Em silêncio, Vinícius Butzen da Silva, quatro anos, aproxima o ouvido esquerdo do peito do boneco Buzz Lightyear, o astronauta dos filmes de animação Toy Story, para escutar repetidamente as frases em inglês quase sussurradas pelo personagem. O gesto era o mesmo feito pelo amigo do menino, o motorista senegalês Babacar Niang, 38 anos. Nas visitas à família Silva no bairro Santa Rosa de Lima, na zona norte de Porto Alegre, Babacar esparramava pela sala a caixa do garoto repleta de personagens de desenhos animados, carrinhos e jogos. Buzz Lightyear era o favorito do senegalês.
Como não entendia inglês, ele tentava repetir as mensagens do boneco de plástico enquanto era observado pela criança. Desde 3 de junho, quando soube pelos pais que Babacar havia morrido no dia anterior, Vinícius guarda no brinquedo a lembrança de Baba, como carinhosamente chamava o parceiro de brincadeiras.
Por volta das 14h40min de 2 de junho deste ano, Babacar foi morto com um tiro na nuca e teve o corpo abandonado sobre a calçada de uma área residencial da Estrada Antônio Borges, no bairro Belém Velho, na zona sul de Porto Alegre. O carro Logan alugado por ele e usado para corridas por aplicativo foi localizado na mesma via, a menos de um quilômetro, no bairro Cascata, onde os ladrões teriam roubado outro veículo para dar continuidade à fuga.
Inicialmente apurado pelo Departamento de Homicídios, o caso passou a ser investigado como latrocínio (roubo seguido de morte) pela 19ª Delegacia de Polícia. Na sexta-feira (14), foram presos dois suspeitos do crime.
Recolhido ao Departamento Médico-Legal (DML), o corpo de Babacar só foi localizado pelo irmão por parte de pai, o pizzaiolo Ibra Niang, 30 anos, no dia seguinte. Graças à união dos integrantes da Associação dos Senegaleses de Porto Alegre e de amigos de Babacar, foi arrecadada em
48 horas a quantia necessária — e não revelada — para a realização do sepultamento do motorista no país de origem. A entidade, presidida por Mor Ndiaye, preferiu não pedir auxílio do governo local para organizar a viagem.
— O nosso conceito de família é diferente do Brasil. Para nós, todos somos família porque nascemos no mesmo país. Babacar era mais um irmão e fizemos o possível para realizar o desejo dele de voltar ao Senegal — explica Mor.
Babacar e o irmão Ibra dividiam um apartamento na Avenida Farrapos, no bairro Floresta, e haviam conversado durante o jantar, na noite de sábado (1º). Às 6h do dia 2 de junho, Babacar saiu para trabalhar e não voltou no horário do almoço, como costumava fazer nos domingos de folga do irmão.
— Fiquei esperando até 11h, mas ele não chegou. Mandei mensagem e não tive retorno. Tentei ligar direto no telefone, mas estava desligado. Comecei a ficar triste. Sempre que ele vai mais longe, me avisa. Nunca saiu sem avisar — recorda o pizzaiolo.
Um mês antes de ser vítima de latrocínio, Babacar havia sido assaltado em Alvorada e teve o carro roubado durante uma corrida por aplicativo, na madrugada. Com a ajuda de moradores locais, chamou o irmão e acionou a polícia. A partir deste episódio, passou a trabalhar somente durante o dia. Naquele 2 de junho, preocupado com o sumiço do irmão, Ibra começou a ligar para os hospitais da região e para a lista de amigos conquistados pelo senegalês nos últimos cinco anos, desde a chegada ao Brasil. Mas percebeu o pior quando não teve nenhum dos retornos previstos.
Por meio das redes sociais, a notícia da morte de Babacar chegou a Caxias do Sul, Nova Araçá, Nova Bassano e Capivari do Sul, cidades gaúchas onde ele viveu e trabalhou antes de se instalar em Porto Alegre, em outubro de 2018. As mensagens deixadas no Facebook, até de passageiros que utilizaram os serviços dele de transporte nas últimas semanas, comprovam que o senegalês costurou em solo gaúcho uma colcha de amizades. "Na sexta-feira, ele me levou ao trabalho pela manhã. Babacar Niang... um nome difícil de esquecer. ... Conversamos sobre o Senegal, sobre o passado e sobre seu trabalho atual. Ao descer do carro, apertei sua mão e lhe desejei toda a sorte do mundo. Foi uma amizade de 15 minutos... Educado, muito calmo, de extrema delicadeza e trabalhador, Babacar me fez pensar. Antes mesmo de saber de sua partida, me pôs a refletir sobre o significado de deixar outra vez a África, e abalar-se a outro continente em busca de melhores condições financeiras. Descanse em paz, Babacar", escreveu o músico e compositor Jonas Lewis, que conheceu o senegalês durante uma corrida pelo aplicativo, dois dias antes do latrocínio.
— Não tem o que falar de ruim dele. Era uma pessoa sociável, que gostava de conversar e de fazer amigos — confirma Ibra.
— Quando não estava trabalhando, ficava no WhatsApp falando com a família no Senegal. Sentia muita saudade — completa.
Babacar deixou a mulher grávida no Senegal e não conheceu a filha pessoalmente
De religião islâmica, Babacar nasceu na comunidade de Watef, distante 150 quilômetros da capital do Senegal, Dacar, foi alfabetizado a partir do Alcorão, como todos os familiares, e não frequentou escolas com ensino tradicional. Ao cruzar o oceano Atlântico, em 2014, despediu-se dos pais, dos cinco irmãos, da mulher, Aida Beye, e do futuro filho, ainda em gestação, sem saber a data de regresso. Era pelo bebê que o senegalês decidira deixar a terra natal para tentar junto com o irmão, que estava no Rio Grande do Sul desde o ano anterior, melhorar a condição financeira da família.
Nos dois meses iniciais, o senegalês morou com Ibra em Caxias do Sul. Sem conseguir um emprego fixo e enfrentando situações de racismo, foi trabalhar no abate de frangos num frigorífico de Nova Araçá. O corretor de imóveis Maciel Pigozzo relata que Babacar e outros quatro senegaleses o procuraram para alugar um apartamento em Nova Bassano, cidade de colonização italiana, de 8,8 mil habitantes e localizada a 10 quilômetros de distância da cidade onde os imigrantes trabalhavam.
— Ele tinha uma certa vergonha no olhar, mas vestia sempre um sorriso com tranquilidade. Era o que mais falava, uma espécie de líder nato. Como gosto de fazer brincadeiras, aos poucos, nos tornamos amigos — relembra, emocionado, Pigozzo.
Era uma pessoa abençoada. Não merecia ter terminado sua vida assim.
JULIANO BORGES
Ex-colega no supermercado
O único pedido do grupo era por privacidade, pois seus integrantes queriam sair do alojamento dividido com outros funcionários. Mesmo sabendo que eles não teriam um fiador com imóveis, uma das exigências da imobiliária, Pigozzo aceitou amparar os imigrantes e tornou-se porta-voz deles na comunidade que insistia em olhar com estranhamento as roupas coloridas e tradicionais no Senegal usadas pelos amigos. Depois de se mudarem para um apartamento sem quartos para todos, eles receberam a oferta de uma morada com espaço para os cinco. Babacar e os colegas se adaptaram com facilidade, como rememora o corretor de imóveis, ao contrário dos próprios vizinhos, que chegaram a procurá-lo para expulsá-los.
— Tive inúmeros problemas com a vizinhança, que perguntava por que eu havia "colocado aquela gente" no prédio. Reclamavam que eles faziam barulho às 4h30min. Expliquei que era o horário de saída para o trabalho no frigorífico. Conseguia ler nos olhos desconfiados do Babacar que ele só queria ser querido pelas pessoas — relata Pigozzo, que soube da morte do amigo também por meio das redes sociais.
O Baba mostrava com orgulho as novas fotos da filhinha. O sonho dele era voltar para casa e rever a família. Trabalhava muito para mandar dinheiro para eles.
GREICE DE FREITAS FOGAÇA
Autônoma de 24 anos, amiga de Babacar
Nos três anos em que viveu na serra gaúcha, amigos atestam o esforço de Babacar para suportar a falta de empatia daqueles que não concordavam com a presença dele e dos demais imigrantes. Caseiro, não frequentava festas na região. Se estivesse de folga, preferia conversar com a família pelo WhatsApp. Foi pelo aplicativo que ele conheceu a filha Sokhuna Mai, cinco anos completados há dois meses, e trocava diariamente mensagens, fotos e promessas de se encontrarem.
Nova chance em Capivari do Sul
Demitido do frigorífico no segundo semestre de 2017, Babacar transferiu-se para Capivari do Sul, a 78 quilômetros de Porto Alegre. O convite partiu de um primo que tinha o mesmo nome, morava na cidade e trabalhava num restaurante. Foi ele quem o apresentou ao dono de um supermercado local. Contratado como repositor, entre tantos novos amigos, conheceu a então auxiliar de caixa Greicy Kely Butzen, 28 anos, e o repositor Anderson Matos da Silva, 32 anos, pais do pequeno Vinícius.
— No início, tínhamos muita dificuldade para entender o que ele falava porque ficava tímido ao não conseguir pronunciar algumas palavras. Mas era uma pessoa muito esforçada. Ele queria mudar a vida da família — descreve Greicy, com os olhos marejados.
Dispostos a se aproximarem do novo integrante da equipe do supermercado, o casal e outros colegas organizaram um churrasco para Babacar. Apesar de não comer carne de gado e de porco e seus derivados, ele tinha curiosidade de conhecer a comida típica dos gaúchos. Prepararam frango assado na brasa. Aquela noite na casa dos Silva foi regada a cerveja, mas o convidado preferiu refrigerante. Ele não consumia bebidas alcoólicas e fazia questão de salientar aos amigos que era em respeito ao pai dele — para a surpresa de todos.
Ele ainda tinha dificuldades com a nossa língua, mas estava sempre disposto a aprender mais. Os colegas do mercado se tornaram a segunda família dele.
RENAN DA SILVA MATTOS
Promotor de vendas, ex-colega de Babacar
Como retribuição pelo carinho dos colegas, no mês seguinte, Babacar ofereceu um jantar típico senegalês. E o desejo de apresentar a própria cultura era tanto que ele precisou ir a Porto Alegre buscar um dos ingredientes do mafé, um cozido de carnes com legumes e pasta de amendoim. Como não estava habituada ao pitoresco cardápio, Greicy confessa ter levado na bolsa dois pacotes de massa instantânea, para o caso de não aprovar a iguaria. Surpreendidos pelo sabor único, os convidados gaúchos repetiram os pratos e a panela ficou vazia, para alegria de Babacar. Em todas as reuniões dos colegas, ele expressava o desejo de conseguir economizar o suficiente para rever a família no Senegal.
Uma das características de Babacar indicada por todos os ex-colegas do supermercado era a disposição para ajudar. O maior exemplo ocorreu em junho do ano passado, durante o Ramadã (período do ano em que os muçulmanos jejuam do amanhecer ao anoitecer para uma maior aproximação com Deus). Mesmo se alimentando apenas duas vezes durante a noite, o senegalês fez questão de ajudar Anderson na mudança da família. Fraco, esperou até o anoitecer para degustar o sanduíche e o café oferecidos por Greicy. Comeu o pão seco até ser orientado a incluir o queijo, o presunto e a maionese dentro dele.
Era uma pessoa humilde. Sempre que vinha a Capivari ia no mercado nos ver."
CÁTIA NUNES DA CONCEIÇÃO
Auxiliar de padaria que trabalhou com Babacar
No segundo semestre do ano passado, o senegalês foi demitido do supermercado, que havia mudado de proprietário, e passou a trabalhar com o primo na padaria recém aberta por ele na cidade.
O negócio, que cambaleava por conta da falta de clientes, fechou as portas quando o primo adoeceu e retornou ao Senegal. Sem emprego, Babacar desistiu de Capivari do Sul e mudou-se para Porto Alegre, onde Ibra vivia desde 2016. A meta do senegalês era se tornar caminhoneiro. Para isso, investiu parte das economias na carteira de habilitação.
Sem conseguir a vaga almejada e precisando enviar dinheiro para a família, Babacar ouviu o conselho do primo Bara Ndiaye, 28 anos, para trabalhar com os aplicativos. Bara, que já atuava na função, indicou uma locadora de automóveis e auxiliou o senegalês nas primeiras corridas.
— Era meu melhor amigo. Até na hora da oração a gente se reunia. Quando o Baba fazia arroz com feijão, me chamava para almoçar porque ele gostava de cozinhar — conta Bara.
Apesar da distância, Babacar jamais esqueceu Capivari do Sul. Nas folgas, tirava algumas horas para reencontrar os amigos deixados na cidade. Da Capital, enviava mensagens a eles dizendo que estava feliz no novo emprego, como lembra o promotor de vendas Renan da Silva Mattos, 24 anos, ex-colega no supermercado.
Um mês depois da vinda de Babacar para Porto Alegre, os Silva também tiveram o mesmo destino e se estabeleceram na Zona Norte. Era comum receberem a visita do senegalês nos intervalos das corridas. E ele sempre tirava uns minutos para brincar com Vinícius. Anderson acredita que o amigo senegalês tenha se apegado ao filho do casal por ele ter a mesma idade de Sokhuna Mai. A saudade da filha, que nem chegou a abraçar, era saciada nas brincadeiras com o menino e o boneco Buzz Lightyear, cuja frase mais repetida em inglês é "para o alto... e além", que se tornou famosa entre os fãs dos filmes. O último encontro dos amigos ocorreu 20 dias antes da morte do motorista.
Ao ter o corpo reconhecido pelo irmão no DML, Babacar se tornou o terceiro senegalês a morrer em 30 dias no Estado. As outras mortes ocorreram devido a doenças e os corpos tiveram como destino final o Senegal, também com a ajuda dos demais senegaleses que vivem no Brasil. Na última contagem, feita em 2017 pela associação, cerca de 10 mil residiam no país. Destes, 4,5 mil estavam no Rio Grande do Sul. No caso do traslado e sepultamento de Babacar, foi a própria funerária São Pedro, em contato com a Embaixada do Senegal, quem providenciou a documentação.
Dois dias depois do crime, o corpo de Babacar foi levado para a funerária. A princípio, não haveria cerimônia de despedida e o féretro aguardaria até a data de embarque. Consternado com a situação, porém, o diretor funerário, Günter Kannenberg, permitiu a Ibra e a outros amigos próximos o adeus simbólico. Uma área perto do laboratório do lugar foi preparada para o momento íntimo de cerca de duas horas. Por conta da distância e do horário de trabalho, os Silva não conseguiram estar presentes.
Decidido a acompanhar o irmão morto até o Senegal, Ibra embarcou na noite de 6 de junho. Para não precisar passar pela alfândega na Europa, onde precisaria ter visto de trânsito, ele foi direto ao Marrocos e, na sequência, aguardaria a chegada do corpo do irmão em Dacar. O sepultamento estava marcado para o dia 9, no cemitério Bakhiya, na cidade de Touba.
O embarque do esquife em Porto Alegre ocorreu na noite de 7 de junho. Horas antes, dezenas de motoristas de aplicativos realizaram um cortejo fúnebre pelas ruas da cidade, acompanhando o carro da funerária do bairro Medianeira até o Aeroporto Internacional Salgado Filho. Durante a despedida, organizada pela Associação Liga dos Motoristas de Aplicativos do Rio Grande do Sul (Alma) e que contou com o apoio de outras entidades da classe, colegas de trabalho pararam os veículos na Avenida Carlos Gomes, em frente à sede da Uber.
Enquanto parte buzinava, outro grupo, acompanhado de amigos e parentes senegaleses da vítima, entrou no prédio e colocou faixas e balões pretos no corrimão de entrada e sobre o balcão da recepção, como forma de protesto. Por meio de nota, a Uber informou que está colaborando com a investigação da Polícia Civil e entrou em contato com "familiares para oferecer apoio e o acionamento do seguro que protege as viagens realizadas com o aplicativo".
Na chegada ao Terminal de Cargas Internacional (TECA) do aeroporto, uma cena levou às lágrimas até a responsável pelo portão de entrada. Ao redor do caixão revestido com uma urna de zinco e uma caixa de madeira, 40 senegaleses e dezenas de brasileiros se ajoelharam e oraram em silêncio.
Perto das 15h30min, a urna foi inspecionada, selada, lacrada e encaminhada para aguardar o embarque. Às 20h30min, horário inicial do voo, Greicy, Anderson e o filho Vinicius, com Buzz Lightyear nas mãos, posicionaram-se no portão de casa. Quando o avião da companhia cruzou baixinho o céu sobre o bairro Santa Rosa, a família fez uma oração e despediu-se do amigo. Babacar estava voltando para casa.