Foi com a frase “uma coisa muito doida” que a estudante Nathalie Nardes Godois resumiu tudo o que aconteceu nos últimos três meses. Troca de escola, distanciamento social e aniversário de 15 anos são só alguns dos ingredientes da história vivida pela menina. Assim como ela, muitos outros adolescentes estão nessa situação: sem frequentar a escola e com a circulação limitada ao espaço das suas casas.
Desafiador para todas as faixas etárias, a pandemia de coronavírus tornou-se um tempero indigesto para os adolescentes. O mundo parou bem na hora em que eles experienciam mudanças significativas do ponto de vista biológico e também emocional. É na adolescência que ocorrem a descoberta dos mundos externo e interno, como explica Marisa Marantes Sanchez, diretora do Instituto de Terapia Cognitiva em Psicologia da Saúde (ITEPSA):
— É o período do “Quem sou eu? O que eu quero ser?”. É o momento de poderem se definir para a vida, o que, para eles, é sofrido.
Soma-se a essa receita outros aspectos importantes, como a sexualidade, impulsionada pela explosão de hormônios, e o desenvolvimento de certas habilidades.
— A fase é de experimentação, quando eles entram em contato com amigos, vivem experiências amorosas. Tem a questão do convívio de grupo. Também testam o conceito do “certo e errado” e do “pode e não pode” — acrescenta Luciana Ferreira, psicanalista, neurocientista e diretora do Institut Avuí.
Charlotte Beatriz Spode, professora do curso de Psicologia da Feevale, comenta:
— O que marca esse período são as profundas transformações. São muitas mudanças não controláveis e é nessa fase que o adolescente faz a reestruturação da personalidade. O grupo entra com papel importantíssimo, pois essa relação com os pares, os iguais, fortalece a construção dessa identidade. Eles se experimentam em um grupo que não é da família.
Eis que, na contramão, veio a pandemia, afastando amigos, parentes e até os romances. Para Nathalie, tudo começou lá em março, quando ela ingressou em um novo colégio. Mal teve a chance de conhecer os novos colegas quando houve a suspensão das aulas, no dia 13.
— Tive um dia só e começou a quarentena — conta.
Poucos dias depois, a mãe, a analista de responsabilidade social Graziela Nardes, foi para casa cumprir as jornadas em teletrabalho. A partir daí, entraram em regime de distanciamento rigoroso. Como o pai da menina, Márcio, é profissional de serviço essencial, as idas à rua ficavam a cargo dele. Graziela relembra:
— A gente não saiu, a não ser para colocar o lixo para fora.
No começo, a adaptação foi difícil. A mãe precisava se desdobrar entre o trabalho e os serviços domésticos, enquanto Nathalie trocava o dia pela noite. Diz a mãe:
— Não foi fácil. Foram muito altos e baixos. Vários momentos de tristeza. O que nos ajudou foi buscar uma terapia.
A partir do acompanhamento com um profissional, a família elaborou um planejamento para criar uma rotina para a menina. Foram criados regras e horários para cumprir cada atividade, como fazer as tarefas da escola, estudar música e dedicar-se aos tutoriais de maquiagem (Nathalie é aficionada).
Escola à distância continua existindo, só que no espaço virtual. Se está no computador com diversas janelas abertas, respondendo mensagens ou fazendo outras coisas, pode trazer impacto negativo nas funções executivas, com a atenção, o planejamento e a concentração. Também precisa haver esse rito de passagem do “acabei aqui, vou para lá”, para dissociar cada atividade.
LUCIANA FERREIRA
Psicanalista
Conforme a psicanalista Luciana, o ponto de partida para o esquema caseiro dar certo é a organização familiar. Ela recomenda que as famílias combinem com os adolescentes certos “ritos” para criar uma rotina: acordar, se alimentar, se arrumar e organizar o ambiente de estudo antes do começo das aulas online.
— Escola a distância continua existindo, só que no espaço virtual. É preciso cumprir uma jornada escolar porque o cérebro se organiza assim. Se está no computador com diversas janelas abertas, respondendo mensagens ou fazendo outras coisas, pode trazer impacto negativo nas funções executivas, com a atenção, o planejamento e a concentração — alerta Luciana, acrescentando que a questão espacial também é relevante nesse momento: — Precisa haver esse rito de passagem do “acabei aqui, vou para lá”, para dissociar cada atividade.
Carreata de aniversário
Ao planejar o novo dia a dia de Nathalie, Graziela também deixou espaços para que a menina mantivesse contato com as amigas por videochamadas.
— O pior é não poder ver ninguém — diz Nathalie. — Acho que a primeira coisa a fazer quando acabar a pandemia será ver minhas amigas e minha escola antiga.
Ainda que não substitua a necessidade de proximidade e contato físico, a tecnologia é bem-vinda como ferramenta. Por aplicativos, os adolescentes podem fazer reuniões online e jogos que gostam, como “Verdade ou Consequência” – deixando as consequências para depois da pandemia, sugere a psicóloga Marisa. Outra saída é, com segurança – de máscaras e respeitando a distância entre as pessoas –, fazer o que aconteceu no aniversário de Nathalie.
Ela celebrou 15 anos de uma maneira diferente do que fora planejado. Mesmo que não tivesse organizado uma festança, a família pretendia reunir um grupo de pessoas mais próximas. Afinal, em 2019, a garota havia completado 14 anos internada em um hospital.
Para na data não passar em branco pela segunda vez seguida, a família contratou uma fotógrafa e marcou uma sessão de fotos em uma floricultura da Zona Sul e pela orla do Guaíba. Depois das fotos, o trio partiu para a casa de uma das avós da menina, onde apenas os parentes mais próximos aguardavam para uma celebração. A surpresa ficou por conta de uma carreata, organizada pelas amigas para homenagear Nathalie.
— Ia ser no máximo um bolinho, mas teve festa. Fiquei chocada, até chorei. Estava tirando foto com minhas avós e comecei a ouvir buzinas. Pensei: “Tem manifestação pelo meu aniversário” — ri.
Por conta do cancelamento da festa, os pais de Nathalie decidiram oferecer para ela de presente alguns cursos de estética. Com o certificado em mãos, a garota já planeja oferecer os serviços nas redondezas da sua residência:
— Mas com todo o cuidado, pois no meu condomínio tem muita gente idosa.
Converse, avalie e dê exemplo
As especialistas ouvidas por GaúchaZH têm recebido, com frequência, relatos de conflitos gerados pela convivência, evidenciando o distanciamento entre as famílias.
— Parece que alguns pais começaram a conhecer os filhos. Antes, tinham a agenda cheia e faziam os adolescentes terem também. Agora, deparam com a realidade, o que é motivo de conflito interno nas casas. Isso para os adolescentes está sendo difícil — observa Marisa Marantes Sanchez.
Luciana Ferreira acrescenta:
— Muito provavelmente, estão aparecendo coisas que estavam veladas. Os pais estavam trabalhando e o adolescente organizava seu tempo nas redes sociais, em frente ao videogame, comendo a toda hora. Agora, isso foi desvelado. A família deve se perguntar: isso acontecia antes ou é de agora?
O adolescente está muito tempo ansioso? Já é incapacitante? Ou está muito tempo isolado, dormindo em excesso? Isso é preocupante e requer atendimento. Crises súbitas de depressão, de medos ou de ansiedade também requerem alerta.
MARISA MARANTES SANCHEZ
Psicóloga
Pais também devem ficar atentos a sinais de ansiedade ou depressão, quadros que podem ter o distanciamento como gatilho, e ter discernimento para avaliar se determinados comportamentos fazem parte da oscilação de humor natural da faixa etária ou indicam transtornos. Marisa contribui:
— Está muito tempo ansioso? Já é incapacitante? Ou está muito tempo isolado, dormindo em excesso? Isso é preocupante e requer atendimento. Crises súbitas de depressão, de medos ou de ansiedade também requerem alerta.
Nesse momento, diz a psicóloga, os pais devem demonstrar que estão atentos a essas mudanças no comportamento:
— O simples fato de mostrar que você viu isso já passa a ideia de que ele não está sozinho. Estabiliza a emoção, o humor e traz a sensação de segurança.
Com o aumento do uso de internet e das redes sociais, também cresce em importância os cuidados com os conteúdos acessados e enviados. É um dever conversar sobre os riscos da troca de imagens sensuais, por exemplo.
— Mas não é aquela coisa de “vamos sentar para conversar”. Isso não funciona. O que funciona é a conversa natural. Quando se pede ajuda para pegar as sacolas do supermercado no carro, puxar o assunto no trajeto. Entrar no assunto de um jeito leve — diz Marisa.
Luciana recomenda que os pais busquem exemplo de acontecimentos reais para ilustrar os riscos.
Também é imperativo que os pais expliquem para os filhos a importância de cumprir o isolamento, o que, invariavelmente, pode prejudicar as paqueras. Porém, mais do que conversar, é preciso dar o exemplo, diz a professora Charlotte Beatriz Spode:
— Se meus pais fazem janta em casa com os amigos, por que eu não posso ver meu namorado? Lidar é conversar e dar o exemplo.
Sete conselhos para os pais
- Atente para mudanças de comportamento: o filho está mais agressivo? Isso pode indicar que ele está sofrendo cyberbullying.
- Jamais invada a privacidade do adolescente. Não mexa em computadores ou celulares sem a autorização prévia.
- Ajude a organizar a casa para delimitar o espaço do estudo e o do lazer.
- Incentive a prática de exercícios físicos com segurança.
- Monitore o sono do adolescente.
- Inclua o adolescente nas tarefas domésticas.
- Atente para a alimentação do adolescente.
Isolamento para proteger
Lorenzo de Oliveira Tonietto, 16 anos, pediu para os pais que a família se refugiasse no endereço praiano assim que as aulas foram suspensas, em março. Como entendeu a importância e a necessidade do distanciamento, preferiu se afastar dos amigos para não precisar dizer “não” caso alguém quisesse o visitar. Agora, os contatos por mensagem são diários, mas os encontros virtuais são reservados para as sextas ou finais de semana.
— O que ele mais reclama é a parte de ficar sem o basquete. No esporte, ele tem amigos e o treinador é muito gente fina. Eles se falam por WhatsApp, videochamadas, jogam online. Fazem tudo online. Às vezes, olho para o Lorenzo e ele está com um sorriso daqueles. Pode saber que “está” com a gurizada — comenta a mãe, Denise Tonietto.
Aluno dedicado do segundo ano do Ensino Médio, logo nas primeiras semanas de aulas virtuais o aspirante à faculdade de Medicina sentiu falta de conteúdos mais puxados de química, física e matemática. Solicitou aos pais, então, um professor particular para ter lições online, até que a escola se adequasse ao ensino a distância.
— Agora, ele disse que gostaria de contratar um professor de biologia para tirar dúvidas — relata a mãe.
Com uma rotina bem organizada, Lorenzo consegue algumas brechas para se dedicar a um de seus novos passatempos: a cozinha. Na internet, pesquisa receitas e as coloca em prática para a família. Dia desses, fez uma sopa francesa de cebola, que ficou “perfeita”, segundo a mãe.
Por telefone, ele contou do que mais tem sentido falta nesse período de reclusão: do contato com o afilhado, Davi, cinco anos, e com a tia-avó, Cecília, 86.
— Sabe como é família italiana: carinho, toque, abraço, beijo, pega comida. Como ela é idosa, visitamos mas ficamos no jardim, de longe, pois precisamos dar apoio — lamenta.
Em contrapartida, o guri comemora a oportunidade de conviver mais com os pais – e o cão Dino:
— Sempre fomos muito unidos, mas com a rotina não tínhamos tempo de ficar juntos. Agora, estamos conseguindo aproveitar. Ficamos conversando, relembrando histórias dos avós, dos bisavós, da família. Estamos adorando o convívio mais assíduo.
Estimular conversas e atividades em família são excelentes pedidas para promover relações mais afetivas, diz Luciana Ferreira. A psicanalista observa que poucas famílias estão acostumadas a ter momentos de lazer juntas, portanto, essa seria a oportunidade para melhorar esses aspectos e estreitar laços.
— Elas buscam um mediador externo: “Vou no show, no teatro, vou na praça”. Mas, e agora, como faz? — exemplifica. — Jogos, carteado em família e karaokê são bacanas. É preciso cuidar para não ser só a ideia do filme na Netflix, em que não se conversa. Vale incentivar a culinária, ensinar para o adolescente pequenos consertos em casa.