Os passeios dominicais da família Varela perderam sentido com a morte do patriarca Antônio Avelino, 80 anos, ferido por um tiro no pescoço enquanto lavava o carro na frente de casa, em Cachoeirinha. Desde aquele assalto, em 2016, sempre que a esposa, os filhos e os netos reuniram-se para pegar a estrada, um hábito cultivado há décadas, todos foram subitamente tomados pela tristeza. Compreenderam que seria melhor evitar algumas situações que lhes roubavam o riso.
Antônio era entusiasta dessa programação. Convidava Sueli Teresinha Varela, 70 anos, companheira de meio século — e quem mais estivesse em casa — para comer em restaurantes da Serra, do Litoral ou do bairro vizinho. Não gostava de ver a esposa enfurnada na cozinha depois de uma semana de trabalho. Agora, sem ele, Sueli prefere o sossego de casa. Neste 2 de novembro, irá a Cambará do Sul, na Serra, jogar pétalas de rosas sobre o campo onde as cinzas de Antônio foram deixadas.
— A gente fica triste no Dia de Finados, mas é uma maneira de homenageá-lo. Ele morou muitos anos na cidade e ter suas cinzas lá foi um pedido dele — conta.
O hábito cristão de dedicar um dia para rezar pelos mortos remonta ao século 5, mas foi no século 13 que a data passou a ser chamada de Dia de Finados. Cada parte do mundo celebra a seu modo. E cada pessoa também, diz a psicóloga especialista em luto Erika Pallottino, sócia-fundadora do Instituto Entrelaços, do Rio.
— É um dia que mexe na ferida. Não existe modo certo ou errado de agir. Não tem o menor problema ficar triste ou chorar. O luto nunca termina. Ele é acomodado internamente — observa.
Sueli cercou-se de artifícios para fazer a ausência do marido caber no peito. As fotos antigas, que ela costumava espalhar sobre a mesa da cozinha ou pelo sofá da sala nunca mais saíram dos álbuns empilhados no guarda-roupa. Não consegue folheá-los sem chorar. Manteve exposto sobre uma bancada, perto das fotos dos netos, apenas um retrato de Antônio na Europa. Nos últimos tempos, percebeu que falar sobre aquela segunda-feira, 14 de novembro de 2016, a faz sentir-se melhor. Passou a ver esses bate-papos como um desabafo. Ainda sente falta de Antônio, claro. Ainda chora, mas permite-se olhar para frente. Vendeu o carro que custou a vida do companheiro e está prestes a mudar de endereço. Vai morar em Gravataí, perto da filha e de um dos três netos.
— Trocar de casa faz parte do tratamento. Tenho evoluído bem. Não tenho depressão, apenas tristeza. Nunca precisei de remédio. As idas à psiquiatra estão cada vez menos frequentes. Eu choro muito, mas desabafo também. Não dá para se fechar, ficar sozinha. Tenho que tentar entender o que faz bem e o que faz mal e me ajustar — diz.
"Não há um tempo padronizado”
Antônio foi baleado uma semana antes das Bodas de Ouro, que seriam comemoradas com missa. A efeméride foi lembrada no hospital (onde ele ficou por oito dias em coma), sem qualquer cerimônia. Da aliança, Sueli fez três pingentes com a letra A, entregues para cada filho.
— No começo, foi desesperador. Eu só chorava. Ele era saudável, estava bem. Eu imaginava que ficaríamos juntos até bem velhinhos —afirma.
A psicóloga e professora da PUCRS Ângela Seger pondera:
— A morte abrupta é mais impactante. Quando a pessoa está doente, os familiares, embora sofram também, conseguem se preparar e até se despedir.
Ângela considera natural a adoção de estratégias que mantenham as pessoas emocionalmente equilibradas. Há quem continue com as rotinas anteriores para homenagear quem morreu. A psicóloga alerta que uma vida cheia de privações pode ser nociva. No luto prolongado, não se consegue retomar as atividades, o trabalho, o lazer. Os sintomas podem ser consumo excessivo de álcool, isolamento, reclusão, perda ou ganho de peso, insônia e sono demasiado por longo período.
— É como se a vida do enlutado também tivesse acabado. Manifestações assim são normais no início, mas, em algum momento, precisam diminuir. Quando não se supera esse estágio, há problema — diz a psicóloga.
Não há um tempo padronizado para acomodar a dor, mas Ângela diz que o primeiro ano tende a ser o mais difícil. É o primeiro Natal, o primeiro Dia das Mães, dos Pais, dos Namorados, o primeiro aniversário de casamento e de morte:
— Para muitos, o primeiro ano é o marco. Entendem, ao final dele, como se tivessem sobrevivido. Outras demoram mais. Dois, três anos. É importante que familiares e amigos estejam atentos e procurem ajuda se perceberem sintomas além do esperado.
“Eu vinha me preparando para isso”
A técnica em enfermagem Débie Henrich, 31 anos, reconhece que ter podido se despedir foi determinante para aceitar a perda do pai. Nos anos que antecederam sua morte, o cinquentão Gregório Henrich teve dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs) que o debilitaram. Passou a ficar a maior parte do tempo deitado e a ter dificuldade em enxergar. Em novembro de 2015, três dias depois de um infarto, seu coração parou para sempre. Passara seus últimos momentos em um leito hospitalar em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos.
— Fazia uns dois anos que estava assim, nessa situação. Sabíamos que o coração estava fraco e que poderia acontecer a qualquer momento. Então, eu vinha me preparando para isso. Tanto que, quando chamamos a ambulância, eu sabia que ele não voltaria — lembra Débie.
Por ter se aproximado mais do pai nos últimos anos e se despedido dele ainda em vida, a filha conseguiu assimilar melhor sua morte. Hoje, sente-se bem quando lembra do churrasco que ele assava e das sopas que fazia.
— Eu sabia que aquilo não era vida. Que não era mais ele. Sempre foi de estar na rua, em festas — lembra, ao dizer que suas cinzas foram jogadas no mar.
Conversar, lembrar, chorar, ficar triste
O psicólogo e pesquisador americano J. William Worden, autor de livros como Aconselhamento do Luto e Terapia do Luto, diz que o luto é um processo universal que, inevitavelmente, todos terão de passar. Para entendê-lo, é preciso avançar por cada uma de suas quatro fases: aceitar a realidade da perda, elaborar a dor, ajustar-se ao ambiente onde está faltando a pessoa que morreu e reposicionar-se em termos emocionais para continuar a vida.
Conversar, lembrar, chorar e ficar triste fazem parte do processo de aceitação. Passar por essas fases torna-se menos penoso quando o enlutado entende como genuínas as vontades de ficar sozinho ou rodeado de amigos, falar muito ou silenciar, perder o apetite ou comer além da fome, ter insônia ou excesso de sono. É o chamado luto agudo, nomeia Erika Pallottino, do Instituto Entrelaços. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, essa desorganização emocional precisa enfraquecer para que a retomada das atividades cotidianas aconteça. Procurar amigos, familiares e até conforto espiritual ajuda nesse processo.
A psicóloga Ângela Seger lembra que o luto é um processo natural, influenciado por cultura, características familiares, personalidade e ligação com quem morreu. Por tudo isso, não há padrão comportamental nem tempo pré-definido de duração. A professora da PUCRS conta que de 80% a 90% das pessoas conseguem superar a perda, uns com mais outros com menos dificuldade. Haverá idas e vindas, dias de tristeza e alegria. As pessoas tendem a sentirem-se culpadas por não terem estado mais perto, ficarem com raiva de si e até da pessoa que morreu. Há quem se sinta culpado, inclusive, por estar com raiva.
— Nesses casos, não é preciso nenhuma intervenção psicológica. O sofrimento é natural, esperado — diz Ângela.