Um príncipe negro viveu em Porto Alegre, no início do século 20. Vindo da África, com uma corte de 48 pessoas, estabeleceu-se na Cidade Baixa e se tornou uma referência cultural e religiosa não apenas para a comunidade negra, mas também para líderes políticos locais. Mais de 120 anos após a chegada de Custódio Joaquim Almeida ao Rio Grande do Sul, a vida de um dos mais excêntricos e influentes personagens de seu tempo no Estado ainda é pouco conhecida além das religiões de matriz africana. Muitas lacunas ainda precisam ser estudadas para compreender a trajetória e o legado dessa figura histórica.
Príncipe Custódio, como ficou conhecido, chegou ao sul do Brasil em 1899. Após passar por Rio Grande, Pelotas e Bagé, instalou-se em Porto Alegre em 1901, onde permaneceu até a morte, em maio de 1935, aos 104 anos. Na Capital, viveu uma vida cercada de luxo – morava em uma casa espaçosa, frequentada pela elite gaúcha, vestia-se de modo refinado, com relógios de ouro e pedras preciosas, e tinha cavalos no prestigiado Prado Independência, embrião do atual Jockey Club. Cavalos eram animais de adoração de Custódio, que tinha uma coudelaria nos fundos de casa e costumava sair em um landau puxado por dois corcéis – em dias de sol, brancos; nos de chuva, pretos.
Os hábitos e trajes singulares de Custódio dão uma ideia da dimensão de sua fortuna. Mas o maior legado do africano para a cidade não pode ser mensurado em termos materiais. O príncipe ajudou a consolidar as religiões de matriz africana no Estado, trazendo cultos e assentando orixás, mas também introduzindo membros da elite política e econômica local aos ritos do batuque, tornando assim as autoridades mais simpáticas e tolerantes à religião, até então perseguida.
A vida de Custódio na África, bem como as circunstâncias que determinaram sua vinda à América, ainda é cercada de mistérios. À época de sua morte, alguns jornais publicaram obituários que o vinculavam à região de São João Batista de Ajudá. E indicavam tratar-se do herdeiro de uma linhagem nobre, teria chegado ao Brasil em 1862, percorrendo o norte do país por 40 anos antes de se fixar no Rio Grande do Sul.
Por conta disso, pesquisadores da religião de matriz africana do Sul defendem a hipótese de que Custódio era descendente da aristocracia religiosa do antigo Reino de Daomé e que deixou a África para levar seu culto a outros países, autointitulando-se príncipe.
Já Maria Helena Nunes, antropóloga que pesquisa a vida de Custódio há mais de 30 anos, tem convicção de que ele era um descendente direto do trono do Reino de Benin. Autora da dissertação O Príncipe Custódio e a Religião Afro-Gaúcha, defendida em 1999, Maria Helena realizou seu trabalho a partir de relatos orais de descendentes, cruzando os testemunhos com pesquisa bibliográfica histórica e documentação recolhida no Brasil e na Nigéria. Para ela, na África Custódio se chamava Osuanlele Okizi Erupê e era filho do obá (equivalente a rei) Ovonramwen Nogbaisi. Osuanlele era um dos organizadores da resistência dos nativos à tentativa de dominação do Império Britânico. Em 1897, os estrangeiros realizaram um massacre na região, tomaram o poder e o exilaram em Calabar.
Segundo relatos e documentos recolhidos por Maria Helena, um acordo foi firmado para que a ofensiva de violência fosse estancada: Osuanlele deveria abandonar a região, recebendo uma pensão mensal do governo britânico para se manter longe. De fato, o Império se deu conta de que não conseguiria manter o poder sem o apoio do obá e de seus familiares, tanto é que a monarquia local foi restabelecida anos mais tarde, em 1914, com apoio das forças colonialistas, dessa vez com o obá Eweka II, irmão de Osuanlele.
– Osuanlele foi educado como um príncipe herdeiro de um trono. Foi estudar na Europa, permaneceu muito tempo em Londres, mas também passou por França e Alemanha – assegura Maria Helena.
Depois do acordo com os britânicos, Osuanlele teria se exilado no Porto de Ajudá. Foi por isso que ficou conhecido como Príncipe de Ajudá. De lá, teria sido guiado de modo sobrenatural para o Brasil: foi a partir do jogo de búzios que escolheu o destino mais seguro para recomeçar a vida, contando já quase 70 anos de idade.
Faltam documentos que deixem claro o vínculo entre Osuanlele e Custódio, apesar dos relatos dos descendentes do príncipe e de outros entrevistados por Maria Helena serem coerentes entre si sobre o tema. De qualquer maneira, jornais de época também reforçam a ideia de que Custódio falava inglês e francês com fluência, e um dos obituários cita o fato de que ele buscava mensalmente no consulado da Inglaterra uma subvenção paga pelo governo estrangeiro.
A boa condição financeira e a cultura refinada de Custódio, aliada a sua cor de pele escura e alta estatura, fez com que ele se tornasse uma figura exótica em Porto Alegre. Os indícios apontam que o africano foi logo bem aceito pela alta sociedade local. Autoridades circulavam por sua casa com frequência – são vários os relatos recolhidos por Maria Helena que citam Júlio de Castilhos (1860–1903), Borges de Medeiros (1863–1961) e José Gomes Pinheiro Machado (1851–1915) como visitas recorrentes.
– As elites não reparavam na cor de Custódio. É óbvio que existia preconceito à época. Mas um negro com dinheiro era visto como um branco – avalia Maria Helena.
Não era apenas para ouvir conselhos com base na rica bagagem cultural e experiência de vida de Custódio que a elite porto-alegrense o procurava. Custódio era também tido como uma autoridade espiritual, um guia com grandes poderes de prognosticar o futuro.
– Meu avó às vezes falava do nada: “Pode abrir a porta que Fulano está chegando aí, cheio de problemas”. E não é que, minutos depois, aparecia o Fulano, sem ter avisado ninguém? Cresci ouvindo esse tipo de história – conta Serafina de Souza Almeida, neta de Custódio.
A religião movia os passos do príncipe. Segundo os relatos, foi por meio da fé nos búzios que o africano chegou ao sul do Brasil – búzios, aliás, feitos de pedras preciosas.
A família, no entanto, argumenta que o antepassado não fazia das práticas ritualísticas um meio de vida, como o fazem hoje muitos babalorixás. Ele apenas jogava para as pessoas mais próximas.
– A casa dele não ficava aberta para qualquer um consultar. Eram apenas os amigos de convívio mais íntimo que o visitavam ocasionalmente para pedir aconselhamento. Mas, em datas comemorativas, fazia grandes festas abertas para a comunidade – afirma Serafina.
Príncipe Custódio também deixou marcos importantes para a consolidação da religião de matriz africana em Porto Alegre. Em diferentes pontos do Centro Histórico, deixou assentamentos de orixás, ou seja, pontos que representariam a ligação da realidade com forças sobrenaturais. O mais popular deles é conhecido como Bará do Mercado Público, que atualmente está representado por uma escultura no piso central do prédio histórico, frequentemente ocupado por pais e mães-de-santo – a localização da escultura é simbólica, pois o local exato do assentamento foi mantido em segredo por Custódio.
Além do Mercado Público, ficaram conhecidos assentamentos no Palácio Piratini, na Igreja das Dores e no antigo Patíbulo da Rua dos Andradas.
– O Mercado simboliza a riqueza, a fartura. Já o Piratini e a Igreja das Dores são representações do poder político e religioso. Era uma maneira de Custódio assegurar a estabilidade para o governo de Borges de Medeiros – explica Maria Helena.
O Patíbulo, área da Rua dos Andradas que ficava nas imediações entre a Praça Brigadeiro Sampaio e o Comando da 3ª Região Militar, teria sido o local do enforcamento do primeiro negro em Porto Alegre – anos mais tarde, ficou provado que o homem era inocente.
Os relatos também apontam que o legado de Custódio para a religião afro-gaúcha vai além de Porto Alegre. A corte com 48 pessoas que acompanhava o príncipe era chamada de conselho de chefes e acabou por se dissolver depois da morte de seu líder. Muitos desses chefes se espelharam pelo interior, levando consigo às cidades de várias regiões gaúchas a cultura dos orixás.
Custódio Joaquim Almeida Morreu em 28 de maio de 1835, aos 104 anos. Na certidão de óbito, uremia é apontada como causa da morte. Logo após o enterro, a família sofreu mais um revés: uma grande quantidade de joias, que representava boa parte de seu patrimônio, foi roubada da casa em que Custódio morou nos seus últimos dias em Porto Alegre, na Rua Lopo Gonçalves.
Custódio deixou cinco filhos. Domingos, Araci, Dionísio, Pulqueria e Joaquina. Eles partilharam o restante dos bens deixados, e puderam construir suas vidas com base em uma herança rara para os negros da época – excelente educação formal e boas relações em diferentes classes da sociedade. Filha de Domingos, Serafina é professora, mas conta que teve sua ancestralidade questionada ao longo de seu crescimento:
– Um dia antes de eu começar a frequentar o colégio, meu pai me abraçou e me disse que eu precisava me comportar de modo exemplar porque era uma princesa. Quando conheci minhas primeiras colegas de aula, disse que tinha sangue de princesa. Riram muito de mim. Como assim, eu teria sangue azul? Me traumatizei com isso e nunca mais quis contar para ninguém.
Serafina é mãe de Marcus Vínicus, César Augustus e Caio Juliano. Quando Marcus, o mais velho, começou a frequentar o colégio, em uma instituição particular frequentada pela elite local, ela reviveu a própria história: foi chamada pela direção da escola para explicar porque o filho dizia aos colegas que era um príncipe.
Hoje, Marcus é economista. O bisneto de Custódio assinala que seu antepassado também ajudou muitas famílias negras a obter condições de vida mais dignas no início do século 20.
– Pela relação do meu bisavó com as elites locais, ele conseguiu abrir espaço para os negros entrarem no setor público. Em termos atuais, é como dar a alguém a possibilidade ascender a uma classe média baixa. Hoje pode parecer pouco, mas é uma chance de sair da extrema pobreza, ter um salário fixo e acessar um novo mundo de informações – diz Marcus.
Para o bisneto do príncipe, além de trazer diversidade para o funcionalismo público, a vida de seu bisavô inspirou muitos negros a vencer as desigualdades:
– Eles viram um homem negro falando de igual para igual com o homem branco, possivelmente às vezes até falando grosso. Isso muda a relação para quem está na base, pois o exemplo vem de cima. Foi um farol de referência para muito gente. Mostrou na prática que a igualdade era possível.