Com a vacinação contra a covid-19 a passos miúdos no Brasil – em razão da demora na aquisição dos imunizantes e também por conta do atraso no envio das doses –, quem tem dinheiro passou a fazer as malas em busca da imunização. Países que estão com a vacinação mais adiantada e liberada até mesmo para turistas passaram a receber um grande fluxo de brasileiros. Entre as opções mais procuradas estão os Estados Unidos, já que para receber a imunização, o turista não precisa comprovar residência ou qualquer outro elo fixo com a localidade.
Roberto Nedelciu, presidente da Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa), afirma que a procura por passagens aéreas para o país norte-americano vem crescendo, mesmo com o preço do dólar nas alturas, quando comparado ao real.
— Essa procura é real, diversos associados vêm relatando essa situação ao longo dos meses e pude perceber essa movimentação do turista brasileiro até mesmo na minha empresa. Quem nos procura, geralmente, são pessoas que já se vacinaram, mas que estão preocupadas com os filhos, que por não serem do grupo prioritário, não foram imunizados ainda e estão lá atrás na fila. São pessoas ricas que unem o útil ao agradável. Ou seja, a vacinação e a vontade de viajar — relata.
Nedelciu destaca, contudo, que a compra de um pacote de viagem em direção aos EUA não garante a vacinação. Ele relembra ainda que, para entrar em território norte-americano, os brasileiros precisam passar por uma quarentena de 14 dias em alguma localidade que já tenha acesso livre ao país, visto que os EUA não permitem a entrada de pessoas que tenham passado pelo Brasil 14 dias antes do desembarque.
Por isso, é realizado teste PCR antes de sair do Brasil. Depois, as pessoas fazem quarentena de 15 dias em países como México, República Dominicana, Costa Rica ou outros países do Caribe. Por fim, eles ingressam pela Flórida, pela Califórnia ou por Nova York. Essa viagem, incluindo todas as etapas, parte de valores entreR$ 20 e R$ 25 mil e pode ficar mais cara dependendo dos outros confortos que o turista vai exigir, diz o presidente da Braztoa.
Locais como Rússia, Ilhas Maldivas, San Marino, Romênia também oferecem imunizante aos turistas, diz Nedelciu. Inclusive, um dos postos de vacinação dos viajantes que estão na Romênia fica no "Castelo do Drácula", famoso ponto turístico do país. Para o presidente da entidade, a imunização virou atrativo:
— Eles usam a vacina como ferramenta para atrair turistas. Acredito que não seja um problema porque a dose dessa pessoa aqui no país será dada para outro indivíduo com mais celeridade. Teremos mais pessoas imunizadas e mais rápido.
Aumento da injustiça social
Paulo Leivas, professor de Biotética na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), avalia que a opção de viajar a outro lugar para garantir a vacina não é ilegal, porém ela colabora para o aumento e solidificação da injustiça no Brasil e no mundo. Ele relembra que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a vacina contra o coronavírus um bem público mundial.
— Decorrente disso, podemos entender que ela deve ser um bem de acesso universal. Mas, na medida em que se abre possibilidade para que pessoas ricas acessem as vacinas em outros países, essa declaração cai por terra porque revela ainda mais a desigualdade em que estamos mergulhados — pontua.
Ele ainda complementa:
— Além disso, esse turismo em busca da vacina não impacta nem a camada mais externa da vacinação no Brasil porque o número de pessoas que têm condições de pagar por essa viagem é ínfimo. E os que podem arcar com esse turismo geralmente são os que têm a oportunidade de cuidar da sua saúde, de ficar trabalhando de casa, de diminuírem suas chances de serem infectados, logo, de esperarem por sua vez na fila de vacinação.
Impacto na campanha brasileira
O baque sofrido pelo setor do turismo afetou todos os países do mundo. De acordo com levantamento da Organização Mundial do Turismo (OMT), devido à pandemia, as viagens internacionais registraram uma queda de 70% nos oito primeiros meses de 2020, em relação ao mesmo período de 2019.
Para Aluísio Barros, médico epidemiologista e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a prática não resolve o problema da imunização no Brasil.
— Essa é uma solução para o turismo dos EUA, não para a vacinação do Brasil porque abrange um punhado de gente abastada que vai para os EUA a trabalho ou turismo. A nossa solução para esse problema, como país, é investir na compra de vacinas e acelerar a imunização por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS tem seus problemas, mas promove a imunização de maneira muito eficiente há anos. Nós temos a estrutura para acelerar esse processo, mas falta a vacina — avalia.
Outro ponto de atenção, segundo Barros, é o alto índice de prevalência do coronavírus no Brasil. Para isso, ele faz um recorte. Conforme a 10ª fase da Epicovid-19, 18,1% da população gaúcha têm anticorpos contra a covid-19. Isso quer dizer que 80% da população do Rio Grande do Sul está suscetível a contrair a doença:
— O risco de contaminação no Brasil continua alto mesmo para vacinados, isso indica que o perigo ainda ronda. Os imunizados podem não agravar, mas podem ser infectados. Se os vacinados vierem para cá e começarem a forçar uma vida normal, sem uso de máscara e promovendo aglomerações teremos mais um elemento que vai reforçar o período de outro pico de casos em nosso país.