A ficção é um aliado poderoso para exorcizar demônios interiores, transmutar sentimentos negativos, elaborar a tristeza, enfrentar o luto pela morte de um parente. No mínimo, adentrar em um mundo de fantasia traz algum alívio colorido para o ambiente cinzento em que estamos.
Eu queria ter ganhado de presente no aniversário de 11 anos o livro O Coração e a Garrafa. Porque, olhando em retrospecto agora, acho que sua protagonista espelha o que aconteceu comigo quando o vô Job, meu avô materno, morreu.
Foi no dia da festinha, mas na véspera do aniversário – minha mãe contou que ele, internado no hospital por causa de um câncer de pulmão, não queria morrer na data exata (ah, vô Job, sempre preocupado comigo...). Chorei todas as lágrimas possíveis nos abraços dos colegas de aula. Era como se eu quisesse sentir naquelas crianças totalmente imberbes o raspar de quando meu rosto encostava no do vô. Adeus aos cachorros-quentes com pão de forma e manteiga, adeus aos gibis do Capitão América, adeus às sessões de Charles Chaplin na TV do quarto.
Depois, parece que sequei. Armei uma carapaça emocional em relação à morte e ao luto. É por isso que me identifico tanto com O Coração e a Garrafa. Escrito e ilustrado pelo norte-irlandês Oliver Jeffers (um craque da literatura infantojuvenil, também autor de Achados e Perdidos e Como Pegar uma Estrela), narra a história de “uma menina bem parecida com as outras, cheia de curiosidade sobre o mundo”, que refletia sobre as estrelas, admirava-se com o mar e adorava descobrir coisas novas. Fazia tudo isso na companhia de seu pai – “até que um dia ela encontrou a cadeira vazia”.
O texto de Jeffers é tão poético que não me acanho de reproduzir mais passagens: “E como se sentia muito insegura, a garota achou que a melhor coisa a fazer era colocar seu coração num lugar sem perigo. Só por um tempo. Então o colocou em uma garrafa, que pendurou no pescoço, e isso pareceu consertar as coisas”.
O efeito disso, porém, foi logo sentido: a menina se esqueceu das estrelas e parou de prestar atenção no mar. Desconectou-se emocionalmente do mundo, carregando para lá e para cá uma garrafa agora pesada. Seu coração estava salvo, mas a que preço?
Vou evitar spoilers sobre o desfecho do livro. Basta dizer que, com sinceridade e delicadeza, Jeffers ensina que perder e sofrer fazem parte da vida. Que as coisas não são para sempre – nem mesmo a dor e a tristeza. O tempo cura.