Esta reportagem está dividida em cinco partes. Clique nos links abaixo para ler as demais:
Parte 1: como o ex-padre italiano Meneghetti ergueu um império no interior do RS
Parte 2: ontopsicologia "oscila entre a pseudociência e o exorcismo", disse a imprensa da Itália
Parte 3: Meneghetti prometia curar o câncer em três sessões de ontopsicologia
Parte final: universidade russa diz que ontopsicologia é "cientificamente insensata"
Nos anos 1980, Antonio Meneghetti anunciou que tinha iniciado “quase um abandono de interessar-me pelo mal, pela psicoterapia de cura, para abrir um outro caminho”. Nesse processo, trocou a atividade clínica pela de guru empresarial. Segundo os autores do livro Occulto Italia, “após a investigação judicial, Meneghetti intui que o verdadeiro potencial de sua ontopsicologia residia na aplicação à economia e ao mundo empresarial. Afinal, é aí que gira o dinheiro”.
O próprio Meneghetti admitiu isso ao jornal La Repubblica, em 1997:
— Os doentes? Já não me ocupo disso. Só trazem problemas. Agora trabalho para as elites políticas e empresariais, ensinando-lhes a psicologia do líder. Custo mínimo de cada conferência: US$ 10 mil, com pedidos contínuos, que vêm principalmente de Brasil, China e Rússia.
O italiano oferecia a empreendedores o “residence”, curso de imersão em local aprazível como o Recanto Maestro. Em 1996, fez conferências na Fiergs e na Fiesp. Mais tarde, grandes nomes do empresariado nacional palestraram no Recanto.
Que mensagem Meneghetti trouxe para o mundo dos negócios? Por que essa mensagem encontrou eco? Para responder, tomamos como guia suas próprias palavras, expressas na edição original de A Psicologia do Líder, de 1996 (em versões mais recentes, a obra foi modificada, e parte das citações que se seguem, suprimidas).
No livro, o italiano manifesta pouco apreço pela democracia, que para ele é “somente violência do número”, um sistema em que “milhões de ignorantes, quando se unem, reforçam a ignorância com todas as suas consequências” (essa passagem é mantida na 5ª edição, de 2013). A pesquisa ontopsicológica, ressalta, não pretende dar formação didática a essas massas. É outro o seu público: “O propósito preciso da ontopsicologia é aquele de sensibilizar, responsabilizar o novo capitalismo oligárquico da tecnologia digital” (afirmação suprimida na 5ª edição). A oligarquia é definida como o sistema em que o poder é exercido por um pequeno grupo de pessoas.
Nesse cenário, há um tipo especial de pessoa, alguém que “não faz parte da média normal dos seres humanos, mas é um diferente, um superior”. Essa criatura “é um homem que compreendeu que ou dominas ou és dominado”. Chegar a ser essa pessoa “não é o resultado de uma carreira de anos, mas é uma predisposição de natureza”. Ecoando certas religiões, esse ser humano é um escolhido, um predestinado, uma vez que “a vida individual é o resultado daquilo que foi pré-colocado”, tornando “inútil culpar deus ou a sociedade”.
Esse ser humano superior, segundo Meneghetti, é o líder.
Outra mensagem ao empresariado é a glorificação do lucro. O dinheiro é o sinal distintivo do “escolhido”, porque “vai onde estão os vencedores (...), é um poder que se coliga somente com os capazes”. Ele prossegue: “Analisando a fundo todos os grandes, ninguém viveu realmente para os outros; cada um passou através dos outros (...) Do momento que o escopo da sua ação são os lucros, em relação a estes ele deve ter a capacidade de organizar diversas coisas, diversas ideias, situações, ideologias, não se enrijecendo em uma moral, em uma cultura, em uma tradição fixa. (...) Problemas morais, culturais, ideológicos são considerados para serem instrumentalizados ou contornados. Tanto num quanto no outro caso, sabe fazê-lo com tamanha arte que parece um defensor daqueles valores que de fato lesa”.
Mas há perigos no caminho do líder. São os “estereótipos”: sexo, agressividade, amor, família, filhos, mulher ou homem, tendência ao alcoolismo ou à droga e a necessidade de amigos. Meneghetti considera três deles os piores, porque paralisam: o sexo, o amor e o vício. Ele enfatiza a necessidade de o homem de negócios colocar cônjuge e filhos em segundo plano: “A família é algo simpático, mas não é o escopo da vida”. A família, afinal, é origem de riscos e malefícios. Esses laços de sangue podem inclusive levar à ruína empresarial. Nenhuma relação é sagrada: “Com uma irmã, com um irmão, com uma mulher, é indiferente, a funcionalidade é o que conta. (...) Quando não existe funcionalidade, é melhor romper”.
Quais são as relações que o líder deve valorizar? É com as “pessoas certas”, “aquelas que contam”, “as portadoras de riqueza”. O amor em relação ao que é inferior deve ser evitado, porque gera a ruína. A amizade só faz sentido se propiciar vantagem. Pessoas mais vulneráveis não devem receber caridade, porque isso seria cultivar a deficiência e manter o doente: “Quanto mais lhe dou esmola, mais o caracterizo naquele nível. Isto não é amor real, é corrupção”.
Meneghetti inclui uma nota no livro para explicar por que está habilitado a aconselhar empresários. É por ser um prático, não um teórico: “Quero recordar que sou um homem rico, sei como se faz o dinheiro e como usá-lo”.
Cobrança diária aos alunos
Um dos empreendimentos visitados por GaúchaZH em novembro foi a fábrica de cosméticos Lilium Recanto, criada por Maria Lúcia Carrara, mulher do empresário Cláudio Carrara, a partir de uma ideia de Meneghetti. Ele teria observado a existência de muitos lírios-do-brejo na região e propôs seu uso no desenvolvimento de cosméticos. Dona de farmácias de manipulação em Porto Alegre, Maria Lúcia cursava na época o MBA em Business Intuition da AMF.
No dia da visita, os quatro trabalhadores da Lillium eram universitários da AMF. Entre eles, Aline Righi, 19 anos, do terceiro semestre de Direito, que cuidava de vendas e de marketing (hoje, ela trabalha na Agroturismo Recanto). De origem humilde, filha de um agricultor e de uma empregada doméstica, a jovem elogiou as oportunidades profissionais que recebeu no Recanto:
— Cheguei aqui em 26 de fevereiro e, no início de março, já estava no projeto Saber Servir, fazendo faxina na casa dos professores, nos condomínios. Era R$ 25 por dia.
Em um contato posterior, Aline disse que o projeto foi desenvolvido por estudantes, de forma autônoma.
Ela é de Jaguari, a 160 quilômetros de São João do Polêsine. Na cidade natal, contou, as referências que tinha sobre o Recanto estavam eivadas de receios e preconceito, mas preferiu tirar suas próprias conclusões:
— Dizem que não pode ser verdade, que aqui te fazem lavagem cerebral, que tu ficas diferente. Mas não é. É porque aqui eles te formam integralmente, consequentemente a gente muda. Por exemplo, deixei de sair, mas não é porque a ontopsicologia me faz querer deixar de sair, é porque quero me formar profissionalmente e integralmente para mim.
Aline acredita que se transformou para melhor e amadureceu. Do seu ponto de vista, colegas de Jaguari que foram para outras faculdades não cresceram tanto. Ela valoriza especialmente o fato de estar sendo formada para o mercado de trabalho:
— A metodologia da ontopsicologia é muito boa. É o líder, né? O líder precisa passar por todos os setores de uma empresa, saber fazer tudo, para chegar no topo. Por isso, somos cobrados diariamente, o que nos faz crescer. Aqui é tudo. A gente tem uma imagem e precisa cuidar dessa imagem, andar bem vestido. Isso aparece nas aulas de formação liderística.
Todos os alunos da AMF, não importa o curso, têm contato com a ontopsicologia, descrita por Patrícia Wazlawick como “diretiva pedagógica”:
— No curso de Administração, por exemplo, o jovem que entra precisa se conhecer, então a gente trabalha de um modo prático. Como ele organiza o tempo dele? Como aproveita e cresce no tempo livre, e não só desperdiça o tempo livre? Os professores propõem uma atividade, no primeiro semestre: tu vais organizar e limpar o teu quarto, vais tirar uma foto depois. Cada um apresenta o seu. Porque não adianta eu querer ser um grande profissional lá fora, querer empreender, se a minha vida eu não administro.
Projetos educacionais e culturais
A partir de convênios com as prefeituras de municípios próximos ao Recanto, crianças de escolas públicas são apresentadas a valores e conceitos da ontopsicologia dentro do projeto Despertando a Formação Inteligente por meio da Leitura, um dos 25 mantidos pela Fundação Antonio Meneghetti. Segundo Patricia Michelotti, coordenadora-geral das iniciativas, são apresentadas a alunos de seis a 13 anos de São João do Polêsine, Restinga Seca e Agudo obras que ajudem os pequenos a “se entender como um ser presente no mundo e que não é igual a nenhum outro”. Por exemplo, um livro sobre um camaleão que passa as horas mudando de cor, conforme pedem os amigos, e que chega ao final do dia exaurido e sem ter ficado da cor que queria:
— São metáforas para as crianças começarem a se sentir indivíduos. Você tem de ver o que é bom para ti e o que não é bom pra ti. Você gosta disso ou está fazendo porque um colega disse para fazer?
A ontopsicologia estimula o individualismo?
— Sabe quando tem aquele aviso no avião, de colocar a máscara primeiro em você? É essa a lógica. Como vai fazer algo de bom para a sociedade se você não está bem?
A fundação também se dedica a causas culturais. A Orquestra Jovem Recanto Maestro é formada por mais de 300 crianças e adolescentes de escolas da região, orientados por 12 professores de música. O coordenador é o músico Michael Fragomeni Penna, 31 anos, santa-mariense que atuava como professor de orquestras jovens na Bolívia. Foi de lá que o maestro Antônio Borges-Cunha, ex-diretor artístico e maestro da Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro (OCTSP), trouxe-o.
Penna diz que a inspiração foi El Sistema, o modelo de educação musical pública iniciado 40 anos atrás na Venezuela e hoje uma referência internacional. Para colaborar, buscou no país vizinho, em 2017, um dos iniciadores do projeto, o oboísta Julian Ramos, 51, e sua mulher, a violinista Ariana Gutierrez, 21. Ramos disse:
— Acho que o Recanto é um oásis no deserto, um oásis humanista.
A coordenação da orquestra está a cargo de Cláudio Carrara, que, em março de 2012, contratou a OCTSP para um concerto de aniversário para o líder da ontopsicologia. Entre as peças, estavam duas composições do próprio Meneghetti, orquestradas pelo compositor e arranjador Vagner Cunha, filho do maestro Antônio Borges-Cunha. Na ocasião, Carrara pagou Vagner Cunha para orquestrar outras obras de Meneghetti, que foram apresentadas no concerto Maestro Ontoarte em Cena, no Theatro São Pedro. O espetáculo foi gravado e lançado em CD e DVD.