Conhecido como o carrasco mais sádico da ditadura militar argentina, responsável por sequestrar bebês e torturar militantes até a morte, Julio Hector Simón foi o primeiro agente repressivo condenado após o término das leis de anistia do país vizinho. Antes disso, o policial tentou escapar da Justiça tendo uma vida discreta no Brasil, no município de Uruguaiana. Porém, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, envolveu-se com um dos mais populares médiuns do país, em um esquema milionário que se tornou um escândalo internacional.
Com o apelido de Turco Julián, Simón tornou-se uma pessoa pública na Argentina em 1984, quando ex-militantes e familiares de desaparecidos começaram a denunciar as arbitrariedades das forças de repressão. O país recém havia saído da ditadura iniciada em 1976, e a Justiça se organizava para devassar os porões do regime e punir culpados, em uma ofensiva que, nos jornais de época, era comparada ao Tribunal de Nuremberg.
Turco Julián foi um dos primeiros torturadores a ganhar relevo nos depoimentos. O sargento da Polícia Federal Argentina atuou em pelo menos três grandes centros clandestinos de detenção de Buenos Aires, conhecidos como El Atlético, Olimpo e Banco. Frequentemente, permanecia nesses ambientes por cerca de 12 horas por dia. Mas não era apenas seu devotamento ao serviço que chamava atenção aos que ali permaneceram confinados. O torturador costumava usar uma corrente da qual pendia uma suástica, molestar presos ao som de marchas nazistas e demonstrava interesse especial em martirizar deficientes físicos.
Enquanto as denúncias contra Julián escandalizavam a sociedade buenairense, o argentino estava escondido em Uruguaiana. O agente não foi parar por acaso na cidade gaúcha. Natural da capital argentina, ele ingressou na Polícia Federal aos 27 anos, em 1967, após ser voluntário na Marinha. Dez anos depois, passou a compor o Batalhão de Inteligência 601, grupo paramilitar considerado o cérebro do terrorismo de Estado na Argentina, responsável por práticas de espionagem, sequestro, tortura e desaparecimento. O batalhão designava seus membros, civis e militares, a missões em diferentes postos, realocando Julián em Paso de Los Libres no início dos 1980, após alguns anos de destacada atuação em Buenos Aires.
A presença de um agente experiente e impiedoso na cidade fronteiriça com Uruguaiana é um indício de como o os militares que governavam o país queriam controlar com rigor aquela região. Não era para menos: somente no ano de 1980, cerca de 3,6 milhões de argentinos ingressaram no Brasil pela ponte internacional que une Libres e Uruguaiana.
O número elevado tem relação com o câmbio favorável aos hermanos, que cruzavam a fronteira para comprar eletrodomésticos, principalmente televisores – segundo jornais da época, cerca de 400 TVs eram vendidas nas lojas locais em dias úteis, e 800, aos sábados. O trânsito intenso tornava inviável a revista de todos os viajantes sem causar filas quilométricas, o que fazia com que muitos fossem liberados sem apresentar qualquer documento.
A fiscalização flexível em dias de movimento possibilitava que procurados pelo regime se evadissem da Argentina por ali. Julián era um dos responsáveis por evitar esse trânsito.
– Turco Julián é sempre descrito nos relatos como alguém com grande poder na aduana. Andava tranquilamente por todas as salas do prédio e era o único que entrava sem bater a qualquer momento na sala do chefe do destacamento. Também é conhecido o fato de que tinha uma sala para si, onde operava interrogatórios sob coerção – comenta a historiadora Sabrina Steinke.
Com doutorado sobre a repressão política na fronteira entre Paso de Los Libres e Uruguaiana, Sabrina aponta que, além da sala de interrogatórios na aduana, Julián mantinha mais um local onde operava torturas em Libres. Tratava-se da prisão clandestina La Paloca, estância cedida ao exército argentino entre 1976 e 1983. Ele operava em conjunto com um “marcador”, como eram conhecidos os militantes que, depois de capturados por agentes da repressão, passaram a colaborar com seus algozes. Havia sempre um marcador a serviço de Julián postado discretamente no escritório de migração e disposto a denunciar ex-colegas de militância, que ficariam retidos por força do Turco.
– Com um marcador, um agente da repressão e uma prisão clandestina, ficou estabelecida em Libres uma estrutura de sequestro, prisão e desaparecimento. Era um esquema típico da Operação Condor – avalia Sabrina, citando aliança conjunta entre Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, criada com o objetivo de coordenar a repressão a opositores dessas ditaduras.
Estima-se que mais de cem prisioneiros tenham passado por La Polaca. A prisão funcionava como um local de “seleção”, ou seja, um centro de tortura e prisão temporária, com objetivo de encaminhar “subversivos” para outros campos clandestinos.
"Garrincha do bisturi"
Com o fim da ditadura militar argentina, em 1983, e as primeiras denúncias de torturadores, no ano seguinte, Julián precisou sair da Argentina, sob o risco de ser condenado por crimes contra a humanidade. Então foi o momento de atravessar a ponte rumo a Uruguaiana, onde tinha amigos e até uma namorada – dona de um disputado cabaré. Segundo relatos, o agente tinha liberdade para ir e voltar de uma cidade a outra sem precisar realizar trâmites de migração, o que o ajudou a fortalecer laços com pessoas do lado brasileiro.
Naquela época, consolidava-se em Uruguaiana o centro místico de Carlos Eustáquio Barbosa, curandeiro conhecido como Garrincha do Bisturi, ou simplesmente Garrincha. Filho de carvoeiros do interior de Minas Gerais, o médium levantou uma fortuna baseada na fé de brasileiros e argentinos. Era procurado por celebridades como Ângela Maria, que deixou sob responsabilidade do curandeiro suas cordas vocais para uma operação, em 1979, quando era conhecida como a cantora mais popular do Brasil.
Garrincha operou a garganta de Ângela Maria sem qualquer incisão e, segundo ela, foi responsável pela cura de “uma perigosa doença na tireoide”.
– Nunca mais fico rouca depois de um show – afirmou satisfeita para a revista Manchete após o procedimento.
Apesar de ter ficado conhecido pelo uso do bisturi, Garrincha jamais realizava incisões em seus pacientes. O instrumento, bem como o mercúrio que espalhava em suas mãos e os esparadrapos que aplicava de modo aleatório nos visitantes, eram artifícios usados apenas para facilitar o transe em que entrava para curar os doentes a partir de passes espirituais.
Mas, embora a cura fosse espiritual, o pagamento era realizado de forma mundana, por meio de polpudos maços de dinheiro vivo. Garrincha viajava para atender a pacientes em diferentes cidades da América Latina, hospedando-se sempre em hotéis de luxo. Uma de suas residências consistia em uma mansão de 20 cômodos no Recreio dos Bandeirantes, área nobre da zona oeste do Rio de Janeiro.
Em entrevista a Zero Hora, publicada em março de 1984 em duas páginas e com chamada de capa, Garrincha explicou por que escolheu Uruguaiana como destino. Segundo ele, o centro espírita em que atendia, em São Paulo, começou a receber muitos argentinos, então foi mais conveniente começar a dar as consultas próximo à fronteira.
– Ficava muita mão-de-obra aquele pessoal todo se deslocar até São Paulo – afirmou ele na ocasião.
Todos os dias, centenas de ônibus chegavam da Argentina transportando até 2 mil doentes e familiares que aguardavam um toque da “mão santa” do brasileiro. Um complexo esquema de organização e segurança foi montado em torno do ídolo.
Uma rede de assessores controlava o acesso a Garrincha, que atendia exclusivamente a argentinos – esses chegavam a Uruguaiana por meio de um pacote comprado com antecedência e eram orientados a não dar entrevistas nem comentar com desconhecidos o que viam no centro espírita.
– O clima na cidade não devia ser muito diferente do clima de Aparecida, em Goiás, quando lá atuava João de Deus. Houve uma agitação muito grande, inclusive muita gente de outras cidades veio para cá e acabou trabalhando como camelô. Também lembro de trabalhadores como gesseiros ou técnicos de raio X que abandonaram o serviço para abrir bancas de camelô perto do espaço onde atuava o Garrincha, porque estava sendo mais vantajoso na época – recorda o médico Lourival Araujo Gonçalves, então presidente da Sociedade de Medicina de Uruguaiana.
Um dos integrantes mais ativos do séquito de Garrincha era um homem de meia-idade, com alguns cabelos grisalhos e um bigode que começava a amarelar por conta dos maços de Belmont que fumava praticamente sem interrupção. Tinha sempre o corpo coberto por uma gabardine italiana branca, sob a qual costumava-se dizer que escondia uma submetralhadora. Era Turco Julián, ou melhor, Turco Júlio, como o argentino ficou conhecido do lado de cá da fronteira.
Turco Júlio foi por alguns meses o braço direito de Garrincha, ajudando o médium a manter seu poder no difícil jogo de forças com as autoridades de Uruguaiana. Por um lado, o médium tinha apoio declarado da prefeitura e de centenas de camelôs que se beneficiavam do movimento em torno de seu centro espiritual. Por outro, era contestado pela Sociedade de Medicina, por vereadores e pelo Ministério Público.
A proteção de Turco Júlio, no entanto, não pôde durar muito tempo. Na verdade, o personagem logo se tornou pivô de um escândalo que deixaria uma mácula irremediável na imagem pública de Garrincha. Em julho de 1984, o médium havia alcançado fama nacional, sendo tema de uma reportagem no programa Fantástico, da Globo. Mas um grande abalo viria meses depois, motivado por um crime que marcou a história da cidade.
O homem da gabardine
Em janeiro de 1985, o vereador Roberval Beheregaray Azevedo foi assassinado em uma viagem de férias a Foz do Iguaçu. Depois de um jantar com a família, foi abordado por dois criminosos ao entrar em seu carro, levando dois tiros. A polícia paranaense trabalhava com a hipótese de vingança ou latrocínio, mas o crime tomou nova dimensão quando o ativista Jair Krischke, referência em direitos humanos no Rio Grande do Sul, acusou publicamente Turco Julián de ser responsável pelo assassinato.
Krischke não tinha provas de que Julián era de fato o criminoso, mas sabia que Beheregaray, médico de formação, foi um dos primeiros uruguaianenses a tentar banir Garrincha da cidade por exercício ilegal da medicina. Pouco antes, Krischke havia sido informado de que Julio Hector Simón estava trabalhando para Garrincha, em Uruguaiana. Segundo o ativista, o paradeiro de Julián lhe foi revelado por um agente da ditadura argentina que o procurou em Porto Alegre. O homem provavelmente usou a informação como isca para despertar o interesse do brasileiro para uma possível troca de dados sigilosos, mas o brasileiro desconversou – era prática usual dos agentes de inteligência oferecer dados exclusivos que poderiam interessar a esquerda em troca da indicação do paradeiro de um foragido, do nome de algum cúmplice ou algo de similar importância.
– Eu fiquei sabendo do paradeiro do Turco, mas não havia como comprová-lo. Então, li a respeito do crime do vereador. Liguei naturalmente uma coisa a outra. Tudo que eu queria era ter uma foto do Turco Julián, para que eu pudesse encaminhar às vítimas de tortura e confirmar que era ele mesmo que estava em Uruguaiana. Dei um tiro na Lua. E acertei – compara Krischke.
Turco Julián procurou então O Jornal de Uruguaiana para dar uma entrevista negando participação no crime. Em princípio, não queria ser fotografado, mas o veículo não aceitou veicular a entrevista sem imagem. Nos registros fotográficos, ele aparece de lado, pouco à vontade (reveja na imagem apresentada no alto desta reportagem).
– Turco Julián fez questão de procurar a imprensa para negar as acusações. Estava muito incomodado com o que estavam falando dele na cidade. Então nos deu uma longa entrevista, na qual admitiu ter trabalhado com Garrincha, mas afirmou que nem conhecia o vereador Beheregaray – conta o jornalista Francisco Alves, um dos repórteres que realizaram a entrevista com o argentino.
Mais tarde, a participação de Julián no assassinato de Azevedo foi descartada pelos investigadores, mas seu rosto já havia sido estampado em jornais de grande circulação da Argentina e do Brasil. A população de Paso de Los Libres e de Uruguaiana se surpreendeu com as revelações sobre o homem da gabardine branca.
Já Garrincha tentou desvincular seu nome ao de Julián. Em entrevista ao Jornal do Brasil, afirmou que o argentino jamais havia trabalhado para ele. Depois de polêmica, o curandeiro passou a dar seus passes em Buenos Aires e no Rio de Janeiro. Atualmente, seu paradeiro é desconhecido.
Com Julián ganhando espaço na imprensa, as autoridades de Paso de Los Libre e de Uruguaiana já não podiam mais ignorar – ou fingir ignorar – seu passado. O homem, no entanto, desapareceu repentinamente da região.
Krischke chegou a acompanhar jornalistas gaúchos e do eixo Rio-São Paulo em uma viagem a Uruguaiana, mas já não havia mais vestígios de Julián na cidade. Em Libres, deixou apenas uma péssima reputação no Hueco, espaço de feirantes da cidade, onde mantinha uma banca que vendia desde extintores usados a frutas e verduras. Segundo os colegas da feira, era de difícil convivência e deixou inúmeras dívidas.
– Quando estávamos no hotel, recebi uma ligação de Turco Julián. Ele se ofereceu para dar entrevista em troca de dinheiro. Não aceitamos – lembra Krischke.
Interrogando o torturador
Turco Julián conseguiu permanecer oculto da Justiça por mais algum tempo, e logo se beneficiou de uma mudança da legislação argentina, as chamadas “leis do perdão”. Aprovadas em 1986 e 1987, anistiavam crimes cometidos durante o regime militar e livravam dos processos militares e policiais abaixo do cargo de coronel, considerando que apenas cumpriam ordens, a chamada “obediência devida”. Com isso, ele voltou a circular com tranquilidade pela Argentina.
A mesma oferta que fez a Krischke, de pedir dinheiro em troca de informações, foi repetida algumas vezes por Julián. Ele se tornou um dos poucos agentes da repressão a falar publicamente sobre sua atuação. Em 1995, causou comoção ao admitir em uma entrevista em um programa de TV que usou tortura para “acelerar depoimentos” e que “faria tudo outra vez”.
Julio Hector Simón só foi para a cadeia em 2006, sendo o primeiro agente do regime militar condenado por crimes contra a humanidade depois que a Suprema Corte de Justiça declarou a inconstitucionalidade das “leis do perdão”, em 2005.
Ele foi réu em um processo que o apontou como responsável pelo sequestro e tortura de Poblete e Gertrudis Hlaczik, além da ocultação da filha do casal, Claudia. Quando foi separada de seus pais, em 1978, Claudia era um bebê de oito meses. Ela foi apropriada por um tenente-coronel e sua esposa, sendo registrada como filha biológica. Só em 2000 descobriu suas origens, depois que um juiz federal requisitou a ela que fizesse um teste de DNA, pois acreditava que ela seria filha de desaparecidos políticos.
Testemunhas do processo narravam que Julián era particularmente sádico com Poblete, que era chileno e não tinha as duas pernas, vítima de um acidente de trem. Em Buenos Aires, Poblete militava politicamente na Frente de Lisiados Peronistas, uma instituição progressista formada por deficientes físicos. Depois do sequestro, foi levado para o centro de detenção clandestina Olimpo. Relatos apontam que Julián se divertia obrigando os presos a montar uma pirâmide humana, na qual Poblete, chamado pelo torturador de El Cortito (“O Curtinho”), era posto no topo.
Depois de ser condenado a 25 anos de prisão, em 2006, Julián sofreu uma condenação perpétua, em 2010. No novo julgamento, foi condenado por homicídio de cinco vítimas, qualificado por meio cruel e pela colaboração premeditada de duas ou mais pessoas; além de privação ilegítima de liberdade e tortura dos cinco assassinados e de mais 163 pessoas.
Atualmente, Julián cumpre pena no Complexo Penitenciário Federal 2 de Marcos Paz, em Buenos Aires. Sua última entrevista foi realizada em 2009, quando o jornalista uruguaio Gerardo Bruzzessi o reencontrou. Segundo Bruzzessi, Julián o torturou em 1977, na prisão clandestina Banco. O repórter tinha como objetivo principal de sua visita descobrir os nomes dos dois outros torturadores que também o martirizaram no local.
O encontro se tornou o documentário Interrogating the Torturer, produção inglesa com exibições em festivais de cinema e canais de televisão. No filme, é possível observar Julián à vontade na frente das câmeras, recolhendo sem inibição cigarros da carteira do entrevistador para levar à cela. Ele até elogia um charuto de Bruzzessi, dando a entender que aceitaria outro em uma próxima visita.
Apesar de começar a entrevista negando a participação no Banco, ao final o torturador afirma que poderia repassar os nomes dos ex-colegas em um próximo encontro, mas pergunta:
– O que eu ganho com isso?
Ele pede para ser transferido de presídio em troca da informação. Vinte e cinco anos depois de telefonar para Krischke pedindo dinheiro para falar à reportagem, Julián agiu da mesma forma com Bruzzessi, negociando memórias em troca de uma transferência. Já beirando os 70 anos de idade, não se solidarizou com suas vítimas e se negou a colaborar para o avanço da Justiça. Mais uma vez, não teve o pedido atendido.