Desde 2 de maio de 2018, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou pessoas trans a mudarem o registro civil do primeiro nome e do sexo diretamente no cartório, sem a necessidade de entrar na Justiça ou de realizar cirurgia, 6 mil travestis e transexuais foram beneficiados no Brasil, conforme a Associação dos Notários e Registradores (Anoreg). Só no Rio Grande do Sul, foram 260, quase todos em Porto Alegre. Para Rafael Gomes, 31 anos, a decisão repercutiu em um detalhe prosaico: agora ele poderá tomar aulas de fandango, no papel de peão, em um Centro de Tradições Gaúchas (CTG) da capital gaúcha.
Ao encontrar GaúchaZH em um café na Cidade Baixa, em Porto Alegre ele estava radiante: após um ano desempregado, acabara de ser contratado para atuar como vigilante. Pela primeira vez, uma vaga CLT para o sexo masculino.
Rafael mostra ao repórter fotos no celular em que está pilchado de peão com camisa azul-escuro, lenço branco no pescoço, botas de um amarelo-queimado e um sorriso de dentes bem brancos. As imagens foram feitas antes da troca de nome.
– Ainda criança, antes dos 10 anos, eu me imaginava como adulto homem. Lembro que, quando brincava de boneca, eu fazia o papel do pai. Não sei muito bem por que escolhi Rafael. Pode ser porque a maioria das mulheres trans que eu conheço escolhe o nome masculino com a letra inicial do nome feminino. E, bom, eu também gosto bastante do Rafael Sóbis – relata o colorado fanático. – Mas minha mãe até hoje me chama de Rita.
Se Rafael alterou o nome no cartório em outubro, a aplicação de hormônios masculinos começou apenas no mês passado – uma injeção a cada 21 dias. O tratamento é feito no Ambulatório Trans da Unidade Básica de Saúde Modelo, em Porto Alegre.
Para Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a decisão do STF foi “fundamental”, mas a transfobia ainda é forte no país. Ela destaca que muitas mulheres trans são hostilizadas ao utilizar banheiros públicos femininos.
– Garantiram um direito fundamental, mas também acirrou o preconceito das pessoas, alimentado por um machismo tóxico. Quem pauta ataques e violências em banheiros públicos contra trans são homens, com o argumento de que as mulheres estão incomodadas – diz.
A questão do banheiro é controversa, mas espelha uma hostilidade para com a população trans. O Brasil é o país que mais assassina travestis e transexuais, conforme levantamento de 2019 da ONG Transgender Europe feito em 74 países: em 2019, foram 130 assassinatos de pessoas trans, contando os casos reportados como crime de ódio. Em seguida, estão México (com 63 casos) e Estados Unidos (30 casos). E as mortes são carregadas de preconceito: de todos os assassinatos do ano passado no Brasil, 80% tiveram requintes de crueldade.
A conquista de direitos das pessoas transgênero aos poucos chega à política. Das eleições de 2014 para 2018, candidaturas LGBT+ triplicaram, embora não tenham chegado a 1% do total, conforme análise de GaúchaZH nas últimas eleições. Três deputadas estaduais trans foram eleitas em Pernambuco e São Paulo. Uma delas, Erica Malunguinho (PSOL), recebeu mais de 55 mil votos.
– De pouco adianta algo se tornar lei se isso não caminhar junto a um pacto social para a sociedade se mover de forma positiva ao que foi acordado e transformado em legislação – reflete a parlamentar.
Para Rafael, o nome masculino reconhecido pelo Estado agora lhe dá segurança até para aguardar na fila masculina em jogos do Internacional, algo que gerava insegurança e constrangimento até então. Em meio às recentes mudanças, em algumas ocasiões o costume se impõe: o português escorrega e, mesmo falando em primeira pessoa, conjuga o verbo no feminino.
Mas ele não tem qualquer dúvida do lado de dentro: já visualiza a perda da voz feminina e a cirurgia que, no futuro, permitirá que ande por aí sem camiseta. A consolidação da identidade masculina vista pelo lado de fora é testemunhada pela namorada, a técnica em enfermagem Angeluce Vanti, 48 anos. Ela conheceu Rafael há quase um ano, quando ele ainda era Rita. Manter-se junto é um trabalho em andamento. O amor os une.
– Eu me apaixonei pela Rita, embora esteja com o Rafael. Tive, primeiro, o processo de me assumir lésbica. Agora, parece que faço o processo inverso. É difícil, mas tudo é uma construção e o tempo vai nos mostrar. Fico pensando no que ele disse, de que não temos de levar em conta a aparência, e sim o sentimento. Só a possibilidade de perdê-lo já me fez recuar – diz Angeluce.
– E o que tu planejas para o futuro? – questiona o repórter.
– Quero me casar com ele... Mas uma coisa de cada vez. Prefiro pensar um dia após o outro.
Evelyn Mendes, apontada pela Anoreg como a primeira pessoa a se beneficiar da decisão do STF e mudar nome e gênero no cartório no Rio Grande do Sul, já passou pela transição. Antes de receber GaúchaZH, ela assistia a um vídeo com códigos de programação do Google. Sentada no sofá do apartamento, em frente à TV, ela refletia sobre a garantia de usar o nome agora oficial. Passou por tanto que, no esforço de fazer-se entender, silencia demoradamente até modular as palavras:
– Não quero tirar o direito de ninguém. Só quero viver de forma digna e tranquila, como todo mundo. Isso é pedir demais?
Muita gente...
- 1,8% da população mundial (estimada em 7,7 bilhões de pessoas) é trans ou travesti.
- 1,1% são mulheres trans ou travestis.
- 0,8% são homens trans.
Desde 2018...
- Foram 6.048 mudanças de nome e gênero nos cartórios brasileiros.
- No Rio Grande do Sul, até janeiro de 2020, o número de mudanças foi de 260.
- Dessas 260, 147 são do gênero masculino para o feminino e 113, do gênero feminino para o masculino.
- Só em Porto Alegre, foram 248 mudanças de nome e gênero.
Como fazer
O preço para alterar nome e gênero em cartório varia conforme o local, mas o serviço é gratuito quando feito na Coordenadoria de Diversidade da Capital (Rua dos Andradas, 1.643, 5º andar). Confira aqui a lista de documentos necessários.