Ao ver a ambulância na frente de casa, Miguel, sete anos, percebeu que algo não ia bem com a avó. Bastou o veículo arrancar em direção ao hospital para o menino, da porta, externar a primeira dúvida:
— Será que ela vai voltar pra casa, mãe?
Naquela manhã, cerca de dois meses atrás, a família de Miguel perdeu dona Jaci da Silva Mattos, 73 anos, vítima de câncer nos pulmões. A casa onde moram a criança e seus pais, em Gravataí, também era compartilhada com ela, que quase não saía da cama. A proximidade com a doença da avó permitiu que o neto, aos poucos, fosse preparado para a despedida. Isso deu tranquilidade para que sua mãe, Patrícia da Silva Mattos Alves, fosse objetiva na resposta.
— Respondi que não sabia, que ela estava ruinzinha e que podia não voltar. Já tínhamos conversado sobre o ciclo da vida quando ele perguntava se a vovó iria morrer — lembra a terapeuta holística de 39 anos.
O pior se confirmou. Patrícia, mais do que lidar com o luto pela mãe, tinha, agora, de contar da morte a Miguel, neto apegado. Ainda abalada, chamou-o na sala e, conforme sua crença, disse que a vovó tinha ido morar no céu, em forma de estrelinha. Que, apesar de ausente, estaria nos sonhos dele.
Psiquiatra e psicanalista da infância, com pós-doutorado na área, Celso Gutfreind não se opõe ao uso de eufemismos desde que o adulto acredite no que está falando e não os use apenas para poupar o sofrimento da criança.
— É um assunto muito bonito, triste e complexo. Então, se há crença de vida após a morte, está bem falar, por exemplo, que virou estrelinha. Se não acredita, é importante que não fale — afirma Gutfreind, ao destacar que as crianças têm relação mais natural com a morte do que os adultos, até por estarem mais distante dela. — Tem de contar na linguagem que se conversa, com naturalidade, firmeza, empatia e respeitando o ritmo da criança. Sempre colocar os aspectos positivos, que vão ficar as lembranças boas, que ele vai poder recordar dos momentos felizes — complementa.
Deve haver espaço para expressar sentimentos
A psicóloga especialista em luto Erika Pallottino, sócia-fundadora do Instituto Entrelaços, do Rio, vai por outra linha. Pontua que expressões como “dormiu”, “descansou”, “está no céu” e “virou estrelinha” devem ser evitadas – pois a criança pode até não compreender a morte em sua plenitude, mas entende que aquela pessoa não estará mais com ela. A especialista indica usar sempre a palavra morte e suas derivações, exemplificando de maneira lúdica o significado. Responder com honestidade dúvidas dos pequenos pode ajudá-los a compreender melhor a finitude da vida.
— Pode ser colocando a mão da criança contra o próprio peito e dizendo que morreu porque o coração parou de bater ou porque do nariz não sai mais ar — detalha.
Quando é o pai ou a mãe que morre, é importante transmitir uma atmosfera otimista. Explicar que a criança vai ser cuidada, que a família vai se reorganizar para isso. Às vezes, a maior preocupação é quem vai cuidar dela.
CELSO GUTFREIND
Psicanalista
Alguns autores defendem que crianças gravemente doentes ou que convivem com familiar enfermo podem entender a morte a partir dos cinco anos. Caso contrário, de oito anos para cima. O psicólogo Jonas Guedes Machado sustenta que as crianças têm a morte como algo temporário, que vai e volta, o que justifica a necessidade de uma conversa clara e a honesta.
De tempo em tempo, Miguel fala sobre a vó, cita coisas de que ela gostava, hábitos que tinha e até abana para uma estrela que jura ser ela. Quando isso acontece, Patrícia não muda de assunto e conversa o tempo que o filho se mostrar disposto. Celso Gutfreind julga saudável a presença dos pais em momentos de tristeza e dúvidas. Lutos mal elaborados, que viram depressão, são aqueles em que não houve espaço para expressar sentimentos:
— É importante estar disponível para conversar e colher reações durante o tempo que ela desejar. Não é o adulto quem dita o ritmo. O adulto tenta se guiar pelo ritmo da criança. Ela vai querer conversar um pouco em um dia, um pouco no outro.
Os três conceitos para a compreensão da morte:
- Não funcionalidade (algo estragou e parou de funcionar)
- Irreversibilidade (quando morre, não há volta)
- Universalidade (tudo que é vivo um dia vai morrer)
“Eu só pensava em como iria contar que elas não tinham mais pai”
Era novembro de 2015. Luciana Rocha tinha 41 anos e havia chegado em casa após uma palestra à qual o marido só não foi porque o caçula estava febril. Aproveitaram o adiantado da hora para rever a agenda do dia seguinte e conversar sobre amenidades. Antes de se deitarem, por volta de meia-noite, Marden Almeida, então com 47 anos, sugeriu dormir no quarto das crianças com argumento de que a cama do casal, onde estava Samuel, era apertada para os três. Foram duas horas de sono até Luciana ser acordada pela pela irmã e uma amiga. As vizinhas do prédio, em Belo Horizonte, traziam a perturbadora notícia de que Marden havia cometido suicídio.
— Foi um choque. Tinha sido um dia absolutamente normal, cada um trabalhando na sua atividade — lembra a psicóloga, que imediatamente pensou nas crianças. — Ele as tinha colocado para dormirem. Então, eu só pensava em como iria contar que elas não tinham mais pai.
Ao amanhecer, após noite em claro, Luciana sentou-se no sofá e esperou os filhos na sala. Percebeu que a dupla de cinco e 10 anos acordou agitada, procurando as roupinhas que usaria naquela manhã. Era o dia da Festa da Família, evento anual da escola. Acomodou-os ao seu lado, respirou fundo e, após abraço longo, contou que o papai havia sofrido um acidente. Samuel perguntou se o papai tinha morrido. O sutil balançar da cabeça como resposta desencadeou a disparada de ambos para o quarto, aos prantos.
— Eu os chamei, conversamos e choramos muito. Decidi que não falaria do suicídio naquele momento. Era informação demais. Nem eu tinha assimilado a situação ainda — assume.
A psicóloga Erika Pallottino diz que a perda repentina tem complicadores e que, às vezes, o adulto precisa compreender a situação antes de comunicá-la às crianças.
— Em caso de doença ou velhice, é possível incluir a criança naquele cotidiano de cuidados, colocando-a para ajudar na alimentação e, assim, fazê-la entender a gravidade. Isso facilita a compreensão. Diferentemente da morte repentina — ressalta.
Luciana acredita que a atuação como psicóloga por mais de 20 anos a ajudou a trabalhar o assunto com Samuel e Thaís. Nas conversas que têm até hoje, os incentiva a valorizarem momentos bons que viveram com Marden e a agradecerem o pai que tiveram. Sempre destaca que a forma como ele viveu é mais importante do que a maneira como morreu.
— Sempre fui sincera. Não escondi meus sentimentos. Chorei muito na frente deles. Uma vez, Samuel perguntou se eu chorava dia e noite. Respondi que não, que entre um choro e outro, eu também dormia um pouco — diz.
Para a psicóloga Erika, essa transparência ajuda as crianças a elaborarem o luto e a aceitarem a dor. Desde que não seja desesperado, o choro adulto autoriza as crianças a se emocionarem e a entenderem que é normal a ausência causar saudade e tristeza:
— É importante para elas saberem que podem ficar tristes, que têm direito de externar o sentimento.
Liberdade para participar dos rituais de despedida
A primeira a saber como o pai morreu foi Thaís. Luciana percebeu que a filha estava interessada no fato e decidiu contar, um ano e meio depois da morte. A menina quis culpar-se, porque, às vezes, “não aceitava os convites dele para jantar”. Samuel ficou sabendo há dois meses, por um colega de escola.
— A criança merece sempre a verdade. E é preciso entender que, após a morte de alguém próximo, ela vai mudar sua maneira de ser e agir porque a estrutura familiar e a rotina ficaram diferentes — comenta Luciana, hoje especialista em suicídio e luto.
A decisão de irem ao sepultamento do pai coube às crianças. Thaís ficou até o fim, mas Samuel saiu antes de o ritual terminar, para brincar. Nos meses seguintes, o caçula enfrentou dificuldades na escola. Sentia-se inseguro, com medo de também perder a mãe, e precisou de apoio de uma assistente pedagógica para permanecer em sala de aula.
Erika Pallottino considera imprescindível dar liberdade para a criança ir e voltar do sepultamento no momento que quiser e se quiser. Para Jonas Guedes Machado, psicólogo, participar do velório ajuda a eliminar a expectativa de regresso e faz a criança sentir-se parte do processo.
— Exclui-la do ritual irá gerar dúvidas. Ela pode se perguntar por que só ela não foi e imaginar que a pessoa que morreu não a queria lá — sugere Machado.
10 conselhos de especialistas
- Falar a verdade
- Usar expressões de fácil entendimento
- Evitar eufemismos
- Não esconder sentimentos
- Sempre estar disponível a conversas
- Ficar atento a dúvidas que possam surgir
- Tranquilizá-las sobre o futuro
- Ser paciente
- Entender que o comportamento delas pode mudar
- Procurar atendimento especializado se avaliar necessário
Fontes: Celso Gutfreind (psiquiatra e psicanalista da infância), Erika Pallottino (psicóloga especialista em luto), Jonas Guedes Machado (psicólogo) e Luciana Rocha (psicóloga especialista em luto e suicídio).