquanto espera por uma oportunidade, é colocada em apadrinhamento afetivo. Hoje, só vão para essa situação crianças e adolescentes com status jurídico definido: não voltarão para a família de origem e não têm habilitados interessados à adoção.
- Segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça, em Porto Alegre, dos 730 acolhidos, 137 estão aptos para adoção e há 596 pretendentes à espera de um filho. Entretanto, a maioria dos que estão aptos a serem adotados tem mais de seis anos, faixa etária que não costuma despertar interesse dos habilitados.
- No Rio Grande do Sul, há 315 crianças ou adolescentes aptos e 4.225 habilitados. No Brasil, são 5.166 para 35.878 habilitados a adotarem.
- Quem deseja adotar uma criança ou um adolescente deve acessar o site do Conselho Nacional de Justiça, ingressar no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento e preencher um pré-cadastro. O interessado receberá um número de protocolo e orientações sobre os documentos que precisarão ser reunidos e levados no Juizado da Infância e da Juventude. "O processo de habilitação para a adoção está levando cerca de quatro meses. E está ocorrendo mesmo durante a pandemia", esclarece a promotora.
- Antes de ser habilitado, o pretendente passa por entrevista com psicólogo e assistente social. Conforme o perfil de interesse, o tempo de espera poderá ser menor ou maior. "Se o interesse for por uma criança com mais de seis anos de idade, talvez nem precise entrar na fila de espera, porque as pessoas querem crianças pequena", ressalta Cinara.
- O pedido de adoção não necessita de advogado e não há burocracia no processo. Em 2017, quando os Costa decidiram adotar, apenas um juiz tratava do assunto em Porto Alegre. Hoje, são quatro juízes e sete promotores agilizando os processos em tramitação.
- Se o pretendente estiver habilitado, será o sistema que vinculará o nome ao perfil de criança apta para adoção. Feita a vinculação, a pessoa é chamada e é preenchido um formulário à mão no próprio juizado. O interessado será acompanhado pelos técnicos do Judiciário e, se a criança já estiver destituída do poder familiar ou é órfã, as adoções tramitam em até 90 dias.
Outra alternativa para adotar
- Além do cadastro no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, via site do Conselho Nacional de Justiça, há também outra possibilidade: via aplicativo Adoção.
- Criado em 2018, esse aplicativo é uma iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), em parceria com a Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS) e o Ministério Público Estadual.
- O acesso a todas as informações das crianças e adolescentes é restrito aos pais registrados no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), independentemente do Estado em que moram. Eles serão identificados a partir do CPF e do e-mail cadastrado no programa.
- Disponível para Android e iOS, o aplicativo Adoção reúne informações como características físicas, vídeos e fotografias daqueles que estão aptos à adoção.