Divagações depois de encontrar o doutor Camargo em uma livraria linda. Os bons encontros, e as boas causas, têm esse poder de deixar a gente assim, sentimental.
Encontrei o doutor Camargo na PocketStore, a linda livraria da Félix da Cunha que parece pequeninha, mas que vai se agigantando à medida em que a gente passeia pelos seus muitos títulos. Isso fora o atendimento, que é perfeito. Propaganda feita (e não é jabá!), volto ao doutor J. J. Camargo, um dos colunistas mais lidos aqui do jornal. Naquele final de tarde, tão casualmente quanto quem diz que o Uber demorou, o doutor Camargo comentou que estava um pouco atrasado porque tinha recém saído de um transplante que demorou mais do que o previsto.
Para tudo.
Pensando nas minhas razões para um atraso, todas ficaram menos que irrisórias no mesmo instante, e retroativamente a toda a minha vida. Ele estava atrasado por alguns minutos porque tinha acabado de sair de um transplante. Quer dizer, de devolver a vida para alguém. Só o trabalho de parto seria páreo em importância, e com a ressalva de que, nesse caso, o direito de atrasar é do bebê.
Voltando mais uma vez ao doutor Camargo, o cirurgião que primeiro transplantou um pulmão na América Latina, o primeiro a realizar um transplante duplo no Brasil. Diretor da Cirurgia Torácica do Pavilhão Pereira Filho e do Centro de Transplantes da Santa Casa, ele opera quase todos os dias e transplanta sempre que há doadores. E aí chegamos ao assunto da coluna: apesar das campanhas, e embora os esforços, existe muito mais gente esperando por órgãos do que doadores.
O doutor Camargo lembrou da repórter de um grande jornal que perguntou a ele se não seria possível os hospitais "apressarem" a morte dos pacientes para conseguir os órgãos. Com a calma que lhe é característica, respondeu que sim, era muito possível, e a moça se alvoroçou. Bastava convencer todas as equipes dos hospitais a participar do conluio, por exemplo. E seguiu dando outros motivos, todos fantasiosos, até a guria murchar. Sinceramente, alguém que pensa em uma bobagem dessas deve acreditar que a Terra é plana. São asneiras equivalentes.
O doutor Camargo já disse em entrevistas e conversas que dorme de roupa, preparado para qualquer chamado, a hora que for. Porque é urgente, porque pode não dar tempo de vestir um casaco, porque é a diferença entre o desespero e a esperança. E porque são tão poucas as chances de quem está esperando na fila, e porque só quem vive uma situação assim, o doente ou quem lhe é mais próximo, consegue descrever a crueldade dessa espera, fica a pergunta: por que não ser um doador?
Doar é, talvez, o ato de generosidade mais radical que existe. No meio da dor, pode parecer até uma insensibilidade com a perda. Quem conseguiu diz que é bem o contrário. É um consolo. Nesses tempos de Natal meio por baixo, meio sem sentido, antecipe suas compras e pague em 12 suaves prestações, quem sabe não pode ser também o presente mais sincero de todos. Sou doadora - sem planos imediatos, diga-se.
Divagações depois de encontrar o doutor Camargo em uma livraria linda. Os bons encontros, e as boas causas, têm esse poder de deixar a gente assim, sentimental.