Por Nelson Asnis
Professor, psiquiatra e psicanalista
Você, como eu, deve ter amigos ou colegas que são boas pessoas, intelectualmente bem capacitados, mas que a todo o momento não colocam máscara, não cuidam o distanciamento e viajam como o fariam sem pandemia. Por que isso acontece?
Qual a semelhança e qual a diferença entre essas pessoas que aglomeram na praia se divertindo alegremente e quem não o faz? A semelhança é a vontade disso; a diferença é a capacidade de renúncia.
Uma das maiores dificuldades do ser humano é postergar o prazer. É muito difícil, para as crianças, que precisam brincar, para os adolescentes, que precisam se reunir, e para os adultos e idosos, que não têm mais tanto tempo a perder.
Opondo-se ao princípio do prazer, como assinala Freud, temos o princípio da realidade. E se instala dentro de cada um de nós uma luta. Como o princípio do prazer costuma levar vantagem, o que fazer para ajudar o princípio da realidade? Leis. Que são constantemente burladas.
Porque, como mostrou Freud, cada indivíduo é virtualmente inimigo da civilização. Para ele, a civilização, que significa tudo aquilo em que a vida humana se eleva acima de suas condições animais, não pode prescindir da coerção. Como escreve Zygmunt Bauman em O Retorno do Pêndulo (2017), “enfrentar situações nas quais a balança se inclina contra fazer o que se quer e a favor de fazer algo que se gostaria de evitar”.
O processo civilizatório fez com que a medicina evoluísse do obscurantismo das poções “milagrosas” até chegarmos, no século 19, ao modelo precursor da chamada “medicina baseada em evidências”, a partir dos ensaios de Pasteur e Claude Bernard.
Em mais uma prova de que Freud estava correto quando insistiu ser o indivíduo inimigo da civilização, vemos todos, atônitos, um retorno ao obscurantismo quando pessoas sem formação médica compram, distribuem e “prescrevem” “kits covid”, já exaustivamente testados e considerados sem eficácia contra a covid-19 (por vezes inclusive com potenciais efeitos colaterais prejudiciais) por comunidades científicas de países desenvolvidos nas áreas da terapêutica médica.
Não contentes, os mesmos “especialistas” se outorgam o direito de ridicularizar as vacinas, dando as costas para países com medicina desenvolvida que sabiamente se anteciparam encomendando milhões de doses, que, hoje já vemos, protegem suas populações, diminuindo o número de internações e a mortalidade, como ocorre, por exemplo no Reino Unido e em Israel.
E, nós, brasileiros: por que descuidamos tanto dos protocolos da pandemia? Por que vacinamos nossa população “a conta-gotas”?
Novamente Freud nos ajuda. Porque todos temos, dentro de nós, um potencial de destrutividade pronto a ser acionado, chamado por ele de “pulsão de morte”. Assim como temos também uma pulsão de vida responsável por promover os cuidados para nos protegermos da covid-19. A questão seria não tanto o fato de termos a pulsão de morte, mas sim como lidamos com ela.
O que vemos em nosso país é o livre trânsito da pulsão de morte e, em consequência, do coronavírus. A “pulsão de morte brasileira” parece triunfar sobre a de vida.
A pulsão de morte atua tirando a máscara, aglomerando, distribuindo remédios ineficazes, não comprando respiradores e deixando “a passos de tartaruga” o processo de vacinação.
Mas, voltando à pergunta inicial, por que por vezes mesmo pessoas boas e inteligentes insistem em se descuidar, atentando contra sua integridade e, em tempos de pandemia, contra seus semelhantes?
Bom, aí só uma boa psicoterapia para tentar responder.