Esta reportagem está dividida em cinco partes. Clique nos links abaixo para ler as demais:
Parte 1: como o ex-padre italiano Meneghetti ergueu um império no interior do RS
Parte 2: ontopsicologia "oscila entre a pseudociência e o exorcismo", disse a imprensa da Itália
Parte 3: Meneghetti prometia curar o câncer em três sessões de ontopsicologia
Parte 4: como Meneghetti virou guru de grandes empresários brasileiros
Na entrevista concedida dias antes de morrer, ao lhe perguntarem como se definia, Antonio Meneghetti respondeu:
— Cientista.
Quando se menciona a falta de reconhecimento externo à ontospicologia, Patrícia Wazlawick reage:
— A ontopsicologia não precisa ser reconhecida como ciência porque já é uma ciência. Todas essas críticas de que você fala vêm de quem? São pessoas que muitas vezes não leram um livro de ontopsicologia. Sabe o que é fake news? É isso. Pessoas que nunca leram, nunca estudaram, e que falam coisas de modo pejorativo. Para quê? Para criticar simplesmente. Não é nem fazer a crítica, porque fazer a crítica é fazer verificação. Onde estão essas críticas?
Elas podem ser encontradas, por exemplo, no Instituto Questão de Ciência, fundação criada para “apontar e corrigir a falsificação e a distorção do conhecimento científico na arena pública”. A pedido de GaúchZH, um dos fundadores do instituto, o biólogo Paulo Almeida, debruçou-se sobre os postulados da ontopsicologia:
— Quanto mais eu lia, mais eu ficava assustado.
Almeida fez um levantamento nos principais repositórios internacionais de pesquisa acadêmica qualificada, que indexam jornais e revistas científicos, permitindo saber que estudos atenderam a critérios de qualidade para publicação – e também quantas vezes eles foram citados em outros artigos, um importante indicador de relevância. Nessa busca, não apareceu nada sobre ontopsicologia.
Essa ausência não surpreendeu, já que, diz Almeida, a ontopsicologia não preenche os requisitos mínimos para credenciar-se como conhecimento científico. Mesmo na área das humanas – onde a ontopsicologia poderia inserir-se –, há a exigência de metodologias, de experimentos que possam ser replicados, de medições, de métricas, de conexão com outros campos de estudo.
Por exemplo, para afirmar a existência da tríade em si ôntico, campo semântico e monitor de deflexão, Meneghetti e seus seguidores deveriam ter delineado experimentos científicos que os comprovassem. Isso nunca aconteceu. Almeida afirma:
— Não ter isso é uma falha brutal. Essa tríade é um misto de esoterismo e fenomenologia bem rasa, pois não conta com o rigor conceitual da filosofia.
O diretor do Questão de Ciência associa a inexistência dessas bases científicas à presença, no mundo da ontopsicologia, de elementos que a aproximam de uma proposição de fé. Existiriam as condições para o estabelecimento de um texto sagrado, de um culto e de um líder espiritual – figura única considerada referência absoluta, máxima e inquestionável.
Outra prática típica dos cultos seria a sugestão, que Meneghetti oferecia em seus escritos, para que as pessoas se isolem das famílias:
– O que isso quer dizer implicitamente é o seguinte: fuja da esfera de influência das pessoas que poderão dizer que o que você está fazendo é maluquice. Você passa a viver dentro de um meio onde todo mundo reforça mutuamente um circuito de ideias.
Desmentido da universidade russa
Além do Brasil, a Rússia representou uma frente onde Meneghetti cavou espaços. Consta que, ainda nos anos 1960, o psicólogo soviético B. G. Ananyev já trabalhava em uma nova disciplina, dedicada ao desenvolvimento da personalidade, a que chamava ontopsicologia. Em 1983, um discípulo dele, Boris Fedorovich Lomov, deparou com um livro de Meneghetti em Moscou. Professor da Universidade Estatal de Leningrado (atual Universidade Estatal de São Petersburgo), Lomov conheceu o italiano seis anos depois, em um congresso de Psicologia na Holanda. É a partir desse contato que surge o convite para Meneghetti viajar a Moscou e Leningrado, em 1989. A viagem rendeu conferências, contatos e parcerias. Foi quando o italiano assinou um termo de cooperação com a Faculdade de Psicologia da Universidade Estatal.
Relacionado a esse acordo, um curso de especialização em ontopsicologia foi criado em 1998, e, em 2000, chegou a primeira turma de brasileiros, com 30 integrantes. Desde então, houve vários grupos. Orientado por Alexander Ostrovsky, Cláudio Carrara apresentou monografia sobre “Mentalidade do empreendedor como fator de sucesso econômico”. Sob a tutela de Natalia Grishina, Roberto Argenta defendeu o trabalho “Mudança da cultura organizacional: a formação de competências competitivas”.
A jornalista Clarissa Miranda, que trabalha para a Fundação e ciceroneou ZH durante a visita ao Recanto, diz que é oferecida aos alunos a possibilidade de obter simultaneamente um diploma brasileiro e outro russo. Ela própria, entre 2011 e 2014, alcançou com a monografia “A Linguagem Não Verbal no Jornalista de TV: Um Estudo de Caso”, títulos de especialização da AMF e da Universidade de São Petersburgo.
— Tem de fazer os módulos na Rússia para obter o diploma de lá. Fui umas três vezes para São Petersburgo e tive minha tese traduzida para o russo. As aulas eram para um grupo de brasileiros. Do lado do professor tinha sempre uma tradutora, que fazia a tradução simultânea — conta.
Essa especialização é citada com frequência no Recanto Maestro, apresentada como evidência de que a ontopsicologia tem relevância internacional e é aceita por uma universidade reputada. No site da AMF, há uma aba sobre “ontopsicologia no mundo” em que o destaque é dado ao curso da instituição russa. Ao lado de uma foto de um prédio imponente em estilo barroco petrino, lê-se: “Uma das universidades mais tradicionais e prestigiadas da Rússia, a Universidade Estatal de São Petersburgo oferece pós-graduação em Ontopsicologia, com cursos de especialização e mestrado. O curso de graduação em Psicologia também inclui cadeiras de Ontopsicologia, a partir da instalação, em 2004, da Cátedra de Ontopsicologia nesta universidade”.
Na entrevista que deu semanas antes de morrer, Meneghetti também aludiu à parceria:
— Se a grande e famosa Universidade de São Petersburgo quis fazer um protocoloco de intenção com a Antonio Meneghetti Faculdade, é para honrar a si mesma.
GaúchaZH entrou em contato com a universidade russa. O setor de comunicação disse que a Universidade Estatal de São Petersburgo cooperou com associações ontopsicológicas no passado, mas sem oferecer aulas dessa disciplina em suas dependências, tendo posto fim a tal cooperação após concluir que se tratava de algo “cientificamente insensato”. Segue o comunicado encaminhado a GaúchaZH pela chefe do serviço de imprensa, Polina Vyacheslavovna Ogorodnikova: “Atualmente não existe um departamento de ontopsicologia na Universidade de São Petersburgo. Algum tempo atrás, um grupo de brasileiros estudou em nossa universidade. Sua formação foi limitada a disciplinas gerais de psicologia, a currículos relevantes e a programas educacionais. A formação especializada em ontopsicologia foi realizada não dentro da universidade, mas através das associações com as quais a universidade cooperou na época. Em 2015-2016, especialistas da universidade realizaram uma análise científica aprofundada das atividades da ontopsicologia. A continuidade da cooperação com as associações de ontopsicologia e o apoio às atividades nessa área foram consideradas cientificamente insensatas e pouco promissoras. Desde 2016, o departamento de ontopsicologia da universidade não existe mais. Atualmente, não há na Universidade de São Petersburgo contatos e projetos em andamento com as associações de ontopsicologia.”
Desde que visitou o Recanto Maestro, em novembro, GaúchaZH vem solicitando à AMF e à Fundação entrevistas institucionais. Há um mês, a Fundação solicitou que as perguntas fossem encaminhadas por e-mail. GaúchaZH repassou um questionário referente a diferentes pontos abordados. Não houve resposta.
Na tarde de quinta-feira, o advogado Jader Marques, que nos últimos dias foi designado pela Fundação e pela AMF para tratar com GaúchaZH, enviou relatórios sobre os projetos da Fundação referentes a 2017 e 2018, uma compilação de reportagens e postagens nas redes sociais sobre a faculdade (reforçando que o MEC concedeu nota máxima ao curso de ontopsicologia) e um texto assinado por Alécio Vidor, antigo aluno de Meneghetti e professor da AMF, ao qual foram anexadas cópias de diplomas do próprio Vidor. Diz o texto: “Considero inadequado basear informações em frases soltas, escritas em livros lidos de maneira superficial. Uma ciência nova merece o respeito diante de pessoas que estudam e conhecem a ontopsicologia! Não entendo que o conteúdo da ontopsicologia possa relatar em jornais o que foi escrito em mais de 40 livros. Para um jornalista pode ser útil o conhecimento da ciência, antes de fazer críticas e emitir juízos descabidos sem o conhecimento dos fatos. Acusações feitas a fatos ocorridos na Rússia ou na Itália são falsos”.
A ausência de Antonio Meneghetti
Passados seis anos da data da morte – 20 de maio de 2013 –, circulam até hoje na região central do Estado teorias segundo as quais Antonio Meneghetti não morreu. Teria sido tudo uma encenação.
— Eu me pergunto: como é que nasce uma coisa dessas? Não tem como forjar um negócio assim. Mas essas lendas sempre se criaram em torno do Recanto, então a gente está acostumado — resigna-se o empresário Claudio Carrara.
Meneghetti passou os últimos dias no Hospital de Caridade São Roque, em Faxinal do Soturno, onde foi vencido pela doença que considerava a mais fácil de tratar: câncer. Flávio Stona, administrador da instituição, atesta que ele morreu mesmo:
— Eu estava ali no dia da morte, dei toda a assessoria aos familiares. Inclusive ajudei a colocar o corpo no caixão.
É possível que a lenda da morte encenada tenha surgido justamente por Meneghetti ter sido velado e cremado em São Paulo, a mais de mil quilômetros de distância, longe dos olhos da comunidade onde convivia.
Segundo Carrara, o funeral foi realizado em São Paulo porque facilitava o deslocamento das pessoas de várias partes do mundo que queriam se despedir. O empresário, que se fez presente, diz que veio muita gente de fora, até da Rússia. O ex-vice-governador Vicente Bogo fornece uma explicação diferente: de acordo com ele, os atos fúnebres foram longe do Recanto Maestro para que menos pessoas estivessem presentes:
— O professor Meneghetti tinha concluído sua obra e alertou que o tempo dele estava acabando. Fez toda a distribuição de aspectos remanescentes, como quando a gente lava louça e arruma tudo para ir dormir. Deixou tudo organizado. Podia ter escolhido morrer na Itália, na Rússia, em qualque dos vários centros de estudos que criou, mas escolheu o Recanto Maestro. O funeral foi em São Paulo, com a meia dúzia mais próxima, porque ele não quis aquela coisa de cortejo, de idolatria, de gerar comoção. Resolveu, como nasceu simples, morrer simples. Percebeu que a contribuição dele à humanidade não podia se confundir com a idolatria pessoal. Isso é um sinal de pessoas superiores. Pessoas superiores não procuram destaque, nem na morte.