Vamos falar de um lugar chamado Recanto Maestro, de um conjunto de ideias que atende por ontopsicologia e de um indivíduo peculiar, o italiano Antonio Meneghetti. Os três estão ligados entre si por uma história que transcorre em um vale bucólico da região central do Rio Grande do Sul e envolve especialistas russos, peripécias judiciais na Itália, figuras relevantes da sociedade gaúcha, gente perseguindo a verdade em escrituras rebuscadas e milhões de reais.
Iniciemos essa excursão pelo fio mais acessível do novelo, pelo lugar, o Centro Internacional de Arte e Cultura Humanista Recanto Maestro, ou simplesmente Recanto Maestro, como é conhecido o distrito situado no limite entre os municípios de São João do Polêsine e Restinga Seca, 35 quilômetros a leste de Santa Maria.
É um bairro? Um campus? Um centro empresarial? Uma comunidade reunida pelo culto a uma doutrina? Uma realidade paralela?
Consiste em um pouco de cada uma dessas coisas. É também uma espécie de aparição, uma vasta coleção de prédios aterrissados no pampa, em uma zona de propriedades rurais e cidadezinhas de colonização italiana, como uma miragem no deserto.
Você chega pela RS-149 e encontra, logo na entrada, em uma construção alva de linhas arredondadas, a boutique Antonio Meneghetti, onde vendem-se peças da grife AM Stile, que representa a faceta de estilista do singular italiano: camisas de algodão egípcio, sapatos de couro revestidos de seda estampada, gravatas com arabescos, joias, tudo com a exuberância que caracterizava o trajar de Meneghetti.
Da rodovia sai uma estrada asfaltada que segue Recanto adentro. Uma das primeiras edificações é o Hotel Business Center Beira Rio, colosso de 10 andares e 124 quartos, cada um deles com a reprodução de uma pintura de Meneghetti dependurada acima da cabeceira da cama – pois ele também tinha um lado de artista plástico. Depois, passamos pelo Centro Esportivo e Educacional Antonio Meneghetti, ginásio de traços ondulantes que comporta duas quadras poliesportivas, e deparamos, sobre um pedestal, com a estátua em bronze de um homem de terno. Meio sentado, meio recostado, ele tem a cabeleira presa atrás em um rabicho e dirige o olhar para a distância. É Meneghetti.
A estátua fica diante de uma construção de 7 mil metros quadrados, linhas curvas, janelas elípticas e círculos vazados na fachada – a sede da Antonio Meneghetti Faculdade, cujas dependências são decoradas com numerosos quadros pintados por Meneghetti e fotos ilustrando sua trajetória. No saguão, a livraria da editora universitária oferece os livros de Meneghetti, que nas páginas finais sempre trazem copiosa bibliografia – listando como fonte outros livros de Meneghetti. Em uma parede entre o primeiro e o segundo piso, há uma grande imagem dele, ar professoral, com uma citação: “Recanto Maestro não é um lugar, não é uma política, não é uma localidade, é uma performance liderística. É um pensamento, uma nova racionalidade aplicada, feita de território, meios, dinheiro, projetos, mas, sobretudo, de pessoas”.
Há ainda um quadro do italiano Ennio Montariello, bem junto à entrada da faculdade. A imagem exibe o que parece ser uma douta cavaqueira, em ambiente pastoral, entre grandes sábios da história da humanidade: o chinês Lao Tsé, os gregos Parmênides e Aristóteles e o italiano Tomás de Aquino. No centro, destaca-se Antonio Meneghetti.
Ainda haverá pela frente a Fundação Antonio Meneghetti, as esculturas a céu aberto desenhadas por Meneghetti e a Galeria La Ontoarte del Maestro Antonio Meneghetti, museu de 777 metros quadrados dedicado integralmente a pinturas, esculturas e tapeçarias de Meneghetti. Também pode-se tomar contato lá com a música de Meneghetti, presente em artefatos como o CD duplo Metaphisica Sinfonia, gravado pela Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro, com participação de um coral, de um tenor, de um barítono e de três sopranos, sob regência do maestro Antônio Borges-Cunha.
A única graduação no mundo
Em 28 de abril de 2013, menos de um mês antes de morrer, Antonio Meneghetti recebeu no Recanto Maestro uma equipe do jornal Cidades do Vale. Acomodado em uma poltrona vermelha, afirmou:
— A faculdade que está aqui, na formação que dá, eu posso garantir a vocês que é a melhor do mundo.
Criada em 2008 a partir da Foil, uma empresa instituída para a “formação de líderes”, a Antonio Meneghetti Faculdade (que não figura nos principais rankings de melhores instituições de Ensino Superior) tem 1.150 alunos, dos quais 20% moram no Recanto Maestro. Cerca de 700 estão na graduação, distribuídos por cinco cursos. Quatro deles são tradicionais: Direito, Administração, Sistemas de Informação e Pedagogia. A peculiaridade é a única graduação do planeta em Ontopsicologia, com duração de quatro anos e meio.
A ontopsicologia é, dependendo do ponto de vista, a ciência ou pseudociência desenvolvida por Meneghetti. Nos materiais da faculdade sobre o bacharelado, somos informados de que a diferença para “todas as demais ciências e áreas de conhecimento é que a Ciência Ontopsicológica examina dentro da coisa, ou seja, busca sempre as coisas como são”. Também ficamos sabendo que “é o estudo da lógica do homem real, sadio, responsável e artífice positivo de bem estar e sociedade”.
O currículo de 2.670 horas inclui disciplinas como Fundamentos Históricos e Epistemológicos da Ontopsicologia (I, II e III), Descobertas da Ontopsicologia: Em Si Ôntico, Descobertas da Ontopsicologia: Campo Semântico, Descobertas da Ontopsicologia: Monitor de Deflexão e Ontopsicologia Aplicada (I, II e III).
O que o profissional com essa formação vai fazer? A AMF afirma que a principal aplicação do bacharelado é “na área da consultoria empresarial-estratégica, nas áreas de gestão e na formação de lideranças”. Além de trabalhar como consultor ou executivo, o ontopsicólogo, promete a faculdade, poderá optar pela carreira acadêmica e atuar como professor ou pesquisador.
— Uma ciência vai adiante quando tem aplicação no mercado, quando tem ensino e quando tem a pesquisa — diz Patrícia Wazlawick, que coordena o bacharelado e é gestora administrativo-financeira da faculdade.
A graduação foi autorizada pelo Ministério de Educação (MEC) em 2014 e é oferecida desde 2015. Neste ano, vai formar a primeira turma. É um momento importante para a faculdade e para a própria ontopsicologia, porque é quando o MEC deve se pronunciar sobre o reconhecimento da graduação. Para admiradores de Meneghetti, essa chancela ao curso representa também chancela à ontopsicologia.
— Dá institucionalidade, aceitação. As outras instituições vão se interessar em saber o que é isso, vão dialogar de modo respeitoso, de igual para igual — afirma Vicente Bogo, vice-governador do Rio Grande do Sul entre 1995 e 1999 e um confesso estudioso de Meneghetti (inclusive assinou o prefácio, em 1996, de uma das principais obras do italiano, A Psicologia do Líder).
Bogo lembra que todos os últimos governadores participaram de eventos no Recanto enquanto exerciam o mandato: Germano Rigotto em 2005, Yeda Crusius em 2010, Tarso Genro em 2012, José Ivo Sartori em 2015. Ele relata que, no início, estranhou um pouco a ontopsicologia. Com o passar do tempo, concluiu que ela dava “respostas mais lógicas” do que o conhecimento que tinha até então:
— Do ponto de vista da ciência, a ontopsicologia representa o máximo avanço, que ainda não chegou às universidades. Pode ser que, daqui a 20, 30, 40 anos, seja incorporada.
Para os críticos, o possível reconhecimento pelo MEC gera preocupação.
— É grave, porque perpetua a formação em algo que não só é conhecidamente inútil, mas também perigoso — diz o biólogo Paulo Almeida, diretor do Instituto Questão de Ciência, criado para combater o avanço das pseudociências no Brasil.
Em declaração encaminhada na quinta-feira (2), a AMF afirma que uma comissão do Ministério da Educação fez visita de avaliação e produziu um relatório final favorável ao reconhecimento do curso, concedendo a ele nota máxima. Faltaria apenas a emisão da portaria de reconhecimento. Texto no site da faculdade afirma que a visita dos avaliadores ocorreu em 25 e 26 de fevereiro e cita o relatório: "o curso, no cotidiano, é conduzido com empenho, dedicação e atenção, englobando desafios como a própria iniciação no Brasil desse trabalho inédito, mas já em pleno desenvolvimento. A ontopsicologia é uma ciência e profissão que dá os primeiros passos em terras brasileiras, mas já o faz de forma robusta, consistente e competente”. Consultado por GaúchaZH, o Ministério da Educação informou que o processo de reconhecimento está na última fase de análise e deve ser concluído nas próximas semanas.
Nasce o refúgio
O catarinense Jacó Ruver foi um dos primeiros brasileiros a conhecer Meneghetti e um dos primeiros moradores do Recanto Maestro. Há mais de 30 anos, dedica duas horas diárias ao estudo da obra meneghettiana. Ele cuida sozinho da pizzaria local, junto à faculdade, e garante ser capaz de fazer 400 pizzas em uma hora, graças à ontopsicologia e ao desenvolvimento integral das capacidades humanas por ela propiciado. Também diz exercer 20 profissões diferentes.
— Não tem o que não se faz. O ser humano é um todo, não é uma parte só — filosofa.
No final da década de 1970, quando cursava Filosofia na Universidade de Passo Fundo (UPF), Ruver teve um professor chamado Alécio Vidor, que já divulgava a recém-criada ontopsicologia e recomendou um curso na Itália. Ruver desembarcou em Roma em 1982, conheceu Meneghetti e ficou impressionado.
— Ele me disse que ia fazer um grande negócio no Brasil e me convidou a trabalhar com ele — conta.
Essas origens remotas do Recanto foram reconstituídas, em livro, pela primeira prefeita de São João do Polêsine, Valserina Bulegon Gassen, em coautoria com a jornalista Ariane Gassen Vargas. Em Recanto Maestro – Obra Viva de Antonio Meneghetti no Brasil, elas relatam que Alécio Vidor havia conhecido Meneghetti em 1969, quando chegara à Itália para estudar na Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino, situada nas proximidades do Vaticano. Vidor já lecionava filosofia no Brasil, mas o italiano disse-lhe:
— Tu não entendes nada de filosofia.
Vidor fez mestrado e doutorado na Itália, sob orientação de Meneghetti, e voltou a Passo Fundo, empenhado em difundir a ontopsicologia. Em 1979, o mestre italiano veio ao Brasil, para visitá-lo. Uma foto da ocasião mostra os dois agasalhados com ponchos, araucárias ao fundo. Três anos depois, aconselhado por Meneghetti, Vidor se transferiu para a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e começou a procurar uma área “com condições para desenvolver um negócio”.
Foi nessa busca que deparou com o vale onde hoje se encontra o Recanto. Meneghetti recebeu fotos do local, enviadas pelo discípulo, e decretou: “Esse lugar é bom, aí poderemos fazer coisas boas”. Vidor adquiriu uma chácara de 15 hectares em meio às montanhas. Ruver o acompanhou nas tratativas para a compra das terras:
— Isso foi lá por 1985. Era uma terra ruim, meio abandonada, não tinha quase ninguém morando. Foi escolhida a partir do genius loci, que é um lugar onde a dinâmica vital flui no seu todo. Em 1988, quando começou o Recanto, eu já estudava e trabalhava aqui.
Na época, ele comprou um terreno e construiu uma casa, onde hoje vive sozinho e produz entre 2 mil e 3 mil garrafas de vinho chardonnay a cada ano. Testemunhou a primeira vinda de Meneghetti, em 1988, e frequentou vários cursos oferecidos nas inúmeras visitas posteriores, que podiam prolongar-se por meses.
A dinâmica superior
Provocado a falar sobre o que Antonio Meneghetti tinha de tão especial, Jacó Ruver interrompe o estudo do livro em italiano e envereda por um caminho inesperado:
— Sabe esse sistema eletrônico de comunicações que temos hoje, de que o ser humano se apropriou? É uma comunicação alienígena, não é humana. Por isso, ela é prejudicial. Ele não precisava disso, não precisava de celular para saber o que estava acontecendo. As ondas estão aí, mas para captar tu precisas do objeto, a TV, por exemplo. O professor não precisava desse objeto. Ele sabia tudo o que acontecia, sem precisar de telefone, de celular, de nada. Ele captava tudo o que ele queria.
(Meneghetti acreditava que os aliens já estavam entre nós. Em A Psicologia do Líder, escreveu que já nos anos 1990 acontecia a comunicação e o transporte de mercadorias e de pessoas entre as civilizações, acrescentando que a ontopsicologia havia nascido como “visão e tecnologia humanística que prepara o homem para ser protagonista das mediações culturais interplanetárias”.)
A parede à direita de Ruver, na pizzaria, está ornamentada por um dos cinco ou seis quadros que comprou de Meneghetti ao longo do tempo. Falou-se neles, e depois sobre religião. O que o italiano pensava das religiões?
— São necessárias, para controlar a massa, para conter a massa, para moralizar a massa, aquelas pessoas que não tenham um conhecimento mais profundo de si. Mas depois que tu começas a entender a dinâmica superior, tu não precisas de religião.
Na conversa, Ruver também retrucou alguns dos ataques mais ferozes à ontopsicologia, por exemplo, a acusação de que leva as pessoas a cortarem laços familiares:
— A verdadeira relação tem de ser autônoma, onde um constrói o outro e não destrói o outro. A relação familiar é extremamente importante, porém na maioria das vezes é esquizofrênica.
Em alguns casos, a ontopsicologia leva a pessoa a romper laços?
— Se eles são maléficos. Se o amigo faz mal, por que vou ter um amigo desses?
Chama atenção a visão da ontopsicologia sobre a saúde. Meneghetti defendia que as doenças surgem como uma reação do organismo quando uma pessoa vive em contradição com o seu “em si ôntico”. Ruver levantou da mesa para atender um cliente, preparou uma pizza, retornou à cabeceira da mesa. Depois, foi taxativo: 99% das doenças são psicossomáticas. Ele próprio, por causa da ontopsicologia, estava protegido.
— Ninguém diz que tenho 65 anos e faço tudo o que faço. Não conheço médico. Nunca tive um incidente. Tu podes prever antes as coisas. É a evidência das coisas.
Prever?
— Claro. Por exemplo, se eu vou a Santa Maria e vai acontecer um acidente no outro dia.
Isso já aconteceu? O senhor não vai a Santa Maria porque sabe que vai acontecer um acidente?
— Claro. Muitas vezes.
O senhor prevê esse tipo de coisa em sonho?
— Não. É evidência. Evidência. É ter o fato real na mão.
É uma visão?
— Não é visão. É evidência. É certeza.