Milton abandonou a vida profissional e pessoal para se dedicar ao próximo. Nira e Lucia estão sempre prontas para atender solicitações de ajuda. Paulo transformou dor em amor. Para eles, estender a mão a quem precisa, espírito que costuma transbordar em muitos neste período de Natal, ocorre o ano inteiro.
Em comum, os quatro criaram instituições que hoje atendem gratuitamente e impactam centenas de crianças e adultos em situação de vulnerabilidade no Rio Grande do Sul. E para esta reportagem, relutaram em aparecer nas fotos porque acreditam que o trabalho desempenhado é mais importante do que mostrarem os rostos. Mas aceitaram participar da entrevista para que as instituições criadas por eles se tornem conhecidas por mais pessoas e, quem sabe, sensibilize outros a ingressarem na corrente do bem durante o ano inteiro.
"A essência de tudo é o amor"
Engenheiro mecânico, professor universitário em sete cursos há mais de duas décadas, perito e proprietário de três empresas, Milton Serpa Menezes, de Passo Fundo, deixou de ver sentido na vida que levava com a agenda sempre lotada. Era início dos anos 2000, e Milton achava que havia uma missão maior para a existência dele na Terra. Queria trabalhar com algo que envolvesse amor ao próximo.
Na época, ele cogitou a possibilidade de abandonar todas as atividades que desempenhava. Porém, ele tinha um casamento feliz e estável e um filho adolescente. Depois de considerar todas as alternativas, propôs a si mesmo que deixaria as funções em 2011, quando o filho já estivesse formado no Ensino Superior e estabilizado na profissão. Até lá, também teria tempo de convencer a esposa a acompanhá-lo na vida que pretendia levar ou encerrar o casamento de quase três décadas. O casal acabou se separando em 2008. No ano combinado uma década antes, Menezes cumpriu a meta de se afastar das funções exercidas por ele.
— Acredito que, se a gente quer mudar a vida, precisa mudar a nossa energia e a vibração. Pesquisei e frequentei muitas religiões e doutrinas. Meditei muito. Busquei me espiritualizar — conta Milton.
Ao renunciar a vida pessoal e profissional, doar todos os bens e trocar uma cobertura onde vivia na área central de Passo Fundo por um terreno com duas casas, o engenheiro mecânico, com o apoio de amigos, fundou a Ong Amor. A entidade de assistência social, comunitária e filantrópica realiza ações direcionadas a famílias e pessoas em vulnerabilidade social.
Com a ajuda de voluntários e parcerias com empresas, entidades e outros órgãos, oferece programas de assistência social, atendimento de crianças e adolescentes, visitação familiar, geração de renda, distribuição de alimentos, distribuição de roupas e agasalhos, inclusão social, atendimento psicológico, qualificação profissional e oficinas. Hoje, desenvolve nove programas e atende centenas de crianças, adolescentes e famílias de Passo Fundo.
Com o filho morando e trabalhando em Porto Alegre, Milton passou a viver no mesmo terreno da entidade. Foi a forma encontrada para manter-se disponível 24 horas por dia.
— A ong se tornou um laboratório para eu conhecer pessoas e evoluir. E ela não é meu último trabalho. Ainda sigo me preparando para ajudar as pessoas a encontrarem um propósito na vida — revela.
Primogênito de uma família de cinco irmãos, era ele quem ajudava os pais nos serviços da casa e nos cuidados com seus irmãos mais novos. Cristão e católico, desde criança conduzia o terço todas as noites e sempre buscava levar a família para a vivência da religiosidade. Na fase adulta, foi voluntário de diversas ações sociais antes de fundar a própria instituição.
Além das atividades sociais na Amor, Milton também mantém, via redes sociais, um trabalho de prestação de serviço altruístico de auxílio espiritual e aconselhamentos àqueles que necessitam de ajuda.
— Não tenho intenção de buscar holofotes e reconhecimento. Pois o que me move é algo muito maior e que não busco gratidão e muito menos quero mostrar que sou melhor do que os outros. Apenas sou um ser humano com determinadas características e consciência e vivo dando o meu melhor sempre. Tenho um profundo respeito por cada ser, no seu nível de evolução e do importante papel que cada um possui neste mundo — justifica.
Para ele, o propósito da vida é dar e receber amor. E ressalta não ter nada na vida capaz de satisfazê-lo mais do que ajudar alguém.
"A minha missão, na verdade, é fazer deste mundo um lugar melhor para se viver".
MILTON SERPA MENEZES, DE PASSO FUNDO
— A essência de tudo é o amor. E quem ama, respeita, não tem preconceitos, tolera, aceita as diferenças e opções, não é dono da verdade.
Sobre o Natal, ele acredita que o espírito natalino deveria existir entre as pessoas durante todo o ano.
— É o momento onde os seres humanos estão mais sensibilizados, praticam e vivenciam mais o amor. Se todos praticassem (o amor ao próximo) o ano todo, o mundo seria bem melhor — finaliza.
Para ajudar e conhecer a entidade: confira o site.
"Amor é amor"
Uma antropóloga e uma dona de casa, com vidas completamente distintas, acabaram tendo suas histórias cruzadas no bairro São José, em Porto Alegre. E o resultado deste encontro se tornou o que hoje é o Coletivo Autônomo Morro da Cruz.
— Lembro que uma das minhas primeiras ações foi distribuir à comunidade as telhas doadas para a reforma da capela comunitária. Havia ocorrido um temporal, e várias casas foram destelhadas. Não podíamos ficar de braços cruzados. Deus está no nosso coração e nas nossas ações. Acabamos ficando 20 anos sem arrumarmos a capela — conta a catequista, ex-conselheira tutelar por três mandatos, liderança comunitária no Morro da Cruz e dona de casa Elenira Martins Pereira, 59 anos.
Em 2006, a antropóloga Lucia Scalco iniciou uma pesquisa sobre inclusão digital no Morro da Cruz, por meio do Instituto Leonardo Murialdo. No ano seguinte, encontrou Elenira ajoelhada durante um manifesto pedindo um posto de saúde para a comunidade. É a primeira memória que Lucia tem da hoje colega.
Nos seis anos seguintes, Lucia e Elenira, mais conhecida como Nira, foram estreitando laços enquanto a antropóloga pesquisava sobre o impacto do computador nas pessoas de baixa renda da comunidade. Em 2013, um morador do Beco das Pedras, localidade do Morro, teve a casa incendiada. A situação mobilizou Lucia e os moradores para reconstruir o imóvel. Desde essa época, além de pesquisas acadêmicas sobre os moradores da comunidade, Lucia e um grupo de pessoas, incluindo Nira, começaram a se mobilizar para o desenvolvimento de projetos sociais no Morro.
— Nunca me imaginei trabalhando no terceiro setor. Mas já não conseguia mais desenvolver pesquisas sem agir na comunidade — confessa a antropóloga.
Dois anos depois, Lucia realizou um mutirão envolvendo a comunidade para revitalizar o Beco das Pedras. Durante as atividades, a presença das crianças foi percebida por quem participava do evento e, ao invés de retiradas, elas foram convidadas a brincar no local.
— Ali começou uma espécie de escolinha, que nasceu pelas crianças. Foi o primeiro de muitos sábados com sessões de leituras, contações de história e até lanches. No dia das crianças, fiz festa para as crianças na minha casa e a Lucia fez no beco — recorda a dona de casa.
Nira ainda lembra o dia em que Lucia comentou que gostaria de ter um espaço para abrir uma entidade assistencial no Morro da Cruz. Na mesma hora, a líder comunitária ofereceu a capela desativada, que precisaria de algumas reformas. O desejo era ter um espaço único para reunir as pessoas.
— A Nira é muito coração — elogia Lucia.
Em 2018, a dupla e os voluntários passaram a oferecer atividades no turno inverso à escola durante a semana e, aos sábados, aulas lúdicas e abertas à comunidade. Somente no ano seguinte, a entidade foi formalizada como ONG para ter acesso a financiamentos de projetos.
Hoje, Lucia, com 60 anos, é presidente a entidade e tem Nira como braço direito e vice-presidente. O coletivo ainda é formado por membros da comunidade, profissionais de diferentes áreas, universitários e autodidatas e acolhe 50 crianças e adolescentes, entre sete e 14 anos.
Nira relata que já não consegue ficar sem desenvolver trabalhos sociais.
— Se alguém vier ao meu portão, seja qual for o horário, vou atender. Posso não abrir a ong para dar uma cesta básica, mas algo conseguirei para esta pessoa — conta.
Casada há 38 anos com o motorista aposentado Celso Luis de Paula Pereira, 61 anos, mãe de dois filhos — de 17 e de 36 anos — e avó de uma neta, Nira confessa que muitas vezes deixou a família para atuar pela comunidade.
— Minha filha cresceu e só hoje me dou conta de que, muitas vezes, deixei de levá-la para ver o Papai Noel porque precisava ajudar alguém. Não diferencio se é amor à família ou ao próximo. É sempre o mesmo para mim — resume Nira.
Para ajudar e conhecer a entidade: acesse o site.
"Nosso lema é amor em movimento"
Transformar dor em amor foi o caminho encontrado pelo casal Adriane e Paulo Antonio Nahon Penido Monteiro, ambos de 56 anos e moradores de Porto Alegre, para amenizar a perda da única filha, Victória, aos 19 anos, em 17 de julho de 2016. Paulo, que é coronel do Exército, conta que a filha sempre teve momentos de solidariedade envolvendo crianças, e a maior parte das ações foi descoberta pelos pais quando amigos da jovem contaram a eles sobre as iniciativas de Victória.
— Ela tinha um coração bacana. Quando a Victória se foi, perdemos o norte e as nossas referências. Então, decidimos homenagear e honrar a memória dela de uma maneira que ela ficasse cada vez mais viva dentro de nós — relata Paulo.
Quem deu a ideia inicial foi a mãe, que é designer de joias. Na data que marcou o primeiro ano da morte de Victoria, o casal marcou uma missa solidária na paróquia São Manoel. Na cerimônia, os dois anunciaram a criação do Instituto VIctória Nahon, quando solicitaram uma primeira ação de doação de alimentos. Nos 12 meses seguintes, o casal organizou a documentação, registrou CNPJ, conta de pessoa jurídica e contratou contadoria e auditoria externa. A intenção era não navegar na informalidade, porque desejavam ter mecanismos de controle para sustentar as ações e dar explicações aos doadores.
— O instituto foi criado para este objetivo, acima de tudo, de querer transmitir uma mensagem de solidariedade e de amor ao próximo para tentar transformar esta dor em algo com significado — explica Paulo.
Em maio de 2018, para divulgar o Instituto, o casal organizou uma palestra cujo tema foi "Como pensar o Brasil", no Palácio do Comércio. No evento, foram arrecadados alimentos, destinados mais tarde à Casa de Apoio Madre Ana. A primeira ação solidária regularizada ocorreu na missa de dois anos da partida de Victória. Ao todo, 331 cestas básicas foram encaminhadas a algumas instituições de Porto Alegre.
"Queremos, realmente, mobilizar e movimentar o significado do servir no maior número de locais possíveis"
PAULO ANTONIO NAHON PENIDO MONTEIRO
Aos poucos, a entidade ganhou a confiança de mais doadores e o fio condutor do amor se espalhou para outras cidades e até Estados. O casal adotou um formato de campanha, distribuindo panfletos solicitando as doações de valores que já indicavam para qual ação seriam encaminhados e quais produtos seriam comprados. No Natal de 2018, o Instituto doou cestas natalinas nas cidades onde a filha do casal morou: Porto Alegre, Uruguaiana, Brasília, Curitiba e Rio de Janeiro.
Atualmente, o Instituto tem representantes em Curitiba, Brasília, Bagé e Uruguaiana. São mais de 100 voluntários atuantes no Estado, 40 em Curitiba e mais de 20 em Brasília.
— Nosso lema é amor em movimento, porque conseguimos levar a nossa iniciativa para outros Estados — justifica Paulo.
Em 2020, mesmo durante a pandemia de coronavírus, a instituição permaneceu atuante, distribuindo alimentos e 4 mil cobertores. Neste ano, com o apoio financeiro do Bank of América, por meio de projeto, a Instituição pode desenvolver ainda mais ações. Mais de 6 mil cestas básicas foram distribuídas ao longo destes 12 meses, mas a primeira campanha ocorreu no verão de 2021, quando arrecadaram material escolar. Na sequência, veio a distribuição de chocolates para 2.360 crianças na Páscoa.
— Também fizemos uma campanha em homenagem à Victória nos cinco anos da nova vida dela, em julho, quando doamos 2 mil cestas básicas em 13 comunidades carentes. Convidamos representantes do Ministério Público e a PUCRS, que são instituições com credibilidade, para acompanharem a ação. Ainda no inverno, fizemos uma feijoada para arrecadar cobertores. No total, 3 mil cobertores foram entregues em Porto Alegre e em Curitiba. No Dia da Criança, em homenagem à nossa filha, que quando ia à lanchonete só pedia pão, carne e queijo, criamos a campanha Vicburguer. Distribuímos às crianças 1.370 hamburgueres, kits de guloseima, batata-frita e refrigerante. Neste Natal, serão nove ações em Porto Alegre e na Região Metropolitana de distribuição de 1.415 cestas básicas e brinquedos — conta o coronel.
Para Paulo, o crescimento da Instituição representa o compromisso de manter viva a memória da Victória.
Para ajudar e conhecer a entidade: acesse o perfil no Instagram neste link.