Em vez de cumprimentos e abraços da família no dia em que completou 18 anos, João Carlos Silveira de Ávila recebeu o desafio de encontrar um lugar para viver. Mais do que a maioridade, a chegada da data representou o começo de uma vida sem guardiões, monitores, assistentes sociais, Ministério Público e Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça. Morador de Porto Alegre, ele fazia parte do grupo de 304 adolescentes acolhidos no Estado que, até 2020, completarão 18 anos e, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, deverão deixar os espaços de proteção. Depois de seis anos vivendo em abrigos e casas-lares ao lado dos três irmãos menores, o órfão de mãe — e que jamais conheceu o pai — estava definitivamente sozinho no mundo.
Até os 11 anos de idade, João compartilhou a miséria com cinco irmãos (três meninos e duas meninas) e a mãe, Adriana Silveira de Ávila. Perambulavam entre as periferias de Viamão e da zona norte de Porto Alegre. Adriana, quase sempre sozinha para criar os filhos, em algumas épocas dividia as dificuldades com um companheiro. Adultos e crianças, segundo o jovem, chegaram a dormir na rua.
Não há fotos da primeira infância. Nem o nome do pai registrado nos documentos oficiais. Restaram apenas as recordações guardadas na memória. Quando lembra o período, João sorri da própria dor. Há tempos, comenta, parou de chorar. Apesar de tentar convencer os outros de que é um solitário por escolha, admite ter sofrido por entrar na adolescência sem vínculo familiar.
— Minha vida foi uma questão institucionalizada dentro do sistema. Um processo. Até agora, fui um número — desabafa.
Nas lembranças mais remotas, surgem as duas situações em que teve partes do corpo queimadas. A primeira ocorreu quando vivia com a família num mato abandonado do bairro Jari, em Viamão. Tinha cerca de quatro anos e caiu sobre um fogareiro. A outra, num barraco de madeira sem energia elétrica ou água encanada, no bairro Mario Quintana, na Capital. Ele e um dos irmãos acenderam uma vela para espantar o frio, enquanto a mãe dormia na casa do namorado. O fogo virou uma tocha e atingiu o lado esquerdo do tronco do menino. Em ambos os casos, precisou de atendimento médico.
Adriana, sem jamais ter um emprego fixo, sobrevivia da reciclagem. Dependente química e portadora do vírus HIV, ela catava latas e garrafas durante a madrugada para revender em ferro-velhos pela manhã. Por vezes, usava o dinheiro no consumo de drogas. Os filhos se encarregavam do próprio sustento, guardando carros na área central. João acredita que a convivência nas ruas com diferentes pessoas, apesar de ser trabalho infantil, acabou lhe ajudando na sociabilidade. A última morada de toda a família, antes de os filhos serem separados da mãe, foi o casebre de um único cômodo no Mario Quintana. O piso de terra ficava coberto de água quando a chuva invadia o espaço e molhava os dois colchões que acolhiam a todos os sete.
Há uma recordação que João gostaria de apagar. Em uma madrugada, ele, a mãe e o irmão de dez anos procuravam recicláveis pelas vias da Zona Norte quando encontraram um desconhecido próximo a um posto de gasolina. Aos oito anos, o menino memorizou quatro cenas: o homem convida as crianças para irem a um caixa eletrônico; a mãe fica para trás porque estava com um carregamento de latas; ele segue com o irmão e o desconhecido; em seguida, é vítima de violência. No retorno para casa, a família jamais voltou a falar sobre aquela noite. João acredita que a mãe tenha sido enganada pela própria ingenuidade e declara ter superado a situação.
— Não tínhamos qualquer cuidado. Naquela época, chegava a pensar “será que meus pais erraram?”. Hoje, sei que para negros, pobres e sem formação era difícil ter uma saída — afirma o rapaz, estudante do terceiro ano do Ensino Médio e ávido leitor da Constituição Federal de 1988.
Reviravolta
Mesmo sem estar matriculado na escola, o curioso João aprendeu a ler sozinho, com o incentivo dos manos mais velhos, juntando as letras da Bíblia. Ainda que demonstrasse interesse em adquirir conhecimento, foi proibido pela mãe de frequentar o Serviço de Apoio Socioeducativo (Sase) do bairro porque precisava trabalhar na reciclagem. Acostumado à rotina de viver sem saber se haveria alimento ao despertar, conseguiu convencer Adriana a inscrevê-lo para garantir a comida do dia. E foi durante uma aula de futebol do projeto que a vida do jovem sofreu uma reviravolta.
Ele estava numa praça, junto aos colegas e os educadores sociais, quando um dos professores atendeu uma ligação e imediatamente suspendeu as atividades, determinando o retorno de todos ao prédio onde recebiam atendimento. Na chegada, João foi separado do grupo e encaminhado a um carro do Conselho Tutelar, onde estavam os outros irmãos – na época, dois meninos tinham três e sete anos de idade, uma menina, 10, e uma adolescente, 15 anos. O irmão de 14 anos fugiu de casa ao ver a aproximação da polícia e dos conselheiros – no processo que ordena o abrigamento, não consta o seu nome, pois ele foi recolhido depois ao sistema e levado para conviver com os irmãos.
Dois carros da Brigada Militar acompanhavam a ação, e a imagem dos policiais assustou João, com quase 12 anos, que não pôde se despedir da mãe. Adriana foi denunciada por ser usuária de drogas, obrigar os filhos menores a trabalharem na reciclagem, não os matricular na escola e negligenciar a filha de 15 anos.
Conforme a promotora de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, Cinara Vianna Dutra Braga, casos como o da família de João chegam com frequência ao Ministério Público (MP). Ela salienta que todas as crianças acolhidas necessitam de atendimento psicológico e, muitas vezes, também psiquiátrico porque foram abandonadas ou vítimas de violência psicológica, física ou sexual. Inicialmente, explica, o Conselho Tutelar toma conhecimento da situação de risco e verifica quais medidas protetivas podem ser adotadas. A família passa a ser monitorada – João não lembra de a mãe ter recebido alguma orientação antes do recolhimento das crianças. Se a situação de negligência persistir, o MP é acionado e são esgotadas todas as medidas protetivas até a determinação mais traumática: o acolhimento institucional.
Hoje, na Capital, há atendimento em abrigos, para as situações mais complexas de crianças e adolescentes que sofreram abusos sexuais, por exemplo, e exigem fiscalização intensa, e nas casas-lares, destino dos grupos de irmãos que ficarão por mais tempo sob a tutela do Estado. No último levantamento do MP, em março deste ano, o Rio Grande do Sul apresentava quase 5 mil acolhidos. Somente em Porto Alegre, eram 876 crianças e adolescentes institucionalizados em 84 casas-lares e abrigos.
— A porta de entrada do acolhido é o abrigo residencial Sabiá 7 da Fundação de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre. Quando ele tem problemas de saúde mental, vai para uma casa da Fundação de Proteção Especial ou para uma das quatro ONGs especializadas em crianças e adolescentes especiais — informa a promotora.
João e os quatro irmãos foram levados para a Sabiá 7 e separados por gênero. Na recepção, os obrigaram a tomar banho antes da primeira refeição.
— Eram mais de 30 crianças num mesmo lugar, e eu ficava me perguntando o que fazia ali. Comecei a sentir a responsabilidade de irmão mais velho, tendo de cuidar dos mais novos porque eles estavam assustados. Não é algo que acontece no dia a dia. Comia no serviço de convivência e, agora, estava comendo num abrigo que eu nem sabia como se chamava. Foi um espetáculo de horror. Principalmente, para o nosso psicológico — descreve.
Diariamente, ele perguntava quando poderia voltar para a mãe. Com o passar das semanas, a falta de respostas deu lugar à tristeza e ao sentimento de viver numa prisão, com regras e horários determinados. Definida a situação da família, os filhos de Adriana foram encaminhados para um abrigo residencial recém-inaugurado no bairro Bom Jesus. A irmã mais velha começou a fugir do local, até deixar de vez o acolhimento. João afirma não querer manter contato com os três irmãos mais velhos – o rapaz tem 20 anos e está preso por roubo. A jovem que saiu do abrigo está com 21 anos. Há também uma de 25, que foi criada pela avó paterna e distante dos outros irmãos. Dos seis filhos de Adriana, apenas três têm o pai identificado na certidão de nascimento.
— O tempo inteiro da minha vida eu cuidava dos meus irmãos porque a minha mãe não estava mais presente, nem meus irmãos mais velhos. Os menores estavam começando a entender o que era um abrigo e um processo de acolhimento — relata João.
Estudo
No novo lar, os quatro tiveram audiências concentradas — quando representantes da Justiça vão à casa de acolhimento para ouvir os acolhidos, a rede de atendimento e os técnicos da instituição que atuam no caso para dar os encaminhamentos jurídicos, de educação, saúde, e relacionamentos dos institucionalizados.
Neste período, João voltou à escola. Matriculado no Ensino Fundamental com quase três anos de atraso, fez questão de recuperar o tempo perdido. Estudou num estabelecimento público até o nono ano e ingressou no Ensino Médio numa instituição particular, com bolsa de estudos ofertada por um projeto do Ministério Público Estadual em parceria com o Ministério Público do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). A partir da conclusão do terceiro ano, prevista para o final de 2019, ele fará parte dos 2% de jovens entre 14 e 18 anos sob a tutela do Estado em Porto Alegre que finalizaram o Ensino Médio. Levantamento do MP indica que 98% dos acolhidos chega a essa faixa etária sem concluir o sexto ano do Fundamental.
Enquanto esteve com os irmãos no segundo abrigo, João lembra das visitas semanais da mãe, intercaladas com ligações telefônicas diárias.
— Ela era muito carinhosa, apesar de tudo. Ligava e falava “eu tô conseguindo pagar a madeireira”, “tô me ajudando”, “tô fumando menos”, “tô tomando os meus remédios”, “tô indo no Caps” — recorda.
Em fevereiro de 2014, a Justiça constatou que Adriana havia retomado o acompanhamento com infectologista e comprado uma casa pré-fabricada para possibilitar o retorno dos filhos em até seis meses. Porém, as crianças jamais voltaram a conviver com a mãe. No ano seguinte, por determinação judicial, João e os três irmãos foram transferidos para uma das casas-lares da ONG Ação Social de Fé, na zona norte de Porto Alegre, e a mãe passou a vê-los uma vez por mês.
— Foi o fim dela (da mãe) porque cortou o vínculo totalmente. A visita semanal a fazia brilhar e querer melhorar. Quando a gente foi para a casa com a mãe social, foi um baque para ela. Sabíamos que seria um lugar melhor, uma casa com dois pisos, diferente de um abrigo. Era um lar com comida, uma pessoa nos cuidando, que talvez pudesse nos dar algum afeto, mas a gente ainda tinha mãe — diz João.
Arrependimento
Em 2016, Adriana contraiu toxoplasmose. A doença agravou a saúde já fragilizada pelo HIV. Afundada nas drogas e sem forças, foi internada e passou a receber visitas dos filhos acompanhados de assistentes sociais. Ela morreu no hospital, em novembro daquele ano. João confessa que o único arrependimento dele na vida é ter se negado a ir àquela que seria a última visita. Não queria vê-la em estado terminal. Lamenta não ter conseguido se despedir.
— Imagine uma mulher negra, da favela, órfã de mãe e pai, com 15 anos, sem saber o que é ser cuidada por uma família. Como ela vai ter filhos e conseguir cuidar destes filhos? Endeuso mesmo a minha mãe porque eu sei que erraram com ela, e ela acabou errando com a gente — justifica, dizendo ter adquirido um olhar técnico sobre a sua própria existência.
Na casa-lar, o adolescente sonhava com os irmãos sendo adotados. Queria que tivessem algum vínculo familiar. Ele, ao contrário, nunca desejou uma nova mãe ou o pai que nunca teve. João sempre quis ver os pequenos recebendo carinho familiar, o que ele assegura ter ganhado nos abraços e beijos de Adriana enquanto catavam recicláveis pelas ruas.
— No acolhimento, os educadores vão te ensinar que não pode falar palavrão, que devemos limpar o banheiro e os nossos quartos e precisamos estudar. Mas tu cresces sem vínculo, sem carinho e amor porque o educador está ali apenas para te educar. Não tem abraço, nem aquele colo que a gente precisa. Nada que uma mãe ou um pai fariam, realmente, por um filho — lamenta.
Transformação
Definindo-se como resiliente e persistente, João usou a tragédia pessoal como combustível para mudar seu rumo. Além da bolsa de Ensino Médio, cursou logística no projeto Pescar, fez os cursos do CIEE-RS de Dicção e Oratória, Criatividade, Inovação e Mudança no Ambiente de Trabalho e Desenvolvimento Pessoal. E ainda cursou inglês no Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano, por meio de um programa de estudo ofertado pela embaixada dos EUA.
Quando completou 16 anos, decidiu ter a primeira experiência profissional. Virou instrutor de inglês básico para idosos na ONG Associação Filhas Nascidas do Coração (Afinco).
Em 2018, conquistou vaga como jovem aprendiz na área administrativa de uma empresa de transportes. Neste ano, chegou a trabalhar por um mês como assistente técnico numa loja de baterias, mas desistiu da função por não ter se adaptado.
Admirador de Karl Marx (o autor de O Capital e O Manifesto Comunista) e de Leon Trotsky (intelectual e revolucionário bolchevique), João diz entender que vive em um mundo capitalista e que, portanto, precisa ralar para sobreviver. Comunicativo, foi selecionado com outros nove acolhidos de diferentes instituições para fazer parte da primeira turma do Comitê de Participação de Adolescentes Acolhidos na Justiça (Cepaj), criado pela Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça-RS. Entre dezembro de 2018 e julho deste ano, quando deixou o sistema, o jovem fez parte das discussões junto com integrantes da Justiça para abordar questões sobre saúde, educação e habitação nos abrigos e casas-lares.
— É um espaço no qual o Judiciário também está aberto para ouvir, acolher e debater as demandas das crianças e dos adolescentes em situação de acolhimento institucional. Eles têm uma angústia grande de se vincular a um pai social, uma mãe social ou monitor, pois podem ser trocados a qualquer momento. A gente vê na fala a necessidade de ter esta vinculação, que pode ser suprida pela adoção ou pelo apadrinhamento — realça a juíza-corregedora Nara Cristina Neumann Cano Saraiva, titular da Corregedoria da Infância e da Juventude do TJ-RS.
Emprego
Três meses antes de deixar a casa-lar, João perdeu o emprego. Preocupado, compartilhou o currículo profissional na rede social Linkedin, pedindo uma nova chance. O superintendente de Operações de Produtos do Sicredi, Felipe Sessin e Silva, viu a postagem, olhou o currículo e impressionou-se com a determinação. Era um sábado à tarde, e Silva o contatou por e-mail sugerindo uma conversa na segunda-feira seguinte. O superintendente reuniu um grupo de especialistas da empresa para fazer uma única entrevista.
– A vida o fez sofrer bastante e ele se blindou. Mas é uma máquina de falar, com muita naturalidade, e nos assustou porque tem muito conteúdo de literatura, política e línguas estrangeiras. A cena mais marcante foi quando perguntei o que ele fazia nas horas vagas. O João puxou uma pastinha com certificados e folhas repletas de nomes de empresas e pessoas. Ele pedia emprego nas horas vagas e guardava todas os contatos – revela Silva.
João foi contratado por uma empresa terceirizada, prestadora de serviços para o Sicredi, para uma vaga que costuma ser destinada a universitários. O contrato tem duração de nove meses. De segunda a sexta, nos períodos da tarde e da noite, João atende os associados por telefone. Silva determinou a colocação de um tutor para acompanhar o desempenho do novo colaborador. Se ele conseguir uma vaga na universidade, em 2020, será contratado em definitivo.
– No início, há um mês, foi mais complicado porque ele tinha dificuldades de socializar. Mas já está totalmente adaptado à função. Ele é um guerreiro, um diamante a ser lapidado – resume Silva.
Para complementar a renda, João dá aulas particulares de inglês nos finais de semana. Prestes a concluir o Ensino Médio, quer fazer o vestibular para Direito e ser contemplado com uma das bolsas ofertadas pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Sonha em trabalhar com direitos humanos para ajudar jovens que enfrentam a mesma situação vivenciada por ele. Esta será apenas a primeira das quatro faculdades que pretende cursar. Ainda virão Letras, História e Relações Internacionais. No futuro, quem sabe, pode tentar uma vaga como diplomata. João se define:
– O João é uma pessoa militante, é gay, negro e veio do gueto. É uma pessoa íntegra e de bom caráter. Tem tudo para dar certo.
Morada
Em 25 de junho, data dos 18 anos, João foi conhecer a república destinada a jovens sem vínculo familiar, mas que não têm convênio com o Estado. Acompanhado por Angelita Comelli, assistente social da Ação Social de Fé, entusiasmou-se com a possibilidade de ter um espaço sozinho pela primeira vez na vida.
A casa de alvenaria, localizada no bairro Mario Quintana, dispunha de dois quartos, mas havia a chance de, às pressas, montarem um terceiro com paredes de madeira para acomodar os poucos pertences do possível novo inquilino – roupas, calçados, um computador e os presentes recebidos dos ex-professores da escola onde ele havia cursado o Ensino Fundamental. Desde o primeiro estágio, João guardara numa conta bancária cada centavo recebido. Cauteloso, seguiu a orientação das assistentes sociais porque pensava exatamente na data em que precisaria do dinheiro.
Preocupada com a distância da república, Angelita sugeriu ao jovem a visita a uma pensão na área central de Porto Alegre, mais próxima da escola. Após conhecer o prédio de quase cem anos, que abriga visitantes esporádicos e moradores solteiros, João optou por esse endereço para recomeçar a vida.
Quatro dias depois do aniversário, ganhou bolo dos funcionários da casa-lar, com direito a velinhas e balões. Os outros integrantes da casa e dois amigos de fora do lar participaram da celebração. Na noite anterior à despedida, ele teve uma janta especial e pôde escolher o cardápio.
Em 5 de julho, quando os termômetros estavam próximos de 5ºC, João lotou de pertences a Kombi da instituição, juntou os brinquedos de pelúcia – cujos nomes homenageiam os ex-namorados –, deu a última olhada no quarto até então dividido com outros três meninos e abraçou fortemente a auxiliar de limpeza Lucilene de Lima, 50 anos. No caminho para o novo lar, João e uma das funcionárias da casa-lar foram a uma loja da região para ele escolher um tênis novo. Uma verba do Funcriança, destinada à compra de vestuário dos acolhidos, havia sido depositada à entidade. Era o último presente como institucionalizado.
Na sequência, os dois seguiram ao escritório da ONG para o jovem receber os documentos pessoais que estavam sob responsabilidade da instituição. De posse da certidão de nascimento, das cópias da identidade e do CPF, dos certificados de estudo e das avaliações escolares, João estava pronto para seguir.
— Não quero é que meus irmãos passem pelo que eu passei. Fiquei mofando até os 18 anos à espera de alguém que nunca veio. É algo desumano — comentou.
Ao chegar à pensão, ele pagou três meses adiantado e teve a ajuda de Angelita e de dois funcionários da casa-lar para subir dois andares com um roupeiro doado pela Ação Social de Fé. A mudança foi no dia em que João começou a trabalhar no novo emprego.
Sozinho
Na semana seguinte, apesar de estar motivado com o trabalho, João estranhou a solidão e o frio do quarto da pensão, que ficava próximo a uma área aberta do prédio. Sentindo dores no corpo e febre, e sem ter para quem pedir ajuda, ligou para Angelita. Ela o orientou a consultar um médico. Preocupada, tentou acompanhá-lo na mesma noite e nos dias seguintes. Porém, o jovem não aceitou o auxílio.
João decidira deixar a primeira moradia. Queria viver num espaço onde pudesse cozinhar. Mais uma vez, recorreu à casa-lar solicitando apoio para o transporte dos pertences até a zona norte, onde passou a dividir as despesas com uma amiga. Na data escolhida para se mudar pela segunda vez desde a saída da casa-lar, seus dois irmãos mais novos, de nove e 13 anos, iniciavam a própria despedida do local. Haviam sido adotados por um casal de Santa Catarina. Naquela semana passaram uma manhã ao lado dos pais adotivos, do irmão e da irmã de 16 anos. A adolescente também será adotada em definitivo, pois o processo de aproximação está em fase final.
— Sempre fui uma pessoa que acreditava não depender dos outros. Agora, que estou longe dos meus irmãos, me sinto só. Por mais que eu conviva com a minha amiga, não é a mesma coisa. Estou sempre nesta busca de alguém — desabafa.
O jovem aprovou a nova família dos irmãos e prometeu visitá-los anualmente. O maior desejo dele havia, finalmente, se realizado: os três mais novos viverão ao lado de uma mãe e de um pai. João seguirá sozinho.