Esta reportagem está dividida em cinco partes. Clique nos links abaixo para ler as demais:
Parte 1: como o ex-padre italiano Meneghetti ergueu um império no interior do RS
Parte 2: ontopsicologia "oscila entre a pseudociência e o exorcismo", disse a imprensa da Itália
Parte 4: como Meneghetti virou guru de grandes empresários brasileiros
Parte final: universidade russa diz que ontopsicologia é "cientificamente insensata"
Em 14 de novembro de 2009, no Recanto Maestro, Antonio Meneghetti proferiu uma conferência em que anunciou ter descoberto a causa do câncer e garantiu sua cura pela ontopsicologia. Conforme a Associação Brasileira de Ontopsicologia, estavam na plateia 300 médicos e autoridades – como o então secretário estadual de Ciência e Tecnologia, Artur Lorentz, e o diretor-geral do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm) à época, Jorge Palma Freire. Lorentz faz hoje um MBA na Antonio Meneghetti Faculdade. Palma Freire estudou na instituição.
A partir de sua experiência com psicoterapia – “10 anos de atividade clínica, 12 horas por dia, com pacientes de todos os tipos” –, Meneghetti teria entendido como surgem as doenças e como curá-las. No Manual de Ontopsicologia, relata os atendimentos: “O cliente vinha como sobra rejeitada pela medicina ou pelas outras psicoterapias ou de tentativas parapsíquicas, com as costumeiras afecções crônicas da psicossomática (hemicrania, impotência, cefaleias, insônia, incubações tumorais, estresse, infarto etc). Fingia ouvi-lo, como se o seu mal fosse novo para mim, e após quatro ou cinco entrevistas, com sua total permissão, extraía um invisível bisturi e operava a sangue no interior das sua ideias, das suas tradições, da sua moral, dos seus pontos inquebráveis”.
Em diferentes obras, o italiano aponta um dedo acusador à família. No Manual de Ontopsicologia, diz que ela é a “matriz-base de qualquer involução do sujeito”. Nas Lições de Leningrado, menciona um suposto efeito maléfico dos pais sobre a saúde dos filhos: “Sempre notei que todos os jovens que conseguiam se afastar da família, da mãe, se curavam imediatamente, e são os mesmos que ocupam hoje cargos de líderes”.
Meneghetti insistia na origem psíquica de todos os males de saúde – a chamada psicossomática –, garantindo categoricamente que fatores externos (como vírus ou infecções) não incidem sobre o organismo humano se isso não estiver previsto “pela seleção temática preexistente no sujeito”. A conferência de 2009 foi publicada, no ano seguinte, em uma revista médica chinesa, o Journal of Chinese Clinical Medicine, sob o título “A Psicossomática do Câncer”, que diz: “Tratar o câncer é a coisa mais fácil que existe. Tudo o que é preciso são três sessões. Por câncer, entendo toda a esfera patológica geral, incluindo a aids”. O italiano morreu em decorrência de um câncer de fígado, em 2013, aos 77 anos.
Vicente Bogo revela que assistiu à conferência e que não seriam três sessões exatamente, mas “quatro a seis”. Diz que “é importante compreender o sentido de cada palavra”:
— Ontopsicologia não é uma ciência de fácil compreensão para o grande público. O que o professor Meneghetti estava explicando é que, se há uma fenomenologia, como por exemplo a doença, e for ao mundo das causas, vai encontrar uma causa primeira, cujo fundamento está no campo da psique. Quando ele trata da medicina, está tratando de temas profundos. Não é fácil, não dá para um cidadão comum querer entender essas coisas, e mesmo alguns que fizeram faculdade, se não estudaram sério, não vão entender.
O biólogo Paulo Almeida, do Instituto Questão de Ciência, critica:
— Ser formado dentro da crença de que o HIV não é transmitido sexualmente, de que o câncer é curável em três sessões e de que se pode explicar a vida e o universo a partir dos textos de um grande guru iluminado expõe as pessoas a muitos riscos.
GaúchaZH consultou o Conselho Regional de Medicina (Cremers) sobre as posições de Meneghetti. A entidade encaminhou uma nota, em que também aborda o iminente reconhecimento do bacharelado em ontopsicologia pelo Ministério da Educação: “O Cremers reconhece como práticas de atendimento aquelas que seguem o método científico. Como a ontopsicologia não tem base em evidências, o conselho é contrário a sua prática, pois não se tem segurança no seu uso. Enquanto órgão de fiscalização e proteção da sociedade, preocupamo-nos com o reconhecimento de um curso em que um dos seus pressupostos básicos é que a origem de todas as doenças, inclusive infecciosas e neoplasias, é psicossomática, com curas baseadas apenas em tratamentos não convencionais (...) Pacientes devem ser tratados por profissionais habilitados, com os rigores da ciência e do conhecimento atual”.
Empresários e beneméritos
Eleito pelos gaúchos vice-governador em 1994, Vicente Bogo conta ter sido apresentado ao Recanto Maestro por Roberto Argenta. Presidente da Calçados Beira Rio (empresa com uma dezena de fábricas e 10 mil empregados), Argenta foi vereador e prefeito de Igrejinha e exerceu mandato como deputado federal entre 1999 e 2003. Ex-presidente e atual integrante do conselho da Fundação Antonio Meneghetti, ele é o responsável pela construção do Hotel Business Center Beira Rio. No momento, investe em uma nova torre do hotel e em uma estação de águas termais.
Também é um benemérito. Na Casa do Estudante da Antonio Meneghetti Faculdade, uma placa de metal na parede informa que a obra foi patrocinada pela Beira Rio. A residência estudantil funciona em dois prédios, um para homens e outro para mulheres, em um total de 108 vagas.
A Casa do Estudante representa uma amostra modesta da generosidade de Argenta. Uma disputa judicial iniciada em 2014 revelou que ele chegou a doar à fundação 28,67% das ações da Beira Rio, o equivalente, na época, a R$ 170 milhões. O processo havia sido aberto por outro grande empresário do setor, Alexandre Grendene, sócio minoritário da Beira Rio, que contestava o presente.
Entre os documentos públicos da disputa judicial, disponível no site do Tribunal de Justiça, está uma decisão que menciona a “peculiaridade de o sócio Roberto Argenta, detentor da maioria das ações da companhia, em reunião privada, promover a transferência de 1.433.334 ações ordinárias à fundação de que é presidente e cuja finalidade é promover a ontopsicologia, disciplina desconhecida, mas flagrantemente não relacionada com o objeto social da Calçados Beira Rio”. O litígio chegou ao fim em novembro de 2015, quando a Justiça homologou um acordo entre os dois empresários. GaúchaZH tentou falar com ambos, mas não teve sucesso.
Em 2017, Argenta concedeu uma entrevista de 11 páginas à revista Performance Líder, publicada pela Ontopsicológica Editora Universitária. Afirmou ter dois amores na vida, a Beira Rio e o Recanto Maestro:
— Trabalhar e ver essas duas potências se desenvolverem faz parte do meu cotidiano e sempre me envolvi inteiramente para fazer crescerem esses dois amores.
Hermes Gazzolla, que já apareceu na lista de bilionários da revista Forbes, contribuiu para a construção do Centro Esportivo, apoio saudado em uma placa afixada no complexo. Por meio de sua assessoria, o empresário comunicou que não daria entrevista, por preferir manter um perfil discreto.
Um dos entusiastas mais citados no distrito é Claudio Carrara, do Grupo Meta, empresa de software com 11 unidades no Brasil e no Exterior, uma delas no Recanto. Das 100 pessoas que trabalham lá, cerca de metade é de alunos ou ex-alunos da Antonio Meneghetti Faculdade. Inaugurada em 2013, a unidade resultou de um investimento de R$ 5 milhões.
— É um investimento de longo prazo, que se paga em 10 anos. Sempre tivemos a estratégia de estar perto das universidades — afirma Carrara.
Ele tem casa no Recanto, leciona na AMF, é conselheiro da Fundação e coordena iniciativas artísticas, como a orquestra jovem. Relaciona o sucesso da ontopsicologia entre o empresariado ao desejo de deixar um legado e de contribuir para uma sociedade melhor. O principal atrativo para ele foi o que descreve como “uma abordagem integral da pessoa”, o que associa ao resgate do estilo clássico de formação, em que o indivíduo se familiariza com variadas áreas do conhecimento, e não apenas com sua especialidade profissional.
Entre os pequenos empreendedores do Recanto, está a catarinense Iara Sperotto, 55 anos, que administra a cantina da faculdade e o mercadinho do distrito. Ela atribui à ontopsicologia o fato de ter criado uma fábrica de tintas industriais, em 2000, numa época em que sofria de depressão:
— Minha vida era vazia. Fazia inglês, natação, mas não completava. Depois de vir para cá, percebi que um dia, mais tarde, ia olhar para trás e pensar: “O que eu fiz da minha vida?”. Ao criar a empresa, a depressão passou, porque eu não tive mais tempo para aquilo.
Seis anos atrás, Meneghetti chamou-a para que assumisse a cantina. Na época, ela havia vendido a fábrica de tintas e estava em uma boa situação econômica. Resistiu à proposta, porque não entendia de café. Meneghetti insistiu: “Vai lá e aprende”. Convencida, Iara deixou o marido em Santa Catarina e veio para o Recanto, arranjo que persiste desde o começo de 2013. Diz que nem pensou na distância, só em construir algo para si:
— A ciência diz que se você está bem, o teu marido e a tua família vão estar bem. O relacionamento diferente com meu marido tem a ver com a ontopsicologia, porque, quando você vai mudando, vê que não precisa estar junto 100% do tempo. Continuamos bem casados. Em livro nenhum o professor fala que tem de se separar.
Quem está no comando?
A principal instituição no empreendimento é a Fundação Antonio Meneghetti, presidida durante vários anos por Roberto Argenta. Na quinta-feira, a Fundação encaminhou declaração para dizer que Argenta “não integra há muito tempo qualquer conselho ou posição de direção” e uma ata, de 25 de fevereiro de 2017, que trata da renúncia dele à presidência do conselho deliberativo da entidade, sendo substituído pelo empresário Ari Foletto – que, em balanço da Fundação, publicado em 30 de abril no Diario de Santa Maria, é apresentado como diretor-presidente. Apesar da declaração, Argenta é citado como conselheiro no relatório de projetos da fundação referente a 2018 e em postagem da instituição feita em novembro numa rede social.
Além do deliberativo, a AMF tem mais dois conselhos: diretor e fiscal. Entre os conselheiros listados, estão Patrícia Wazlawick, Claudio Carrara, Helena Biasotto (que dirige a AMF ), Almir Foletto (empresário do agronegócio) e Ricardo Schaefer (jornalista e professor).
Conforme a Receita Federal e a Junta Comercial, a fundação é sócia de três empresas, a Foil, a Agroturismo Recanto e a Oniotan. A Foil é a mantenedora da AMF e tem um capital social de R$ 2,35 milhões. A fundação detém 91,55% das ações. Os demais sócios são Wesley Lacerda (0,77%) e dois docentes da AMF: Josiane Barbieri (0,68%) e Erico de Lima Azevedo (7%).
A Agroturismo Recanto inclui na sociedade Almir Foletto e Argenta. A Oniotan é uma empresa de construção e negócios imobiliários, entre outras atividades. Na descrição de Carrara, seria quem constrói, cuida dos terrenos e administra os condomínios do Recanto. Com capital social de R$ 2.941.281, pertence quase integralmente à fundação.