Por Silvia Sperling Canabarro
Nutricionista
Há muito tempo que não escrevo. Há centenas de dias interrompi meu processo de catarse literária. Obviamente não foi por falta de conteúdo, visto a catástrofe que assolou a humanidade no último ano e que nos desolou e nos arrastou até onde nos encontramos agora. Fomos postos cara a cara com a tristeza, a solidão, o pânico, a finitude e a impotência frente a nossa insignificância, no sentido mais amplo da palavra. Podemos ser gigantes em sentimentos e atos, mas um vírus, um organismo invisível, é capaz de destruir sonhos, de mudar radicalmente nosso plano de vida.
E assim, esmagada pelo peso desse vírus que se espalha sorrateiramente, me vi na linha de frente. Não de um hospital ou de uma unidade médica de urgência, mas na linha de frente no cuidado do meu filho autista, que, sem entender direito o que aconteceu no mundo, teve sua rotina agitada bruscamente modificada. Sem atividades com psicopedagogos, terapeutas ocupacionais, fono e escola. Com uma mãe que só sabe ser mãe. Não sabe planejar atividades pedagógicas ou criar jogos educativos. Uma mãe que adorava passear com o filho no shopping, ir a restaurantes, viajar de avião, proporcionar atividades sociais que o lapidassem para o convívio em sociedade e ampliassem seu repertório de mundo, já que sua mudez e incapacidade de externar os sentimentos e aprendizagens de forma clara o deixam em constante desvantagem cognitiva.
Pois, então, me paramentei com as máscaras descartáveis hospitalares mais eficientes e com latas de álcool spray para nossa missão cotidiana de permanecer vivos e enxergar a beleza que nos cerca e a qual somos privilegiados em usufruir. Mas o que me paralisou e me deixou cética quanto à possibilidade de viver em harmonia social foram as atitudes e os comportamentos cruéis de pessoas em meio à pandemia. É bizarro as pessoas se aglomerarem sistematicamente e extremamente cruel sair para a rua sem máscara.
Os únicos prazeres fora de casa que posso proporcionar ao meu filho, neste momento, são uma refeição ao ar livre ou caminhar no nosso condomínio verde e na beira da praia. Mas até esses pequenos prazeres nos são ceifados, pois é raro encontrar uma mesa externa de um restaurante com o correto distanciamento. Nos resta um único oásis na praia. Uma área externa de um shopping à beira-mar, com um sofá agradável em que posso despejar todo o conteúdo de um frasco de álcool para higienizá-lo sem ser olhada como uma lunática. E assim, em um horário programado, distante dos demais, como manda o protocolo, meu menino adolescente pode relembrar um pouco o que é a vida normal.
Nossas caminhadas, também essenciais à saúde física e mental (nossa reminiscência de liberdade), tornam-se igualmente uma aventura arriscada e me levam à cólera à cada saída. Meu filho não usa a máscara por sua incapacidade mental de entender sua importância, mas a maioria das pessoas que cruzam nosso caminho tampouco a usam, e o fazem por incapacidade moral. É um desajuste comportamental muito pior que a deficiência dele, pois coloca em risco a vida dos outros intencionalmente. É um misto de ignorância, bestialidade e maldade.
Dessa forma, novamente, a desajustada passa a ser eu, que tenho de caminhar em zigue-zague para desviar dos transeuntes sem proteção facial e, assim, proteger meu filho. Nosso passeio, muitas vezes, é tenso, meio exaustivo, mas, no final das contas, fico contente em poder sair da nossa redoma acolhedora chamada de lar, porém que, a essa altura, assemelha-se a uma prisão domiciliar.
E então finalizo essa reflexão expondo que nunca me senti tão angustiada e ao mesmo tempo afortunada. Tão decepcionada e esperançosa. Tão ociosa e produtiva. Tão distante do coletivo e feliz. Atenta ao cuidado, rezando e cantando:
“Ainda leva uma cara
Pra gente poder dar risada
Assim caminha a humanidade
Com passos de formiga e sem vontade...”