Esta reportagem está dividida em cinco partes. Clique nos links abaixo para ler as demais:
Parte 1: como o ex-padre italiano Meneghetti ergueu um império no interior do RS
Parte 3: Meneghetti prometia curar o câncer em três sessões de ontopsicologia
Parte 4: como Meneghetti virou guru de grandes empresários brasileiros
Parte final: universidade russa diz que ontopsicologia é "cientificamente insensata"
Antonio Meneghetti nasceu em Avezzano, a 100 quilômetros de Roma, em 1936. Viveu o drama da guerra na infância, entrou para o seminário na adolescência e ordenou-se frade franciscano aos 25 anos. Em seu currículo, diz ter obtido três doutorados – em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais – entre 1964 e 1969, em instituições da Igreja. Em 1972, abandonou o sacerdócio. Casou-se com uma ex-freira, Loretta Lorenzini, de quem se separaria em 1996.
Criou a ontopsicologia no começo da década de 1970, quando lecionava na Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino. No meio ontopsicológico, considera-se que Meneghetti realizou três grandes “descobertas”: o em si ôntico (uma espécie de energia ou alma, que representaria o projeto da natureza para cada indivíduo), o campo semântico (uma forma de comunicação que ocorreria entre as pessoas sem elas perceberem) e o monitor de deflexão (um dispositivo cerebral que distorceria a realidade, produzindo efeitos como doença, dor, angústia e falência socioeconômica).
Com base nesse tripé, Meneghetti produziu cerca de 50 livros (em muitos casos, transcrições de palestras), passou a oferecer psicoterapia, virou consultor de empresários e propagou ideias polêmicas, que dizia serem noções científicas. Algumas de suas concepções podem ser encontradas no livro Lições de Leningrado: Uma Introdução à Ontopsicologia, que reúne conferências proferidas em 1990 na cidade russa (atual São Petersburgo) e que foi publicado em português em 1993, em Porto Alegre, pela Associação Brasileira de Ontopsicologia.
Na obra, ele sugere, por exemplo, que as mulheres vítimas de estupro, ao que parece por ação de seu “campo semântico”, estimulam a ação do estuprador: “Frequentemente se coloca na prisão a pessoa executora de fato, porém inocente. O exemplo mais clássico está nos casos de violência sexual: quase sempre trata-se de uma mulher muito casta; com frequência o estuprador não se dá conta como pode ter realizado tal brutalidade. Na verdade, é um tipo de mulher que emana uma semântica precisa que necessita que o débil psíquico atue violentamente sobre ela”.
Prisão na Itália
Em 1981, após o jornal Paese Sera (que circulou em Roma de 1949 a 1994 e teve entre seus colaboradores Umberto Eco e Norberto Bobbio) publicar reportagens em que descrevia a ontopsicologia como uma seita que fazia jovens largarem suas famílias, a Procuradoria da República italiana prendeu Meneghetti, sua esposa (que também oferecia psicoterapia baseada na ontopsicologia) e outras pessoas por suspeita de associação criminosa, usurpação de títulos, exercício ilegal de profissão, fraude, agressão sexual e furto qualificado.
Após um mês, Meneghetti foi solto. Mais tarde, inocentado.
O jornal La Repubblica, o segundo maior da Itália, publicou em 1991 uma matéria que definia a ontopsicologia como um credo “que oscila entre a pseudociência e o exorcismo, entre a psicologia e a religião”. Segundo o texto, o juiz argumentou que, como ainda não havia regulamentação, era impossível delinear os limites entre lícito e ilícito – portanto, absolveu todo o grupo.
Em outubro daquele mesmo ano, Meneghetti estava outra vez nas manchetes por causa da morte trágica da ex-modelo e psicóloga italiana Marina Furlan, 28 anos, com quem ele havia tido um relacionamento. Ela morreu afogada durante um passeio de barco com o professor ao largo da ilha de San Pietro, na costa da Sardenha. A Justiça condenou-o a um ano e oito meses por homicídio culposo (sem intenção de matar). Ele recorreu e conseguiu baixar a pena para 10 meses de prisão. Evitou o cárcere recorrendo à riabilitazione penale, dispositivo do direito italiano que permite a um condenado que mostrou sinais de arrependimento obter a extinção dos efeitos penais.
Em 1998, o Ministério do Interior chegou a inserir a ontopsicologia em uma lista de seitas religiosas. Meneghetti interpôs um processo judicial por danos à imagem e foi indenizado em 50 milhões de liras.
Onze anos depois, a partir de informações de inteligência do governo italiano, a delegacia da Polícia Federal em Santa Maria abriu o inquérito número 0233/2009 para investigar as atividades no Brasil de Meneghetti e da fundação que leva seu nome. Essa investigação, batizada de Operação Aquila, permaneceu apenas em uma fase preliminar. O inquérito foi arquivado a pedido do Ministério Público Federal, por “considerar que se tratava de matéria a ser investigada pela Receita Federal”.
Críticas da Psicologia
No começo, a ontopsicologia era utilizada por Meneghetti como uma ferramenta psicoterapêutica – o que está na raiz de muitos dos problemas que ele teve, como a rejeição do meio científico, o escrutínio das autoridades judiciais e as denúncias feitas pela imprensa. Suas atividades foram investigadas por Gianni Del Vecchio e Stefano Pitrelli no livro Occulto Italia (2011). Um dos depoimentos coletados é o de um psicólogo que atendia em Terni, cidade localizada a cerca de 40 quilômetros de Lizori, a comunidade que funcionava como uma versão italiana do Recanto Maestro: um mundo à parte, povoado por seguidores da ontopsicologia e decorado com pinturas e esculturas da lavra de Meneghetti.
Recém-formado, o psicólogo abriu um consultório, e os pacientes começaram a aparecer em grande número. Ele logo deu-se conta de que essas pessoas eram ex-pacientes de Meneghetti, que haviam ficado órfãos quando ele interrompeu os atendimentos por causa das acusações judiciais e da prisão.
“Deixando de lado o perfil judicial do caso, confirmo as coisas que saíram no jornal. Todos aqueles pacientes apresentavam os mesmo problemas. Recordo que todos tinham uma grande dependência de Meneghetti. E que inicialmente tinham recebido o mesmo diagnóstico e a mesma terapia. O diagnóstico era simples: ‘As coisas vão mal porque você está cercado de negatividade, que é transmitida a você por seus familiares’. A terapia também: ‘Você deve se afastar da sua família’. Então Meneghetti disse que esposas deixassem seus maridos e que filhos saíssem de casa e cortassem os laços com os pais, ou que pelo menos reduzissem o contato ao mínimo”, relatou o psicólogo.
Essas polêmicas repercutiram no Brasil na década de 1990 e no início dos anos 2000, gerando alertas de Conselhos de Psicologia, que apontaram a falta de amparo científico da ontopsicologia e condenaram psicológos que ofereciam terapias baseadas nela. Em reação, a posição dos seguidores de Meneghetti é hoje a de argumentar que a psicologia não tem de se pronunciar sobre o tema, uma vez que a ontopsicologia não teria relação com a psicologia.
— Isso ficou muito bem definido quando o professor escreveu uma carta ao Conselho Federal de Psicologia, dizendo que a ontopsicologia não é uma área da psicologia, é uma ciência epistêmica, interdisciplinar, de base. Não rouba espaço do psicólogo ou do filósofo — diz Patrícia Wazlawick.
No passado, não havia preocupação em traçar uma fronteira. Do início ao fim do livro Lições de Leningrado (1990), Meneghetti sempre se refere à ontopsicologia dentro do contexto da psicologia, sem separá-las. Já a primeira edição do Manual de Ontopsicologia, de 1996, estampa na capa: “Última fronteira da psicologia contemporânea”. Nas edições mais recentes, a afirmação foi removida.
Na Itália, Meneghetti requisitou o reconhecimento da sua linha psicoterápica pelas entidades da psicologia. O livro Occulto Italia descreve uma audiência em que Meneghetti compareceu diante de comissão da Ordem dos Psicólogos de Lazio. Para atestar os títulos que dizia ter, entregou documentos em cirilico, o alfabeto da Rússia. “Por acaso, um dos comissários sabia ler russo e desmascarou a mentira: tratava-se de certificados de participação em convenções”, registra o livro.
Em setembro de 2000, o Conselho de Psicologia da Itália deu seu veredito e recusou considerar a ontopsicologia uma escola terapêutica e de pensamento psicológico, negando legitimidade científica: “A formação profissional do psicoterapeuta promovida e implementada pela Associação Internacional de Ontopsicologia deve ser considerada não qualificada”.
Consultado por GaúchaZH, o Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul afirmou desconhecer qualquer aceitação da ontopsicologia como parte da psicologia e observou que mesmo “o fato de existir palestra ou atividade junto a uma instituição de ensino não remete a um reconhecimento teórico ou metodológico”. O conselho também ressaltou que, na condição de autarquia federal de orientação e fiscalização do exercício profissional da psicologia, “não reconhece métodos e procedimentos terapêuticos mediados pela ontopsicologia”.
Um pequeno ecossistema
Em maio de 2013, quando Meneghetti morreu no hospital de Faxinal do Soturno (RS), a imprensa italiana voltou a dar-lhe atenção. Sob uma foto em que ele aparecia de óculos escuros, charuto numa mão e taça de vinho na outra, o jornal digital Tuttoggi (criado em 2007 na Úmbria, onde Meneghetti mantinha uma comunidade) publicou um alentado obituário, rememorando as questões judiciais, reafirmando que a ontopsicologia era uma disciplina sem fundamento científico e apresentando o ex-frade como dono de um império econômico e imobiliário, graças a contribuições dos seguidores. O texto terminava com um questionamento sobre o futuro: “Quem vai tomar as rédeas do movimento agora?”.
A resposta estava a 10,4 mil quilômetros de distância, na depressão central do Rio Grande do Sul. Lá, a obra e o legado de Meneghetti floresciam, vivos, fortes, prósperos e pujantes. Desde a primeira visita dele ao Recanto Maestro, em 1988, o distrito havia se convertido em um pequeno império, e as instituições que delineara haviam criado laços com o establishment empresarial, cultural e político gaúcho. O italiano que havia sido preso, condenado, atacado e ridicularizado em sua própria terra encontrara, no Brasil, um ambiente onde era acolhido com admiração, obtinha chancelas oficiais e guardava distância dos problemas com a Justiça.
Na terra que Alécio Vidor e Jacó Ruver haviam encontrado 25 anos antes, surgira todo um ecossistema, formado por várias empresas, um campus universitário e zonas residenciais. Nos prédios para moradia construídos pela Fundação Antonio Meneghetti e nos casarões, viviam os alunos e professores da faculdade, bem como empresários. Estes haviam chegado lá para fazer cursos – a exemplo dos MBAs baseados em concepções ontopsicológicas como a “liderística” e a “business intuition” – e depois foram atraídos para investir no local. Nas empresas que abriam, contratavam como estagiários ou colaboradores os estudantes da graduação. E para que esses estudantes pudessem trabalhar nessas empresas, todas as aulas eram noturnas.
No já mencionado livro Recanto Maestro, Valserina, a ex-prefeita de São João do Polêsine, conta que estava em exercício do mandato (1993-1995) quando foi convidada por Meneghetti para uma visita. No encontro, ele propôs a construção de uma ponte no Recanto e “entregou os recursos para execução da obra em dólares”. Valserina “disse ao professor que o poder público não costumava receber dinheiro desta forma, mas compreendeu a importância e a urgência da obra e, em parceria, cada um com a sua contrapartida, construíram a ponte”. Meneghetti também citou o episódio na entrevista de 2013: “Não havia a estrada. Então dei dinheiro à prefeitura para fazer uma ponte para passar. Posteriamente, fiz as estradas”. Segundo ele, até a ocasião o investimento no Recanto teria sido de 15 milhões a 20 milhões de euros.
O Niemeyer do Recanto
Uma pessoa decisiva para as feições do projeto foi o arquiteto Luiz Carlos Bessler, 65 anos, responsável pelo desenho de quase todas as construções do distrito, onde estuda e mantém o seu escritório, uma pousada com 14 apartamentos e um restaurante.
Ele está para o Recanto Maestro como Oscar Niemeyer está para Brasília. Meneghetti atuava como “diretor artístico”, não raro rascunhando no chão os croquis.
São assinados por Bessler a sede da Fundação, o Hotel Capo Zorial (uma estrutura em forma de pássaro com quartos no primeiro piso, um salão de conferências no segundo e um amplo apartamento no terceiro, onde Meneghetti viveu), os prédios da faculdade, o complexo esportivo, o centro profissional, o Hotel Beira Rio e a maior parte das residências, algumas delas mansões, que se espalham ao longo do vale e pelas encostas.
Bessler é um dos moradores mais antigos do Recanto. Na época, era tudo mato, sem água encanada nem calçamento. Diz que a casa que construiu para si, a primeira de todas, onde mora sozinho, é a mais convencional da comunidade. Depois é que desenvolveu o estilo característico, em que “formas e cores únicas compreendem harmonia com a natureza e com o ser humano”, para citar um livro que celebra os 25 anos do local. O arquiteto é mais comedido:
— Não sei como explicar e classificar. Lembra um pouco o mediterrâneo. Nasceu espontaneamente. Essas linhas, curvas, furos. Temos muitos furos e círculos. O que é isso? Tem gente que entende como uma coisa transcendental, mas eu não vejo assim. Uso como elemento estético, para dar leveza à fachada.