Marrony Amóa Zoró, menino miúdo que aparenta menos do que seus 13 anos, precisou deixar a floresta e desbravar a cidade grande para salvar sua vida. Morador da aldeia Ikolen, na terra indígena Igarapé Lourdes, no interior de Rondônia, na Região Norte do país, ele chegou a Porto Alegre com a família em abril. Doente renal crônico, veio em busca de tratamento na Santa Casa, centro de referência nacional em transplante renal pediátrico. Os rins do garoto não funcionavam mais, e ele dependia de uma máquina de diálise, à qual passava as noites conectado por meio de um cateter. Marrony, assombrado pela imensidão da Capital e por uma língua que não domina, teve de se adaptar a uma rotina em tudo diferente do que conhecia até então enquanto esperava por um doador.
Enildo Kavtere Gavião, 33 anos, padrasto de Marrony, improvisa como porta-voz da família. É o único que fala fluentemente o português. A dona de casa Eronice, 30 anos, mãe do garoto, entende o idioma, mas prefere se comunicar em tupi mondé, traduzido pelo marido. Tímido, Marrony não disse nada durante toda a manhã da quinta-feira (26), quando a reportagem de GaúchaZH o acompanhou durante a espera por exames e uma consulta no Hospital da Criança Santo Antônio. A muito custo, sorriu. De resto, só balançou a cabeça, em respostas afirmativas ou negativas. Enildo recordou o susto quando foi informado de que teria de atravessar o país para cuidar da debilitada saúde do enteado.
— Nunca tínhamos ido tão longe. Não sabíamos nada de Porto Alegre. Mas se seria o melhor para ele, aceitamos na hora — recorda o agricultor, que abandonou as plantações de banana, mandioca e abacaxi das quais tira o sustento.
Jennifer, oito anos, outra filha do casal, ficou com a avó. Eronice chegou grávida. Porto Velho, capital rondoniense, onde a família teve de morar por uns meses, já parecia grande demais para Enildo, que jamais vivera fora da aldeia. Quando pisaram no Rio Grande do Sul, um espanto diante do vaivém frenético dos habitantes os paralisou.
— Muitas pessoas andando na avenida, muita gente fumando — lembra Enildo.
O agricultor tenta enumerar as diferenças entre os dois mundos, mas não consegue. Propõe um exercício de imaginação à repórter:
— É como se você fosse parar no meio da floresta.
Acolhimento em Porto Alegre
Nos primeiros dias, hospedaram-se em um hotel. Depois, por dois meses, foram acolhidos pela Via Vida, entidade que promove a doação de órgãos e tecidos. Com uma ajuda de custo para Tratamento Fora de Domicílio (prevista em portaria do Ministério da Saúde), conseguiram alugar uma casa no bairro Bom Jesus. Uma precária fiação elétrica provocava quedas frequentes de energia — duas máquinas de diálise queimaram e tiveram de ser substituídas. Também faltava água. Enildo e Eronice não aguentaram e decidiram se mudar para um apartamento no bairro Santo Antônio. Compraram geladeira e máquina de lavar usadas, e o restante do imóvel foi mobiliado com doações. O aluguel e as despesas de condomínio consomem R$ 1,1 mil mensais. Sobram R$ 300 para cobrir todo o resto.
— O custo de vida aqui é muito caro. Principalmente a carne — reclama o índio.
— Vou comprar um pedaço e pendurar no pescoço! — brinca ele.
Quase sem dinheiro, Enildo, que trabalhou por breve período em uma gráfica, resolveu locar um automóvel e se cadastrar como motorista de aplicativo. Roda mais de 12 horas diárias, todos os dias da semana, o que lhe rende entre R$ 800 e R$ 900 ao mês. O comportamento dos gaúchos no trânsito, mais do que a cidade desconhecida, impressiona o forasteiro.
— As pessoas se esquecem do freio, só pensam em buzina e não respeitam sinaleira — atesta.
— Mas os gaúchos são muito acolhedores — acrescenta, temeroso de soar mal-agradecido.
Nas corridas pela cidade, quase todos os passageiros, segundo Enildo, intrigam-se com sua aparência.
— Você é índio? — questionam.
Certo dia, um cliente indagou:
— Mas você dirige dentro da aldeia?
Enildo gracejou:
— Sim, dirijo na floresta, desviando dos paus!
A notícia de um doador
A mais aguardada das notícias chegou na madrugada de 4 de dezembro: surgira um doador de rim para Marrony. A cirurgia de implante se realizou naquela manhã, e seguiram-se três semanas de internação. Felizes com os resultados iniciais positivos, os Gavião ficarão em Porto Alegre pelo tempo que for necessário. No melhor dos cenários, de acordo com Clotilde Druck Garcia, chefe do Serviço de Nefrologia Pediátrica, Marrony poderá ser liberado para voltar a Rondônia em três meses, passando a ser acompanhado por médicos de lá. A fase mais crítica para o risco de rejeição do órgão é o primeiro mês após a cirurgia, e o menino passa bem. Os cuidados redobrados com a saúde, entretanto, deverão ser mantidos para sempre.
— O transplante é uma segunda chance. É um tratamento, não é cura — alerta a médica.
Há quase nove meses longe da terra natal, a família anseia pelo retorno. Em Ikolen, os Gavião têm um casa de madeira, e não uma maloca típica de aldeia, como pode pensar o leitor. É como se fosse um sítio, compara Enildo. A terra é de todos. Os moradores trocam alimentos entre si e organizam festas em ocasiões especiais, como o Dia do Índio ou quando matam um porco do mato a flechada. Eles pintam o corpo e o rosto com tintas de jenipapo e urucum, vestem-se com palha de buriti, colocam cocares, dançam. Marrony gosta de nadar e pescar no Rio Prainha e de matar passarinhos com estilingue. As aves também viram refeição. Mákia, um peixe assado na folha de babaçu, está entre as memórias mais saborosas.
— Tô com saudade. Chega de a la minuta! — sentencia Enildo.
Para sempre, haverá uma ligação especial com o Rio Grande do Sul. Heloísa Cristina, a caçula do casal, nasceu na maternidade da Santa Casa no mês de setembro. Quando fala sobre os desejos para o próximo ano, Enildo afirma desejar que não aconteça nada de ruim com o rim que o enteado acaba de receber.
— Queremos paz, saúde e esperança de voltar para casa.